A minha dupla

Street art, Barrio del Oeste, Salamanca, artista desconhecido, foto minha.

“Street art” em Barrio del Oeste (Salamanca), artista desconhecido.

Há muito que sei que anda por aí uma mulher que é igual a mim. Já vários me haviam dado conta da sua passagem por distintos lugares nos quais tenho amigos ou conhecidos. Apesar disso, nunca nos cruzáramos.

A primeira notícia que tive da sua existência chegou há perto de 15 anos, numa festa de aniversário. Foi aí que uma amiga me apresentou um sujeito, amigo seu, que me tratou com uma frieza inexplicável. Só mais tarde, em novo encontro com essa amiga, ela me explicou que a reacção dele tinha uma justificação. É que eu era a sósia perfeita de uma antiga namorada e ele ficara perturbado com essa semelhança. Tão perfeita sósia que, pasme-se, até usávamos o mesmo perfume. Naturalmente, decidi nesse instante mudar de perfume. Por mim, a história acabaria ali. Mas nos anos seguintes os relatos multiplicaram-se. “Pensei mesmo que eras tu!”, “Parecem gémeas!”, “São iguaizinhas”.

Depois disto, fui obrigada a concluir que tenho uma dupla.

Na literatura e no cinema não faltam doppelgängers malvados, movidos pelos instintos mais básicos, criaturas sem alma, que vão deixando um rasto de sangue até ao momento final da confrontação e do extermínio. A minha dupla poderia ser uma boa rapariga, que nem sonhava ser dupla de alguém, mas também poderia ser uma pérfida, com olhos raiados de sangue, a semear o caos e a desordem por aí. Como gosto sempre do cenário mais complicado, prefiro a segunda opção. A questão principal era saber até quando ela se manteria invisível aos meus olhos. Porque é sabido que nas histórias de doppelgängers há sempre um duelo final.

Pois, há dias, estava eu a folhear o jornal num café quando o empregado me veio dizer, com sorriso cúmplice:

– Nunca me tinha dito que tem uma gémea. – E apontou com o queixo para a porta por onde acabava de entrar eu. Ou assim me pareceu, porque vê-la era exactamente como olhar um espelho.

Também ela me olhava enquanto avançava para mim, mas no seu rosto não havia espanto. Parou frente a mim e perguntou, com a mesmíssima voz que as gravações me devolvem (que não é a mesma que eu ouço dentro dos meus ouvidos quando falo, claro), se podia sentar-se. Acenei que sim com a cabeça. Confesso que não me apetecia falar e assim reconhecer que também as nossas vozes são idênticas.

Ela sentou-se. E disse-me que me agradecia o esforço feito até aqui, mas que era hora de ser ela a assumir o papel que lhe compete. Que ela seria eu, a partir de agora, e que “é assim que deve ser”. Mas que não me preocupasse, que ninguém daria por nada.

A minha dupla, honra seja feita a quem não me grama, pareceu-me irritantíssima. Estive vai-que-não-vai para dar-lhe um sopapo, mas achei que podia ser apenas uma pobre doida, um caso psiquiátrico, e limitei-me a desejar-lhe boa sorte e a deixá-la a falar sozinha na mesa do café.

Ora, nada disto teria importância se eu não tivesse chegado a casa e descoberto este texto, palavra por palavra, escrito no meu computador, prontinho para aventar. Sendo certo que não o escrevi, tive de reconhecer que poderia tê-lo feito. Só então me dei conta que a ameaça dela já começou a concretizar-se.

Comments

  1. Rose says:

    …não dei por ela ter feito alguma ameaça… :/

  2. Fernando Manuel Rodrigues says:

    Be afraid… Be very afraid… (voz trémula, com música gótica em fundo).

  3. Pedro says:

    Fez-me lembrar um conto o Edgar Allan Poe, o “William Wilson”.

  4. Victor Nogueira says:

    hhhhhhhhhhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmm

  5. jpfigueiredo says:

    Clap, clap, clap

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading