Carta do Canadá – Estes dias inquetantes

Há uma menininha em Alepo, obrigada a viver no meio da guerra, que escreve um diário e conta como corre o seu tempo de martírio. Um dia destes, em pleno bombardeamento, pôs as mãozitas a tapar as orelhas e perguntou ansiosa: “Deus, estás a ouvir”? A imagem correu mundo e devia pôr de rastos os que fazem a guerra, dum lado e do outro da trincheira, se eles ainda tivessem um resquício de consciência, de pudor, de vergonha. Mas a guerra continua no desgraçado Médio Oriente e um pouco por onde recursos naturais são motivo de cobiça, um pouco por todo o lado onde se dá largas ao fanatismo mais criminoso.  Dolorosas as reportagens que mostram os milhões de refugiados desses países a encherem os caminhos do mundo, os acampamentos de acaso, as crianças violadas e raptadas, o abandono por parte dos países ricos, a intolerância e a raiva pregada por arautos ansiosos de ditadura. Apenas os países mais economicamente fragilizados, como Portugal, a Grécia e  Itália, os acolhem com o pouco de que dispõem.  A Europa, que se quis exemplo de democracia e civilização, ergue muros e dá largas à discriminação. Fora da Europa, também os Estados Unidos exibem um muro e ouvem promessas doutro por parte dum candidato a presidente da República, o Trump da ignorância, da estupidez, do descaramento, o membro dum partido que não se afligiu com isso e apenas se sobressaltou quando vieram a lume sórdidas aventuras sexuais. Este é o Partido Republicano e a sua bitola moral.

O mundo está a sofrer a ditadura do dinheiro, a religião da banca, servidas por políticos neoliberais que não passam de capachos de forças obscuras, salvo raras e honrosas excepções. Natural é, pois, que os povos temam o pior e desconfiem de todos os comparsas da política global.

E assim se compreenderá a esperança com que foi recebida a eleição de António Guterres para o cargo se secretário geral das Nações Unidas. Porque todos puderam ver o bom e empenhado trabalho que fez como Alto Comissário para os Refugiados.  Não se permitiu cruzar os braços e descansar, antes andou numa roda viva por todos os lados onde multidões de infelizes precisavam de ajuda. Não se poupou a esforços para angariar fundos. Trabalhou como um escravo. É um verdadeiro cristão e um justo. São legítimas as esperanças nele depositadas.  Não colhem as crónicas, que fedem a vómito de vinho, com que alguns pretendem denegri-lo – como,  no tempo em que Guterres foi primeiro-ministro, fizeram, de forma injusta e cruel, mesmo quando se sabia que tinha a sua mulher entre a vida e a morte. Mas essa falta de respeito está-lhes no ADN.  Quando Sócrates tinha acabado de perder o pai e o irmão, atiraram-se a ele como num verdadeiro linchamento esses críticos que vivem bem em todos os regimes e situações.  A nomeação de Guterres deve ser para eles um insulto, como para outros o é um orçamento aprovado, uma descida do desemprego, um défice prometido a Portugal e Bruxelas. No nosso país, há sempre uma corja de serviço. Mas o povo que trabalha, sofre e paga impostos, não é dessa laia.  Sabe dar valor a quem o tem.  E sente-se honrado quando um de nós é convidado a ajudar o mundo.

Comments

  1. anónima says:

    “Fora da Europa …”
    Pensei que fosse falar da Rússia, uma vez que começou a falar da Síria e de Alepo.

  2. E ainda mais Rússia na Siria: http://www.abrilabril.pt/alepo

  3. anónima says:

    Lendo este post, e já depois do meu último comentário, pedia-lhe a sua opinião: porque é que a actuação da Rússia no plano internacional é tão pouco escrutinada e discutida ao contrário da atuação da UE e dos EUA? Quando, no caso particular de Alepo, a Rússia é conivente (participa diretamente?) no bombardeamento de populações civis sem qualquer preocupação com “danos colaterais”?
    Não há abaixo-assinados, petições, manifestações junto à embaixada, …? Na sua opinião, porquê?

    • anónima says:

      É impressionante como a simples formulação de uma pergunta, ainda sem resposta, tem 2 rate downs! A uma pergunta!

  4. A.Silva says:

    Há uma menina em Alepo que é abjetamente objecto de manipulação por criminosos que querem destruir o seu povo, a Síria. Criminosos pagos por dementes monarcas do golfo e armados pelos países da nato.

    E depois há quem se preste a replicar esta abjecta, nojenta e criminosa farsa.

    • anónima says:

      “Criminosos pagos por dementes monarcas do golfo e armados pelos países da nato.”
      De resto, nada a dizer.

  5. fleitao says:

    Anónima e outros:
    Porque não falei da Rússia por ter indicado “fora da Europa”. Fico perplexa: a Rússia não está na Europa? Não tinha dado por essa deslocação. E para onde foi? Ou será que se entende por Europa apenas a União Europeia?
    O meu post pretendia apenas trazer de novo à superfície o problema dos refugiados e o acerto da eleição de Guterres para o cargo de secretário geral da ONU. Apenas isso. Não ter conseguido fazer-me entender, é falha minha: escrevo mal, é o que é.
    Quanto ao papel da Rússia no trágfico embróglio da Síria, faço parte dos que aguardam algo que esclareça o teor das negociações com os USA. Falharam? Onde e porquê? Ou a Rússia saltou por cima de tudo na sua fidelidade a Assad e no seu desejo de marcar presence imbatível no Médio Oriente?
    John Kerry deve essa explicação ao mundo.

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