John Lewis e os russos

Se o partido Republicano dos EUA parece ter ensandecido, o espectáculo dado pelos Democratas tem sido patético. Embalados pelas tretas da CIA, até alguns dos mais liberais – no sentido político, claro – debatem a vitória de Trump através de argumentos evasivos, não hesitando em despertar velhos fantasmas tão queridos à direita.

Até o senador John Lewis, ícone da luta pelos direitos civis nos EUA, referência da comunidade negra – ou afro-americana, como eles gostam de dizer, vá lá saber-se porquê – manifestou ruidosamente a sua recusa em comparecer à tomada de posse de Trump por considerá-lo um presidente ilegítimo. Porquê?

Porque o recém-eleito é racista? Porque até teve o apoio não recusado do KKK? Porque é xenófobo? Porque se propõe proibir religiões? Porque é um irresponsável? Pelas incompatibilidades no governo que está a constituir? Não! Porque, diz o senador, a eleição foi condicionada pelos tão cantados hackers russos! Ah, os russos, esses malandros. E assim se foge a enfrentar com seriedade uma situação política séria, com reflexões sérias. São os russos, como nos garantiam muitos dos nossos professores primários nos idos de 50, cumprindo, coitados, o que lhes mandavam.

John Lewis e os seus amigos parecem não se importar com a traição que este comportamento representa para quem os levou a sério. O repetido argumento de que, através de Trump, é Putin que vai governar os EUA, é de tal forma e por tantas razões imbecil que custa a acreditar que haja tanto quem faça dele a sua única tábua de salvação.
Trump é racista? Que importa? Mas os russos, ah, os russos…

Comments

  1. Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

    O José Gabriel toca na questão de fundo.
    É preciso culpar alguém, mas fundamentalmente, é importante ter um inimigo para prosseguir um determinado tipo de política. Assistimos a isso na era do fascismo e a treta continua.
    O problema é pensar que os EUA são o paradigma da sociedade democrática e livre. Mas não é verdade.
    O agitar bandeiras e culpar um inimigo (real ou não, não é isso que está em discussão) é o sistema de irresponsabilização usado pelos irresponsáveis políticos.
    Lembro-me, para terminar, do problema ocorrido nos Estados do Sul dos EUA há dois anos, sobre a morte de alguns polícias. Na altura à conversa com um bom número de amigos e familiares americanos, todos eles apontavam a bandeira da Confederação como responsável pelas mortes e pelos ódios, ao que eu respondia que o que mata são armas e não a bandeira.
    E assim vai o mundo. O que é preciso é ter um ícone responsável pela irresponsabilidade ou indecisão dos políticos.
    Depois, é fazer tudo para que as pessoas acreditem no que se defende. E aí os “merdia” são fabulosos e têm feito o seu trabalho.

  2. Primeiro ponto, racista, xenófobo, maluco, etc, é uma coisa, “ilegitimo” é outra coisa. E negar, nesta altura, as intervenções dos russos nas eleições, já com tantas evidências, acho que não é muito razoável. Vamos tratar toda a gente, desde a CIA aos jornais, passando por senadores do próprio partido republicano como imbecis, como faz o Trump? Isso é a especialidade dele. E também é um mito urbano que o governo russo tem uma central de contra-informação e de hackers ao seu serviço? Pois claro que é…
    Os russos não são já o inimigo clássico dos anos da guerra fria. Não é já disso que se trata. O Putin não é o Brejnev e já não há ameaça nuclear. Trata-se apenas de Poder, de influenciar o mundo com novos meios.

  3. Fernando Manuel Rodrigues says:

    Sobre esta temática do “russos” esclareçam-me o seguinte: Os russos votaram? Conseguiram de alguma forma entrar na contantagem dos votos e “aldrabar” a mesma? Se sim, as eleições deveriam ter sido impugnadas. Se não, estamos a falar de quê? Os “média” tentaram de todas as formas influenciar a eleição (como sempre fazem). Falharam. Hillary Clinton pensava que ia ser levada ao colo. Estatelou-se. Pretender que a culpa da eleição de Trump é dos russos é passar um enorme atestado de “menoridade” ao povo americano. Além disso, o sistema eleitoral usado é, em parte, responsável pela derrota de Hillary Clinton, já que em termos de votação absoluta ela foi a mais votada. Mas os americanos discutem essa questão? Nah… Isso é intocável.
    Sejamos claros: Os “democratas” escolheram uma má candidata. Mesmo assim, ela teve mais votos, e só perdeu graças ao sistema anacrónico usado pelos EUA. Façam “mea culpa” e aguentem. Deixem de atirar as culpas para cima dos outros (ainda por cima “fantasmas”). Preparem-se, isso sim, para fazer uma oposição responsável e credível, avançar com propostas concretas e claras ao povo americano, e tentar encontrar um(a) candidato(a) credível para a batalha eleitoral daqui a quatro anos. Entretanto, salvem o que puderem do que foi construído (que nem foi assim tanto).

    • Que grande salada… russa ;). O Fernando mistura coisas diferentes: o sistema eleitoral e eventuais interferências russas. Quanto à primeira, não é verdade que não esteja a ser discutido. Está e muito, incluindo a própria Hillary já se lhe referiu. Até porque é hábito saudável dos americanos discutirem tudo até à exaustão.
      Quanto à interferência, dá jeito achar que os serviços secretos e FBI americanos são completamente tolinhos, bem como políticos, inclusive do campo republicanos. Mas acredita realmente nisso? Olhe que corre o risco de passar por ingénuo..
      Não se trata sequer de aldrabar a contagem, mas sim de manipular a opinião pública. Qualquer um manipula, ao seu nível, mas que isso seja feito por um governo estrangeiro, é um pouco mais sério.

      • Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

        Os norte-Americanos têm passado dos Russos, desde a segunda guerra Mundial até aos nossos dias, a imagem do déspota com sangue nos dentes, desrespeitador da liberdade e dos direitos humanos (que só os americanos conhecem e praticam), dos invasores inveterados de terra alheia e ainda de eternos defensores de um terrível “Eixo do Mal”.
        Se após tal esforço a opinião pública americana “voltou o bico ao prego” ao situacionismo, seremos forçados a concluir que a maioria dos votantes americanos não passam de uns atrasados mentais.
        A verdade, é que dá muito mais jeito acreditar em histórias da carochinha que reflectir em interno sobre o que se passa numa “democracia” dominada pela ganância e onde a anarquia começa a dar passos firmes.
        Que os americanos pensem isso e entendam não pôr em causa o sistema (embora o tenham posto), ainda entendo. Que nós, pessoas muito mais sérias e cultas que a maioria dos americanos assim pensemos, já me custa mais admitir.

        • Bem, que a Rússia tem sido governada por déspotas desrespeitadores da liberdade e dos direitos humanos, parece-me certo. E nem é preciso ser-se de direita para achar que a América é um pouco melhor. É pelo menos aceitável dizer-se que é um pouquinho melhor? Também já sei que a América fez coisas más, invasões, etc, já sei, o que eu não sei é para que é chamado este tema. Eu nem sequer estou a defender situacionismo nenhum, nem a dizer que o Putin é o Estaline ou o Caligula. Estava apenas a dizer que há fortes suspeitas de interferência do governo russo nas eleições americanas.

          • Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

            Naturalmente acredita-se no que quiser com a mesma liberdade que eu trago para aqui aquilo que me parece ser adaptado.
            Ninguém o acusou de nada. Apenas constato que acredita em algo em que eu não acredito, nem posso entender como será possível acontecer, a menos que lidemos com verdadeiros atrasados mentais, coisa que não penso dos americanos.
            O problema está justamente na comiseração com que trata verdadeiros actos assassinos como “invasões” e os outros por “déspotas desrespeitadores da liberdade e dos direitos humanos”. Quando assim é, a conversa transforma-se num atravessar do deserto e na verdade, depois do que disse, sinto que continuar a conversa é estar a “trocar repetidos”.
            Cumprimentos.

      • Fernando Manuel Rodrigues says:

        Caro rififi. Serie talvez ingénuo, mas que os russos espiam constantemente os americanos (e outros, e os americanos os russos… e outros) e tentam influenciar sempre que podem as questões internas de ambos os países, parece-me um dado adquirido. Nem uns nem outros são santos, e todos o sabemos.
        Mas uma coisa é tentarem influenciar as questões internas, outra coisa é serem bem sucedidos. Concretamente, a pretensa interferência russa traduziu-se em quê? Se souber, diga-me. Eu não sei. Até agora, só li que hás suspeitas (e alegadas provas – se calhar tão boas como as que exisitiam sobre as armas de destruição maciça do Saddam) que não são do conhecimento público.
        Volto a inisistir – é um atestado de menoridade ao povo americano. Basicamente, estão a dizer que a democracia americana é tão frágil que uma qualquer interferência externa é susceptível de influenciar o resultado eleitoral num país daquela dimensão. Acredita mesmo? Sou eu o ingénuo?

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