“Samir, o sudanês por Rafael Barbosa no JN

Rafael Barbosa, Editor Executivo do JN:

“Enquanto escrevo, as televisões dão em direto o debate parlamentar em que se discute se a TSU dos patrões deve ou não baixar, para compensar a subida do salário mínimo de 530 para 557 euros. Só os vejo, não os ouço. Os dedos em riste, as expressões faciais vincadas, os sorrisos irónicos ou cínicos, os aplausos entusiasmados aos chefes. O culminar de quatro semanas de troca de argumentos, de cambalhotas políticas e acrobacias retóricas. Os entendidos chamam a isto debate político. Olhando para as bancadas do Parlamento, assim, sem som, diria que é um teatro. Um teatro absurdo, se tivermos em conta que, na sua origem, está, afinal, se é ou não possível pagar mais um euro por dia a cerca de 650 mil trabalhadores. Gente pobre e explorada que vai continuar a ser pobre e explorada.

 Enquanto escrevo e olho de relance as televisões, intuindo os decibéis produzidos pelo entusiasmo dos tribunos, recordo o relatório da Oxfam (organização não governamental dedicada ao combate à pobreza e à desigualdade) segundo o qual os oito homens mais poderosos do Mundo acumulam tanta riqueza como os 3600 milhões de pessoas que fazem parte da metade mais pobre da humanidade. E lembro-me, concretamente, de que no segundo lugar, entre os oito empreendedores, está o espanhol Amancio Ortega. E não posso deixar de pensar que é o multimilionário dono do grupo Inditex quem verdadeiramente beneficia do miserável salário mínimo que se paga em Portugal. Mais do que o patrão da pequena ou média empresa têxtil do Vale do Ave que esmaga os preços para conseguir a encomenda da Zara.

Enquanto escrevo e observo os gestos quase cacofónicos dos parlamentares, recordo a história de Samir, lida umas horas antes. O rapaz de 17 anos que fugiu à guerra e à fome no Sudão, atravessou o deserto até à costa líbia, fez-se ao Mediterrâneo até Itália, calcorreou a Europa do Sul para o Norte, até ficar encurralado na “Selva” de Calais. Nunca chegará à terra prometida. Morreu este mês, num centro francês de acolhimento para menores, de ataque cardíaco, poucos dias depois de lhe dizerem que o Reino Unido recusava o seu pedido de asilo. É assim, este admirável mundo novo: a riqueza não se partilha, protege-se com muros e arame farpado ou usando os cofres virtuais dos paraísos fiscais. Vivemos o que a Oxfam batiza como a era “dourada” dos super-ricos, alicerçada em dogmas que nenhum político no poder, incluindo os populistas, quer ou pode contrariar: o mercado tem sempre razão e o papel dos governos deve ser minimizado; as empresas têm de maximizar lucros e garantir maiores vantagens para os acionistas, seja qual for o custo; a riqueza individual (mesmo a extrema) é um sinal de sucesso.

 

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Só é assim, porque uma boa parte de nós se deixou comprar. Em especial as nossas elites. Mas nós também não ficamos de fora, apesar de termos a mania de que nunca somos culpados de nada.
    Depois do monumental fracasso da Revolução Bolchevique em toda a linha, e com o terrível desfecho das II Guerra Mundial, em que ambas deixaram a Europa e uma boa parte da Ásia completamente de rastos, o Mundo dito Ocidental parou para pensar, (será que parou mesmo?) tentando fazer um esforço para que nada do que tinha acontecido na primeira metade do século XX, se repetisse. Mas isso foram as primeiras gerações. As que viveram a Guerra, os Estalinismo, etc.
    Mas foi Sol de pouca dura.
    A economia global não se restringe a um capitalismo ético, com regras, onde os Estados promovem a iniciativa privada assente numa lógica racional de desenvolvimento tecnológico e inovação, criando riqueza com o valor acrescentado das suas manufacturas, ou dos bens de investimento transaccionáveis. Aquilo que de certa forma é feito pelos alemães.
    Quantos Alemães estão nos dez ou vinte homens mais ricos do Mundo?
    E já agora, Japoneses?

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