E se os linguistas dão o alarme? Dêem ouvidos

deemNo Público de hoje, Rui Tavares, de modo muito avisado, chama a atenção para a importância de, no mínimo e com espírito crítico, darmos ouvidos aos historiadores, tendo em conta as perigosas semelhanças entre alguns acontecimentos da actualidade e outros que, no passado, vieram a dar origem a ditaduras ou a confrontos bélicos. O título do texto é “E se os historiadores dão o alarme? Dêem ouvidos”.

Esta tendência para não ouvir precisamente os especialistas é geral. Nos mundos profissionais em que me movo, é, até, grave. Na Educação, por exemplo, as opiniões dos professores são frequentemente desvalorizadas, com a desculpa de que são parte interessada e, portanto, desinteressante, deixando o espaço público inundado por especialistas de gabinete que tudo sabem (ou julgam saber) sobre o que deve ser uma aula ou uma escola.

Acontece que Rui Tavares é um defensor do chamado acordo ortográfico (AO90), tendo-se já pronunciado sobre o assunto com a frontalidade e o voluntarismo que o caracterizam, o que o leva, em relativa coerência, a declarar que adopta o AO90 nas suas crónicas, num jornal que continua a resistir ao uso desse instrumento, numa sã convivência de diferentes visões sobre a ortografia.

O leitor mais atento terá notado o adjectivo “relativa” no parágrafo anterior. Passo a explicar: Rui Tavares, embora defenda o AO90, opta, por vezes, por não o aplicar, o que lhe retira coerência como defensor e como utilizador. Na realidade, há cerca de cinco anos, assinalei o uso da forma “pára” pelo cronista em causa, forma essa completamente proscrita na letra do AO90. Nas redes sociais, Rui Tavares defendeu-se como pôde, aludindo ao direito do indivíduo sobre a ortografia que prefere, o que, na realidade, é uma posição nada ortográfica.

Hoje, Rui Tavares inclui no título da sua crónica a forma “dêem”, dotada de um acento circunflexo que o AO90 pretende eliminar. No texto propriamente dito, a mesma forma ressurge com o acento intacto, tal como “lêem”, igualmente acentuada, contra o número 7 da Base IX do, por assim dizer, acordo ortográfico. Podemos dizer que, no fundo, Rui Tavares defende e não defende, pratica e não pratica.

Lamenta-se que Rui Tavares não pratique com os linguistas aquilo que defende para os historiadores, ou seja, conceder um mínimo de atenção aos especialistas. Poderá alegar que há linguistas que defendem o AO90, como, na verdade, haverá historiadores que desvalorizam os sinais preocupantes que grassam pelo mundo. Recomenda-se, então, o uso do espírito crítico e uma reflexão sobre a essência da ortografia.

As imperfeições da democracia ou dos homens levam a que o perigo do regresso à ditadura seja permanente e, por isso, devemos ouvir, evidentemente, a voz dos historiadores. Quando falamos de ortografia, no entanto, estamos a falar de uma ditadura benigna, referência fundamental e consistente até para aqueles que, por várias razões, queiram desobedecer-lhe. A única dúvida que devemos ter acerca de uma palavra deve consubstanciar-se na frase “Como é que isto se escreve?”, frase amiga da compreensão, da memorização e da consulta de dicionários, acções que não empurram parentes para a lama. A essência de uma ortografia não pode estar em dúvidas relativas à pronunciação e não está, com certeza, na multiplicação de “facultatividades” autorizadas pelo próprio documento que rege uma ortografia, permitindo o aumento de grafias diferentes da mesma palavra e originando, por força da analogia, erros inauditos (também já podemos falar em “fatos alternativos”), ao mesmo tempo que não cria a anunciada ortografia única do mundo lusófono.

Rui Tavares poderá objectar que os historiadores poderão, de preferência, estar errados quando fazem conjecturas ou previsões pessimistas, mas, mais uma vez, há uma diferença: o caos ortográfico em que estamos mergulhados já tinha sido previsto por linguistas como Fernando Venâncio, António Emiliano, João Andrade Peres ou Francisco Miguel Valada. No mesmo jornal em que escreve Rui Tavares, Nuno Pacheco, com humor e rigor, tem demonstrado à saciedade o desastre ortográfico em que estamos mergulhados.

Enquanto não vivermos num mundo pós-apocalíptico em que até respirar possa ser uma das maiores preocupações do ser humano, a ortografia nunca será uma questão menor, porque, sendo consistente e coerente, é um pilar fundamental da comunicação, numa sociedade em que a escrita tem um papel cada vez mais importante. Isso não se compadece com a leviandade de quem reclama o direito evidente e adquirido a escrever conforme lhe apetecer, porque essa não é a discussão. Se os linguistas, e outros que pensam sobre a língua, dão o alarme, dêem ouvidos.

Comments

  1. nuno says:

    A sã convivência do jornal é tanta que até tempos direito ao modo analfabeto de escrever, seja em que AO for: http://linguagista.blogs.sapo.pt/quando-as-nossas-palavras-nao-chegam-1935186

    • nuno says:

      Temos um apreciador do inglês para armar aos cucos nos jornais portugueses. Daí ter dado um “thumb down”. Deve ser bife ou assim.

  2. “Podemos dizer que, no fundo, Rui Tavares defende e não defende, pratica e não pratica.” Na ortografia tal como na política.

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