Deixem o Tua em Paz!

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Filipe Esperança

Se há assunto que tem vindo constantemente para as luzes da ribalta é o recente (ou não) caso da Vale do Tua.
Mas… por onde começar a relatar toda esta patranha de peripécias?
Pelo início, obviamente. Estávamos no final de 1991, e foi já depois de constantes ameaças de encerramento que a CP, mandatada pelo Governo e por uma constante de encerramentos ferroviários desde 1988, decidiu encerrar o troço da Linha do Tua compreendido entre Mirandela e Macedo de Cavaleiros. Basta uma rápida pesquisa no Google para compreender que este infeliz acaso deixou a última porção do troço (Macedo de Cavaleiros – Bragança) completamente isolada da restante rede, sem ligação ferroviária, e com transbordos rodoviários que eram demorados e pouco articulados. Dias depois, um descarrilamento em Sortes viria a ditar “temporariamente” o fim dos comboios na Linha do Tua, entre Mirandela e Bragança. Temporário ou não, a verdade é que foi preciso esperar pelo dia 14 de Outubro de 1992 para que surgisse uma nova “machadada” nesta importante infraestrutura: pela calada da noite, e durante um forte apagão nas comunicações locais, a CP levava (pela via rodoviária) os comboios e carruagens presentes nas Estações de Bragança e Macedo de Cavaleiros, e sob a justificação de que o material precisava de “manutenção”.
Jamais, em tempo algum, os transmontanos duvidariam da palavra da CP ou dos seus responsáveis… mas a verdade é que o comboio não regressou a Bragança.
Os carris foram levantados, o material ferroso foi vendido e parte do canal foi reconvertido naquelas fantásticas “coisas” a que chamam ‘ciclovia’ e que chegam a custar, por quilómetro, três vezes mais que a reposição do serviço ferroviário, sem qualquer retorno financeiro.
Entre a foz do Tua e a cidade de Mirandela mantinha-se o serviço, quer graças à posição geográfica daquela cidade, quer graças à visão de alguns autarcas locais, que não só lutaram para que o comboio ficasse, como também criaram e reabriram um serviço municipal na Linha do Tua (e que é ainda hoje o Metro de Mirandela) para servir essencialmente as centenas de estudantes locais que estão dependentes de um meio de transporte.
A verdade é que o Metro de Mirandela tem, num ano, mais passageiros que o aeroporto de Beja em dois, ou referindo que há já quatro anos consecutivos que a Metro de Mirandela encerra a sua actividade com lucro… mas vou deixar passar essa parte, e concentrar-me naquilo que é deveras importante: as constantes “machadadas” na Linha do Tua. Numa Linha com mais de 120 anos de existência e raras ocorrências graves, em apenas um ano e meio, dão-se quatro graves acidentes, num dos quais uma das automotoras cai ao rio Tua. Ninguém viu nada, mas viu-se, quase de seguida, a linha do Tua encerrada a sul do Cachão, e uma barragem a crescer “ali ao lado”.

Ainda nem tinham saído os estudos prévios ou o RECAPE (Relatório de Conformidade Ambiental e Plano de Execução) da Barragem de Foz-Tua, e já os autarcas locais diziam que “a barragem tem de ser à cota máxima” – conforme se pode ver em “Pare, Escute e Olhe”, de Jorge Pelicano (2009). De forma fria, cruel e sem qualquer análise prévia por parte dos responsáveis regionais, a Linha do Tua era assim “enterrada” e vendida, juntamente com todo o magnífico Vale do Tua. Talvez fosse bom que, com ela, se enterrasse também toda a polémica levantada por Movimentos, Associações, Plataformas.

Se já tudo era mau, ficou ainda melhor. Como compensação, o Vale do Tua ia agora ter um “Plano de Mobilidade” – aquilo que dantes se fazia em 40 minutos de comboio, pode agora ser feito através de 4 magníficos transbordos (autocarro + elevador + barco + comboio). Seguramente que a população transmontana, idosa, envelhecida e sem acessibilidades, agradece do fundo do coração esta “prostituição turística” do Vale do Tua, que continua a surgir em prol dos interesses de alguns. Falta ainda relatar-vos o mais recente golpe: no dia 28 de Julho do presente ano, o Governo desclassifica a Linha do Tua, compactuando com mais uma decisão inédita.
Se olharmos para o passado ferroviário nacional, facilmente vemos que surgiram desclassificações no âmbito de encerramentos prolongados, falta de condições ou falta de utentes… Mas nunca na história deste país foi desclassificada uma infraestrutura ferroviária nacional que vai voltar a ter serviço público! Se dantes poucas dúvidas havia sobre a falta de “interesse” do estado para com a Linha do Tua e a população que ela servia, a “desresponsabilização” trazida pela desclassificação da via veio trazer toda a questão para um novo patamar, do qual só emerge um interesse: a “entrega” a privados.

Há ainda que referir a posterior “obscenidade” da criação do “Parque Natural do Vale do Tua”. Em Novembro de 2010, o IGESPAR recusou a classificação da Linha e Vale do Tua a “Património Nacional”, dizendo que a mesma “não reunia condições a nível arqueológico, arquitectónico, etnográfico, científico e técnico e industrial”.
É absolutamente formidável observar que, depois de ter nascido no Vale do Tua uma parede de 120 metros, depois de serem abatidas mais de 14.000 árvores e de estarem inundados cerca de 20 km de uma paisagem ímpar e sem igual, toda a zona recebe a classificação de “Parque Natural”. É surreal!

Por fim, caímos na mais recente e tão falada “epopeia vaporosa”, pois, de acordo com o já visto e com a justificação de ser “para ganhar dinheiro”, a Linha do Tua vai receber um comboio de plástico retirado de um misto de sabores: ora sabe a América, ora sabe a ‘Euro Disney’. Nada contra o empresário Mário Ferreira, que é agora responsável pelo projecto e que, no meio de tantos golpes desferidos, provocou a menor das “feridas”… mas, ao contrário do que se diz por aí, a “barragem não salvou a Linha”. A barragem foi o melhor dos pretextos para se accionar todo um mecanismo de interesses, mascarados de benfeitorias, e do qual agora subitamente aparecem mártires.

A chapada de luva branca surge quando, ainda nem há dias, se vem a saber que o país vizinho pensar em chamar “Bragança” ou “Trás-os-Montes” à estação de Alta Velocidade que ficará situada a escassos 30 kms de Bragança. A par e passo com isto, temos uma Linha do Tua projectada inicialmente para alcançar a Espanha em Puebla de Sanabria, e temos os autarcas Portugueses preocupados em… debater o melhoramento das estradas que nos ligarão à referida estação, demonstrando claramente que a mentalidade espanhola para o desenvolvimento ferroviário está a anos-luz da portuguesa. A tradição ferroviária portuguesa merecia mais. A Linha do Tua, a mais importante via estreita da região, merecia mais. Os transmontanos mereciam mais. E acima de tudo, a ferrovia merecia mais. A forma como o caminho-de-ferro continua a ser olhado neste pobre país, onde impera o alcatrão, o lobby da camionagem e das auto-estradas, onde a via estreita é algo ultrapassado e onde se gastam 153 milhões de euros nos estudos do TGV (que só circulou no papel), deixam-me drasticamente preocupado e a pensar num futuro, que teima em não vir.

Comments

  1. Anónimo says:

    Quantos deputados tem Trás-os-Montes lá longe, naquela AR?. Aonde estão os que mandam para lá do Marão?.

  2. Estou 1000% contra a barragem e contra o encerramento da linha férrea até Bragança.

    Mas……….

    O que é que os transmontanos fizeram contra a realidade actual?

    • Nascimento says:

      Compraram carros Novos! Mas aquela malta quer lá saber de comboios…o que aquela gente quer é …..Guito.E muito bem. Tua? Tão fartos de esperar. Querem é PROGRESSO.Por isso votaram sempre nos MESMOS!
      Badamerda ( democrática) para eles. E já agora ( mobilidade?)andem a pé , e que morram como os grilos!

  3. martinhopm says:

    Os crimes de desleixo, abandono da ferrovia foram (são) mais do que muitos. Cavaco apostou em forte na rodovia. Coelho seguiu-lhe as pisadas. Infelizmente. Que vai fazer Costa?
    Li o seu texto, Filipe Esperança. Concordo. Vou relê-lo com mais cuidado, incluindo os textos para que chama a atenção. Não sei se é transmontano. Eu não o sou. Mas não deixo de considerar, parece-me, que, no caso do Tua, há falcatruas a mais. Mas, neste desgraçado país, já nada me admira., e sobretudo depois da Candidinha Almeida ter proclamado que não havia (há) (políticos) corruptos! Quero é crer que a cada cavadela, sua minhoca. Até quando? Não será possível ser-se diferente?
    Mas, diga-me, que têm feito os autarcas e deputados por essa região, ao longo do tempo, quanto a este problema?

    • GAFA says:

      Os deputados e autarcas (mais os primeiros que os segundos), não fazem parte da solução, foram e são parte do problema! Foram os grande impulsionadores da «coisa». Um crime hediondo que ninguém quis sequer disfarçar: não serve para nada, senão para engenharia financeira de uma EDP falida, para ajudas aos amigos do betão, para danças de lugares como pagamento de favores. Havia ou haverá necessidade de energia eléctrica? NÃO! É ou será tão grande a fatia de energia a produzir? NÃO! Então porque se destruiu o mais belo vale com linha de caminho-de-ferro de Portugal, e dos mais belos do Mundo?

      • Tudo se vai destruir porque não é atrás de teclados, bem sentados ao quente e a beber um scotch que se resolvem os problemas. É no terreno.

        • GAFA says:

          E por isso demos muito de nós, com prejuízo próprio, a defender o que nem os «prejudicados» pareciam querer defender. 10 anos de luta, infelizmente perdida para um adversário que (literalmente) manda no governo.
          Onde estavam todos/as quando a barragem foi erigida?
          Como diz o Filipe e muito inteligentemente neste seu artigo «deixem o Tua em paz»!

        • Manuel Rocha says:

          Bem dito Sr(a) sim999blog.
          Mas tal como nesse caso e em todo o lado por este pais fora, há demasiada “tropa do ar condicionado” que nunca ganhará nenhuma guerra. Quanto muito ganham o campeonato de empurrador do “rato”. Mas são a geração com mais formação, dizem “eles”. Só que a teoria e os modelos teóricos não servem para nada sem aplicação pratica.
          O Sr GAFA diz que andamos a defender o que nem os «prejudicados» pareciam querer defender.
          Os “prejudicados” andam há anos a ser intoxicados com telenovelas da TV, com as “noticias” em papel e na TV do CM, etc etc. Os intoxicados com vinho ou droga, têm pouca capacidade de reacção e de pensar pela própria cabeça, os intoxicados com “noticias”, serão igualmente muito limitados.

          • Caro Manuel Rocha, é isso mesmo.
            E ainda temos aqueles que se manifestam num sentido contrário, para depois de um prato de lentilhas, serem os mais fervorosos adeptos daquilo que discordavam.
            São os chamados idiotas úteis.
            As grandes causas acabam quando o cheiro a caviar aparece.

        • Filipe Esperança says:

          “Tudo se vai destruir porque não é atrás de teclados, bem sentados ao quente e a beber um scotch que se resolvem os problemas. É no terreno.”

          Pois bem… então vá: agora vamos “ao terreno”:

          SIC:
          http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2016-05-23-Movimento-pela-reabertura-da-Linha-do-Tua

          Porto Canal:
          http://portocanal.sapo.pt/um_video/DeDyLcJhdAT8VgCpZra3/

          Onda Livre:
          https://www.youtube.com/watch?v=Pv0ijGXH1Ss

          https://www.youtube.com/watch?v=ak97Mfkk6aw

          Não daqueles de beber “Scotch” e ficar apenas a criticar, gosto de meter as mãos ao trabalho, e tenho feito a minha parte.

  4. Em Portugal tudo é discutido numa base esquerda/direita, neoliberal/esquerda radical, tudo em modo adepto de futebol.

    Está tudo capturado por ideologias partidárias, clientelismos, nacional porreirismo.

    Um problema como este da linha do Tua / Barragem, era um assunto demasiado importante para ser resolvido por políticos. Mas foi. Como são e serão todos, porque a sociedade civil anda hipnotizada com o vira da esquerda e da direita.

    A sociedade civil tem que criar estruturas para se defender, organizar, e actuar no sentido dos seus interesses comuns.
    A esquerda e a direita não podem entrar.

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