Para mais informação, por favor leia outra vez

Scarfolk, uma cidadezinha no noroeste de Inglaterra, é um lugar estranho.

Para começar, nela o tempo deteve-se em 1979. Com efeito, desde então, tem revivido a década de 1970, uma e outra vez, num loop infinito.

Se os receios são sempre reveladores da identidade de um grupo, será útil termos em conta que o grande temor dos seus habitantes é a raiva. As dentadas das crianças são particularmente temidas. Na época de maior receio por parte da opinião pública, as crianças até aos 7 anos eram mesmo obrigadas a usar um açaime sempre que saíam de casa. Durante muitos anos, contava-se a pavorosa história da pequena Kimberley Twix, que em 1971, com apenas seis anos, comeu dois membros da sua família, um assistente social e o braço de um soldado das forças especiais que fora enviado para deter a criança esfomeada.

O controlo infantil foi sempre, de resto, uma das prioridades do Conselho, a autoridade máxima da cidade. Foram feitas experiências pioneiras com alucinogénios, tendo-se descoberto que a dosagem certa da dietilamida do ácido lisérgico poderia resolver os problemas de disciplina infantil e juvenil.

Nenhum pormenor foi descurado. O Natal, por exemplo, é vigiado pela figura tutelar do “Big Father”, o Grande Pai. Todos os presentes para as crianças devem ser aprovados pelo Conselho, que avalia a adequação do presente à criança. Por exemplo, se uma criança mostra indícios de poder vir a tornar-se uma livre-pensadora, já não poderá receber livros ou qualquer outro tipo de material educativo. Em alternativa, será recomendada a oferta de sedativos e/ou antidepressivos na dosagem oportuna. Um dos slogans propagandísticos que haveria de tornar-se célebre alertava mesmo “O Natal pode matar. Não aceite presentes de estranhos.”

Outra das inovações introduzidas em Scarfolk foi a criação da carrinha que detecta pensamentos, um veículo municipal em circulação permanente pelas ruas da cidade, apetrechado com potentes detectores. Graças a esta carrinha, foi possível apanhar e deter os indivíduos que tinham pensamentos errados. Um “pensamento errado” é, de acordo com a legislação de Scarfolk, um pensamento que contém temas que não estão certos, e, como tal, estão errados, porquanto são puníveis. Um pensamento ainda não pensado poderá ser potencialmente errado, mas apenas poderá ser punível quando efectivamente for pensado e os seus temas puderem ser apreciados e considerados errados pelas autoridades. Pensamentos errados podem conduzir a uma multa de 500 libras ou a uma pena que pode chegar aos cinco anos de prisão.

Scarfolk é, não há dúvidas, uma cidade peculiar. Famosa pela sua rede de esgotos, pelas instituições de saúde mental de alta segurança, por ser frequentemente escolhida para a realização de conciliábulos de bruxas, e por ter sido cenário de uma série de assassínios macabros, não era, porém, um destino turístico popular entre ingleses e estrangeiros. Para alterar esta situação, em 1971, foi lançada uma campanha de promoção turística que o Conselho haveria de considerar um enorme êxito. No ano seguinte, sete turistas visitaram Scarfolk. Curiosamente, todos se chamavam Timothy, usavam roupas idênticas e comunicavam por telepatia, o que não passou despercebido às perspicazes gentes da cidade.

Já o tema da imigração, cedo se revelou problemático. Até 1978, os estrangeiros eram classificados pelas autoridades como gado e subcategorizados pelo odor. Definir quem era inglês e quem não era foi-se tornando complicado, ao ponto dos nacionalistas radicais terem chegado a reduzir a lista dos “verdadeiros ingleses” na cidade a apenas 9 pessoas. A partir de então, as regras de classificação tiveram de ser afrouxadas.

É certo que as autoridades dispunham de um conjunto muito amplo de informações sobre os seus cidadãos. É que o Conselho de Scarfolk gravava todos os cidadãos (em casa, na rua, no trabalho, na floresta, na praia) e mantinha em arquivo a informação recolhida. Essa informação foi mais tarde vendida a um consórcio de empresas, uma vez que os gastos com a recolha eram consideráveis e não se podia esperar que o Conselho continuasse a financiar esta actividade sem algum tipo de retorno económico. As empresas depressa descobriram o melhor uso para os dados arquivados. A informação delicada era habitualmente usada para chantagear os cidadãos, uma actividade amplamente rentável. Nos casos em que se considerava que a informação tinha valor como entretenimento (normalmente, perversões de tipo sexual) era emitida em programas televisivos. Alguns dos cidadãos mais pervertidos chegaram a transformar-se em figuras públicas graças a essas transmissões televisivas.

Em 1970, Scarfolk levou a cabo a campanha “Racionamento da Democracia”. O Conselho alertou para os riscos que a democracia corre quando exposta aos caprichos do povo. A democracia, frisou o Conselho, só pode ser preservada se o governo estiver nas mãos de líderes autonomeados, que decidem quando e como ela deve ser aplicada. Para o bem da sociedade, deve haver cortes na democracia. Desta forma, as eleições acabaram por ser adiadas por pelo menos 16 anos. A proposta foi aprovada pelo Conselho e anunciada aos cidadãos: “Ficarão felizes por saber que votamos SIM por vós”.

Foram concedidos mais direitos às mulheres. A 8 de Março de 1970, entrou em vigor a lei que permitiu que as mulheres saíssem de casa sem autorização por escrito. Por razões de segurança, apenas podiam deslocar-se ao supermercado, ao cabeleireiro, ao bingo e à maternidade, ficando totalmente proibido o seu acesso a bibliotecas e escolas.

Mas nem tudo foi fácil neste processo de redefinição democrática. Em 1975, o governo da cidade, preocupado com a sua imagem perante os cidadãos, decidiu torturá-los para saber exactamente qual a sua opinião acerca do poder. A maioria dos torturados caracterizou o Conselho como “alegremente totalitário” ou “despótico, mas de uma forma simpática”. Apesar disso, as autoridades sentiram que era necessário introduzir algumas mudanças no regime. E assim se chegou à “Reforma da Verdade”, implementada em 1976, que visava libertar os cidadãos da ditadura dos factos, essa matéria opressiva e tirânica, que nem sequer servia os interesses económicos da cidade. Com a “Reforma da Verdade”, os factos passam a ser criados e autorizados por um novo departamento oficial, o “Fact Office”, também conhecido como “F-OFF”.

Uma das consequências desta Reforma foi a necessidade de submeter os cidadãos a aulas de Deseducação. Afinal, e como bem sintetizava o Conselho: “O conhecimento é poder e o poder corrompe absolutamente.”

E houve, inevitavelmente, subversões. Talvez a mais famosa tenha sido a transmissão de uma estação de televisão pirata que interrompeu um programa infantil sobre o Humpty Dumpty para substitui-lo por um documentário sobre a paixão de Estaline pelo badmínton. As autoridades depressa desmantelaram a célula terrorista por detrás deste acto subversivo e descobriram tratar-se de um grupo totalitário de professores de ginástica.

Enfim, sobressaltos que não puseram em causa a interessante experiência social levada a cabo em Scarfolk.

***

Por detrás da história de Scarfolk está o génio de Richard Littler , um escritor e artista gráfico, que  assim esconjurou os seus fantasmas de uma infância passada na Inglaterra pré-thatcheriana. O resultado é um universo que cruza Orwell com Monty Python e nessa fusão nos devolve a imagem distorcida do mundo que construímos. Scarfolk, amável leitor(a), é um blogue. O seu lema: “Para mais informações, por favor leia outra vez”.

Comments

  1. jpfigueiredo says:

    Fantástico!

Trackbacks

  1. […] felizmente, a história de Scarfolk, em boa hora aqui trazida pela Carla Romualdo, trocou-me as […]

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