“Juntam-se duas coisas que nunca se tinham juntado antes”

A “Lagoa dos Peixes” passa boa parte do ano congelada. Saber isto provoca algum desconforto, porque é inevitável pensar nos peixes, os tais que dão o nome à lagoa, e que passam nove meses aprisionados num cubo de gelo. Talvez houvesse peixes muito lá no fundo, sob a capa glaciar que reveste a lagoa. Talvez seja esta, afinal, a época mais tranquila das suas vidas, quando são poucos os seres humanos que se aproximam da lagoa e nenhum ousa perturbar a sua superfície gelada.

A estrada sinuosa que conduz ao lugar estava desimpedida, apesar do muito gelo que ainda havia no topo da montanha. E foi na beira dessa estrada que encontrei María de los Milagros, uma velhinha de cara enxuta e mãos fortes que me agarraram com força para a fotografia. Estava sentada a tomar o precioso sol de Inverno serrão, ela e um grupo de gente da sua idade, homens e mulheres, imóveis como pedras, mas com o olhar perspicaz para avistar forasteiros e rir, sem mover um músculo, dos seus arrebatamentos paisagísticos.

Fui desafiada por quem me acompanhava a fazer uma foto entre eles, os velhinhos da serra, perguntei-lhes se queriam e só uma das senhoras me disse que não, que não gostava de aparecer. María não só acedeu, como me agarrou o braço e demorou a soltar-me. Os outros riam para disfarçar o embaraço, mas María manteve-se séria, agarrada a mim como se tivéssemos passado muitas tardes juntas, na beira da estrada. Quis saber o meu nome, de onde vinha, e contou-me coisas suas. Havia na nossa conversa a solenidade de um encontro entre representantes de povos que por primeira vez se olham nos olhos. Demos dois beijos, na despedida, e vim a pensar na improbabilidade do nosso encontro, se eu nem planeara estar ali, nem sabia que lagoa era aquela que veria dentro de pouco.

Na descida, já não estavam Milagros e companheiros, apenas o banco vazio, já sem sol. Se agora voltasse a ver Milagros, coisa improvável, sentar-me-ia ao seu lado para contar-lhe que um grupo de miúdos de uma escola primária de Orkney, na Escócia, adoptou uns peixinhos dourados como animais de estimação. Quando estes, como é habitual nos peixinhos dourados, morreram, os professores ajudaram a turma a preparar-lhes um funeral viquingue. As crianças construíram barcos com pacotes de cereais e embalagens de ovos, puseram lá os restos mortais do Bubbles e do Freddy, lançaram os barquinhos a um riacho próximo e prenderam-lhes fogo, não sem antes terem lido as memórias que haviam escrito sobre a curta passagem dos peixinhos pelas suas vidas. Bubbles e Freddy partiram, então rumo ao Valhalla, onde foram recebidos por Odin e conduzidos a uma das 504 salas do paraíso da mitologia nórdica. E embora não tivessem morrido no campo de batalha, como os guerreiros viquingues, talvez,  ainda assim, tivessem tido a honra de ser levados pelas valquírias.

Os peixes gelados da lagoa e os peixes incandescentes da Escócia aparecem-me agora, quando penso neles, aos saltos em águas límpidas, sob o olhar contemplativo de uma protectora improvável, María, a dos milagres.

Juntam-se duas coisas que nunca se tinham juntado antes. E o mundo muda.”, disse Julian Barnes. As pessoas podem não se dar conta disso, mas ele muda, ainda assim.

Comments

  1. José Corvo says:

    Ao ler esta crónica sobre os peixes que vivem congelados durante 9 meses veio-me à memória o facto de as minhas pernas congelarem, isto é, ficavam hirtas, tal como um bloco de gelo, durante a noite e de manhã quando acordava tinha de lentamente as ir descongelando até as conseguir mexer.
    Isto acontecia porque os comandantes militares nos punham a dormir no chão debaixo de uma pequena tenda com temperaturas negativas na Serra do Marão em Dezembro já no fim da recruta. Até hoje nunca senti qualquer problema mas sempre tive receio de que o frio extremo pudesse ter afectado os vasos sanguíneos, dilatando-os. Esta preparação era em tudo contraproducente, já agora aproveitando o espaço para fazer este desabafo que nunca fiz, pois que o objectivo era prepararem-nos fisicamente para enfrentar os calores de África que vim mais tarde a enfrentar. Os comandantes militares tinham um comportamento nazi e em 1968 tratavam os militares à bofetada e a pontapé e alguns eram jovens oficiais milicianos mas que aderiam aquela prática a começar pelo bivaque que usavam na cabeça. .

  2. José Galhoz says:

    São factos como o cruzamento da historia do enterro viking de peixinhos por crianças da Escócia com a do encontro com os velhos à beira de uma lagoa gelada com peixes que ajudam mesmo o mundo a avançar, embora de forma imperceptível. Mesmo assim, nada impede, bem pelo contrário, que tentemos acelerar um pouco essa mudança, escolhendo muito bem os métodos e os meios.

    • Ana Moreno says:

      Infelizmente, o que parece é que estamos a avançar para trás, a regredir. Ou talvez seja do meu olhar…
      Maravilhosa crónica pela força anímica que leva a despoletar um comentário como o do José Corvo. Bem digo, Carla, que as tuas crónicas levantam sedimentos sociais.
      José Corvo, emociona-me a profundeza autêntica e simples do que escreve. Um abraço.

    • Sem dúvida, José Galhoz.

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