A Seção Consular de Portugal na Bélgica não existe

Texto publicado anteontem no Luso.eu, portal da comunidade portuguesa na Bélgica.

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La linguistique est une science, humaine certes, non pas molle.
— Marc Wilmet

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Comecemos pelos fatos. Para quem não estiver a par destes assuntos, segundo o dicionário brasileiro Houaiss, «algo cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível» é a definição de fato. O fato, nesta acepção, ou seja, na acepção de facto, abunda, como se espera, no brasileiro Diário Oficial da União. Contudo, como é lamentável e culpa única e exclusiva das autoridades portuguesas, os fatos na acepção de factos abundam no homólogo português, no Diário da República. Efectivamente, no sítio do costume, com ‘fatos’ e ‘contatos’ e ‘seções’ se tem vindo a adoptar o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90).

Recentemente, o texto A Seção Consular de Portugal na Bélgica não é caso único, de Ana Garrido, fez furor em determinados sectores da população portuguesa: nomeadamente junto de quem se exprime por escrito em português europeu. Esse texto, composto por grafias como ‘setores’ ou ‘afeta’, dir-se-ia redigido à luz do AO90. Todavia, a ‘seção’ (no título e no corpo do texto) é norma ortográfica do português do Brasil, onde a grafia <seção> (por <secção>) é adoptada.

Efectivamente, a ‘secção’ encontra-se, tal como os ‘factos’ e os ‘contactos’, entre os danos colaterais do AO90 na norma europeia do português. Este trio – ‘secção’, ‘facto’ e ‘contacto’ – foi o protagonista do documento A adopção do Acordo Ortográfico de 1990 e o Diário da República: caos, anarquia e disformidade, que redigi e entreguei em 2013 à Assembleia da República. Desde então, o panorama mantém-se aterrador.

Diante desta anormal quantidade de ‘fatos’, ‘contatos’ e (em menor número) ‘seções’ no Diário da República – primeiro, divulgada no documento enviado à Assembleia da República; mais recentemente, no Aventar  – uma pergunta que muitos me fazem é: porquê? Segue-se um canónico decálogo sobre o assunto e um brevíssimo resumo com três alíneas sobre as razões da abundância destas grafias.

1. Em 1904, Gonçalves Viana afastou a hipótese de as grafias ‘fato’ (= ‘facto’) e ‘facto’ coexistirem no sistema ortográfico português e indicou esta última (‘facto’) como a única grafia admitida. Naquele tempo, em Portugal, havia duas prolações possíveis ([ˈfatu] e [ˈfaktu]). Trata-se de dado histórico, oficialmente conhecido dos deputados portugueses, pelo menos, desde Fevereiro de 2013, altura em que o documento já aludido foi entregue na Assembleia da República.

2. Actualmente, não há qualquer obra de referência que admita /k/ ausente de [ˈfaktu] de [kõˈtaktu] ou de [sɛˈksɐ̃ũ̯] na norma europeia. Em linguagem:  nenhuma obra de referência admite a ausência do ‘c’ da sequência consonântica de ‘facto’, de ‘contacto’ e de ‘secção’ em português europeu. Contudo, ao contrário daquilo que algumas figuras públicas portuguesas crêem (nestas e noutras coisas, convém estudar, para evitar os credos) existem prolações de ‘fato’ (por ‘facto’) ou ‘contato’ (por ‘contacto’), nomeadamente em débito rápido. Não conheço registos de ‘seção’. Se necessário for, tenho gravações de ‘fatos’ e de ‘contatos’ para iluminar os cépticos. Todavia, apesar de episódica ausência à superfície, a forma portuguesa europeia de base contém sempre (efectivamente, sempre) a oclusiva ilustrada pelo cê medial quer em ‘facto’, quer em ‘contacto’, quer em ‘secção’.

3. Aliás, embora com características diferentes e servindo apenas para ilustrar outra dimensão do fenómeno, é conhecido o exemplo clássico ‘tar’ em vez de ‘estar’. A supressão segmental que desencadeia um ‘tão’ em vez de ‘estão’ não impede o reconhecimento de ‘estão’ como a forma de base. Apenas uma transcrição com objectivos de ilustração, com higiénico recurso ao alfabeto latino (como acabo de fazer), ou uma característica da oralidade de uma personagem, distinguida por um romancista (por exemplo “Papa quido que tás maguinho”, de António Lobo Antunes, na Memória de Elefante), poderão, passe o plebeísmo, ter um ‘tar’.

4. Voltando ao nosso assunto e recorrendo, por conveniência, a uma opaca expressão do AO90, a “pronúncia culta” portuguesa apenas admite a forma com oclusiva, à qual correspondem as grafias ‘facto’, ‘contacto’ e ‘secção’. Este é um dos motivos que provam a inadequação de outra expressão do AO90: “critério fonético”.

5. Portanto, sendo as prolações correspondentes a ‘facto’, ‘contacto’ e ‘secção’ as únicas admitidas em Portugal, perante a formulação da base IV do AO90 «quando oscilam entre a prolação e o emudecimento», creio que não há necessidade de utilizar outros documentos, como a Nota Explicativa do AO90, para a fundamentação e para o esclarecimento, pois a resposta (embora vaga e imprecisa) encontra-se na própria base IV.

6. Obviamente, a maioria da população afectada pelo AO90 não dispõe da informação histórica aqui veiculada. Quando refiro «a maioria da população afectada pelo AO90», estou a incluir quer pessoas que assinaram o AO90, quer pessoas que assumiram um papel essencial na vigência e aplicação deste instrumento. O texto da base IV dirige-se a falantes e escreventes idealizados pelos autores e promotores do AO90 e, por isso, o desastre está à vista.

7. Discordo, há muitos anos e muito bem acompanhado, da introdução generalizada e irrestrita de facultatividades ortográficas (leia-se João Roque Dias, António Emiliano, Francisco Miguel Valada e Maria do Carmo Vieira, Pela suspensão imediata do Acordo Ortográfico, PÚBLICO, 25/6/2011). Contudo, os problemas aqui apreciados – ‘facto’/’fato’, ‘contacto’/’contato’, ‘secção’/’seção’ – têm características diferentes de, por exemplo, ‘sector’ e ‘setor’ ou ‘aspeto’ e ‘aspecto’ . Aliás, as menções que fiz a ‘facto’/’fato’, ‘contacto’/’contato’, ‘secção’/’seção’, conhecidas dos leitores do PÚBLICO por uma tabela já desactualizada (leia-se Luís Miguel Queirós, Adversários do Acordo Ortográfico reclamam referendo , PÚBLICO, 20/4/2015) que apresentei na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, não impede que estas grafias continuem a passear alegremente pelo sítio do costume: ainda no outro dia se lia «Seção de Contratualização Pública e Património», num anúncio de concurso público.

8. Dito isto, concordo há muitos anos com a necessidade de, num texto como o do AO90, constar uma clara e inequívoca repartição geográfica de grafias, em vez de se deixar preguiçosamente aos dicionários e vocabulários a espinhosa tarefa de lidar com o caos instalado. Contudo, quem quiser estar sem rodeios nesta matéria terá de admitir que a empresa falhou.

9. Discordo da possibilidade de as grafias ‘fato’ e ‘contato’ serem admitidas em Portugal, à luz da base IV, tendo em conta aquilo que expliquei, principalmente nos pontos 2, 4 e 5. Discordo dessa possibilidade, porque faço, fatal e necessariamente, uma leitura restritiva da expressão “critério fonético”, adoptada no texto do AO90: é um erro terminológico e ainda não percebi se não deram logo por ela, se ainda não perceberam ou se, passe de novo o plebeísmo, se estão nas tintas.

10. Para terminar o decálogo, gostaria de sublinhar a existência de dois tipos de população afectada pelo AO90 sem a informação acima prestada: cidadãos comuns e as tais pessoas que assinaram o AO90 e assumiram um papel essencial na sua vigência e aplicação, entre as quais se encontram elementos difusores da ideia errada de que «agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)». Porventura, a esta gente devemos, além de uma grave perturbação na consciência fonológica e grafémica, uma generosa fatia dos fatos que por aí abundam.

 

Resumo

Há ‘fatos’ em vez de ‘factos’, ‘contatos’ em vez de ‘contactos’ e ‘seções’ em vez de ‘secções’ porque:

a) A base IV é opaca;

b) A inadmissibilidade de, por exemplo, ‘fato’ em vez de ‘facto’ não é conhecida de todos os escreventes de português europeu;

c) Há quem tenha assinado o AO90 e escreva coisas como «agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)».

 

Nótula: Este texto teve como título provisório A exfetação e a abundância das seções. Não sei se o leitor conhece a palavra ‘exfetação’. Pois bem, se acha que ela rima com ‘afetação’, versão AO90 da palavra portuguesa ‘afectação’, engana-se. Em ‘exfetação’, aquele ‘e’ antes do ‘t’ tem o mesmo valor do ‘e’ antes do ‘d’ de ‘vedação’ ou do ‘e’ antes do ‘t’ de ‘vegetação’. Exactamente: mas agora há quem queira à viva força que ‘afectação’ e ‘exfetação’ rimem.

Comments

  1. Alexandre Carvalho says:

    O Acordo Ortográfico é uma coisa boa: boa para quem não sabe falar nem escrever; feita por gente de cérebro retardado e desgastado e com o apoio dormente de políticos alpinistas do poder e que de nada percebem excepto o safarem-se à custa do contribuinte ou seja, uns Xico-espertos da vida, gente do copianço nas escolas e que nunca soube juntar duas letras. Para esses o AO90 é uma ferramenta indispensável para a sua sobrevivência, pois doutro modo toda a gente ficaria a conhecer a sua iliteracia e analfabetismo.

Trackbacks

  1. […] eram frequentes ou sistemáticas. Quanto ao ‘facto’ e ao ‘contacto’, creio que estaremos mais ou menos conversados. Quanto ao extracto → extrato → estrato, certamente poderemos conversar noutra altura, tirando […]

  2. […] Quem assinou o AO90 foi quem escreveu «agora facto é igual a fato (de roupa)» . Como é sabido, não escrevi tal coisa. Logo, a culpa não é […]

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