Lettres de Paris #21

«J’ai la France entière»

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Hoje morreu Leonard Cohen. A primeira música de que me lembrei foi de The Partisan*. A canção não é dele, mas sempre gostei de o ouvir cantar
‘Oh, the wind, the wind is blowing,
through the graves the wind is blowing,
freedom soon will come;
then we’ll come from the shadows.’
 
E depois o coro, em francês:
‘J’ai changé cent fois de nom
J’ai perdu femme et enfants
Mais j’ai tant d’amis
Et j’ai la France entière’
 
E se calhar, quase de certeza, foi por isso que quando percebi que ele tinha morrido, me lembrei imediatamente de The Partisan. Podia ter-me lembrado de outra canção qualquer que o ouvi cantar tantas vezes, como Suzanne, ou Dance me to the end of Love, ou So long Marianne… mas não, foi desta que me lembrei. La Complainte du Partisan**, uma canção de 1943, com letra de Anna Marly (e música de Emmanuel d’Astier de la Vigerie, uma homenagem aos resistentes franceses na II Guerra Mundial. Paris está cheio de placas que nos contam a história desta resistência. Hoje, em muitas delas, havia flores da Maire de Paris. Um gesto bonito, digamos, num dia em que se comemora em França (e é por isso feriado) a assinatura do Armístico que pôs fim à I Guerra Mundial. Estava Paris muito enfeitado de bandeiras, de pequenos ramos de flores junto às placas dos que tombaram combatendo ou resistindo. Estava Paris muito bonito, hoje, sob um sol encantador e um céu mais azul que a tira da bandeira.
 

Acordei tarde, era feriado. Resolvi vestir-me de azul e vermelho e saí para as ruas de Paris. Para a França inteira. Nas bandeiras em toda a parte. Nos ramos de flores. No céu azul. No branco das nuvens. No vermelho do sangue lembrado hoje. ‘Paris se souvient’ e ‘Paris Uni’, estava escrito em letras brancas, em duas grandes faixas azuis que tombavam do Hotel de Ville quando, há bocado, já era noite cerrada, lá passei. Pensei, por momentos que fosse por causa daquilo que hoje se assinala. Mas depois pensei um bocadinho mais. E as grandes faixas são em memória das vítimas dos ataques de 13 de novembro de 2015. Já o disse ontem ou antes de ontem que amanhã reabre um dos palcos desses ataques – o Bataclan – com um concerto de Sting que, segundo vi na televisão, está já esgotado há muito tempo. É assim Paris. La France entière.
 
Quando saí para o magnífico dia de Paris a minha direção era (e foi) o Marché aux fleurs e aux oiseaux, na Place Louis Lepine. Tomei o café no sítio do costume – o Saint-André – atravessei a Place Saint-Michel, caminhei um pouco ao longo do Quai Saint-Michel e atravessei a Petit Pont para a île de la Cité. Passei em frente à Notre-Dame, cheia de homens com diferentes fardas, talvez devido às comemorações, dei uma volta ao Point Zéro des Routes de France, ali mesmo em frente e voltei para trás, passando no Hôpital Hotel-Dieu, onde há uns dias fui tão bem tratada, e encarei a Perfeitura da Polícia, engalanada de bandeiras em todas as janelas. As ruas estavam cheias de polícias e de carros de polícia, mas era apenas por ser o dia de hoje e nada mais. Voltei à Rue de la Cité até chegar à Rue Lutèce e à Place Louis Lepine, de onde se tem uma bela visão do Tribunal de Comércio de Paris, um belíssimo edifício, aliás. Na Place Louis Lepine encontrei o Marché aux Fleurs et aux Oiseaux e, evidentemente lembrei-me do poema de Prèvert ‘Pour toi mon amour’ que começa, justamente, assim:
‘Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j’ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j’ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour’
 
O modo como termina vão ter de ir procurar. Não quero estragar esta bela imagem, por agora. Havia flores, mas não havia pássaros. Apenas ninhos feitos de todo o tipo de materiais. Conheço uma pessoa que gostava que eu lhe levasse alguns. O Marché aux Oiseaux parece que é só aos domingos. Por mim, agradeci interiormente. Já se sabe que não gosto muito de pássaros em gaiolas. Andei um bocado a passear no meio das flores que já não deviam ser tantas como de manhã cedo, claro, mas eram mesmo assim bastantes e coloridas, o suficiente para tornar mais glorioso um dia tão bonito.
 
Depois fui pelo Quai de la Corse até à Pont au Change. Fiquei, outra vez, a admirar a vista sobre o Sena, o Palácio de Justiça e, quase na esquina com a Voie George Pompidou, a Torre Eiffel. Segui para a Place du Chatêlet, com a sua bela fonte e o seu belo anjo ou lá o que é, dourado e ofuscante e muito alto, a ser visitado pelas gaivotas. Cruzei a Avenue Victoria e entrei no jardinzinho, a transbordar outono e alguma solidão, onde se ergue perfeita a Torre Saint-Jacques. Fiquei outra vez um bom bocado a admirar a torre de todos os ângulos e as árvores e os bancos, muito azuis, do pequeno jardim. Sentei-me num, o tempo de um cigarro, e deixei-me ficar a ver os pombos a levantar as folhas, como que a ensinar-lhes a voar depois da queda. A seguir saí do jardinzinho pelo portão que dá para a Rue de Rivoli e continuei pelo Boulevard Sébastopol acima até encontrar a Rue Aubry le Boucher e, a seguir, entrar na Place Georges Pompidou, onde um cartaz gigante me anuncia exatamente o que venho aqui ver – ‘Magritte – la trahison des images’.
 
Depressa constato que o feriado fez a muita gente ter exatamente a mesma ideia que eu. Aliás já tinha lido no l’Officiel que o Centro Pompidou tinha alargado as horas de visita a esta exposição, devido a uma afluência fora do normal. Vejo centenas de pessoas em duas filas. Olho para as placas: 60 minutos de espera até entrar no museu. Que bonito, penso para comigo. Mas depois lembro-me de uma coisa de que me esqueço frequentemente, porque me acompanha desde que nasci e porque aprendi a andar, há 49 anos, apesar dela e, também apesar dela, andei sempre muito, embora mais devagar e com mais esforço que o comum dos mortais. Acerco-me de uma porta que diz ‘groupes’. Claro que não queria entrar por lá, apesar de conter multitudes, parafraseando Walt Whitman. Queria apenas saber onde eram as entradas prioritárias. O homem pergunta-me se tenho ‘la carte’. Digo-lhe que sou portuguesa e que em Portugal não temos carta, temos uma declaração que, justamente, deixei no meu país. Ah, bom, sem carta, vai para as longas filas como toda a gente.
 
Agradeci-lhe a simpatia mas não me conformei, evidentemente. Fui até outra porta onde começava uma das gigantescas filas. Disse ao guarda que tenho uma deficiência. Olhou para mim e pediu ‘la carte’. Voltei a dizer o mesmo, mas acrescentei que bastava olhar para os meus sapatos. Qual carta? Veio um superior do senhor e apenas fez sinal ao outro que me levasse até à frente da fila. Voilá. Passei aquela gente toda, que olhava para mim com cara de poucos amigos. Entrei no Pompidou. O senhor da segurança voltou a pedir-me ‘la carte’, ora bolas. Expliquei-lhe o mesmo. Disse ‘ah vous êtes portugaise? J’ai beaucoup d’amis portugaises? E pronto. Lá fui para a bilheteira onde não paguei qualquer valor pelo bilhete e lá fui passar 4 horas em pé, a andar de um lado para o outro e a dar cabo dos meus frágeis pés. Tudo somado devo ter andado umas 6 horas hoje, sem parar, embora devagar, que eu vou pelas ruas como quem anda num museu, já se sabe.
 
Outro dia na Torre Eiffel o guarda ralhou comigo porque tinha estado na fila e era ‘prioritaire’. Outro guarda levou-me (e ao André que me acompanhava) até à bilheteira. Em vez dos 11 euros normais, pagámos 4 euros e entrámos num instante no elevador. Entretanto li nos sites dos museus onde quero ir as condições de acesso para deficientes. Em quase todos as entradas são gratuitas. Para o próprio e para o acompanhante. Se não são gratuitas, são a preço bastante reduzido. O mesmo se aplica, geralmente, aos desempregados. E não apenas, no caso dos deficientes, pagamos pouco ou nada, como nos levam praticamente ao colo (uma vez superada a questão da ‘carte’ que eu não faço a mais pequena ideia se existe em Portugal, porque só tenho uma declaração e não costumo andar com ela) até onde queremos ir. Levar a fraternidade e a igualdade a sério, nestas coisas (podemos falar de outras, de outra vez) é o que é. Ou países a sério, também podemos dizer assim.
 
De maneira que parece que não só vou entrar primeiro que toda a gente em toda a parte de França, como não vou pagar por isso, ou pagarei muito pouco. Nada mau. Se é um direito que tenho, usá-lo-ei, que é para isso que os direitos servem. Na verdade, ter a perna mais curta nunca me chateou e pouco me tem impedido de fazer a maior parte das coisas. Se é verdade que me coloca alguns obstáculos, que tenho de me esforçar um bocado mais que a maior parte das pessoas para caminhar longas distâncias ou em terrenos acidentados, também é verdade, ou tem sido verdade, que faço o mesmo que toda a gente faz. E vou, ou tenho ido, onde quero ir. Se me tornam a vida mais fácil, se me permitem o acesso às coisas de forma mais igual, aproveito. Embora não aproveite sempre, ou devo dizer, quase nunca. Basicamente aproveito para escapar às filas enormes e ao muito tempo que teria de estar ali de pé. O meu corpo tem uma funcionalidade diferente. Acho bem que me permitam aceder mais facilmente aos lugares.
 
A funcionalidade diversa do meu corpo notou-se muito quando, passadas mais ou menos 4h saí do Pompidou, depois de ter visto a exposição de Magritte, a coleção permanente, e outras exposições fantásticas (como André Breton – Surréalisme et Politique ou Kollektsia! – a doação mais recente ao Centro Pompidou, de arte contemporânea da URSS e da Rússia, desde 1950 até ao início dos anos 2000). A meio da visita, subo ao terraço. São mais ou menos 5 e meia da tarde e começa a escurecer. As luzes da cidade (e a vista a partir do Centro Pompidou sobre Paris é absolutamente de tirar o folêgo) começavam a acender-se pouco a pouco e bebi um chocolate quente a olhar para aquela maravilha. Um pombo veio também admirar aquilo tudo e fazer-me companhia. Depois continuei a visita. Saí do Centro Pompidou com os pés desfeitos e voltei a pé, muito devagar, primeiro pela Rue Saint-Martin, depois pela Rue de la Verrerie e a seguir pela Rue du Temple, mesmo antes da Place de l’Hotel de Ville. Parei embasbacada a olhar para aquilo. Estava escuro, apenas com a iluminação ténue do impressionante edifício e a da lua, quase cheia. Foi então que vi as faixas ‘Paris se souvient’ e ‘Paris Uni’.
 
Alguns minutos mais tarde, depois de ter fumado um cigarro em frente ao Hotel de Ville, atravessei a Pont de l’Arcole, passei de novo em frente à Notre-Dame, atravessei a Pont au Double e constatei que me apetecia comer pizza. Não vi, porém, nenhuma pizzaria nas imediações da Rue du Fouarre e da Rue Dante. No cruzamento espreitei para a Rue Galande. Vejo um restaurante chamado Le Centre du Monde. Voilá. Entrei. Mesmo sem reserva o empregado, simpático (que novidade!) sentou-me numa mesa bem catita. Comi Salade Saint-Jacques (e as saudades que eu tinha de comer vieiras), Confit de Canard e Brioche perdu au caramel. Acompanhei tudo com o copo de vinho tinto Côtes du Rhône e no fim um café expresso. O restaurante era lindo, o nome absolutamente fantástico, a conta, atendendo às circunstâncias, não foi assim tão elevada como isso. Saí do Le Centre du Monde a sentir-me mesmo aí – no centro do mundo, e caminhei pelo Boulevard Saint-Germain e depois pelo Boulevard Saint-Michel até à Place Saint-André des Arts onde entrei na Rue Suger, com os pés funcionalmente diversos numa lástima, mas a alma e a barriga consoladas.
 
* The Partisan, por Leonard Cohen – https://www.youtube.com/watch?v=S34cVkL6zCE
 
* La complaint du partisan, por Anna Marly – https://www.youtube.com/watch?v=uTMe6-6VSuQ

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