Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017)

[André Rodrigues]

O meu primeiro ano da Faculdade foi uma espécie de pesadelo, apenas no segundo viria o gosto de estudar e aprender e, ocasionalmente, algumas notas boas, que são o menos importante, ou deveriam ser.

Nesse primeiro ano, no meio da prosa “barbaramente académica” em que nos afogávamos, havia dois livros (“Estudos de História da Cultura Clássica”, vols. I e II, da FCG), escritos numa linguagem que era, ao mesmo tempo, clara e rigorosa, simples e de uma riqueza profunda. Dava-me a entender uma relação privilegiada com a língua portuguesa, própria daqueles quem lhe conhecem a ossatura.

Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) levava-nos pela mão para aprendermos o que diz um vaso grego sobre a vida daqueles que o fizeram, falava do escudo de Aquiles como um passaporte para uma outra civilização. Falava para todos, alunos do primeiro ano e especialistas, com a mesma clareza cristalina.

Lembro também uma sua resposta, de memória, a uma entrevista, sobre o problema da recepção e interpretação dos textos e artefactos da Grécia antiga, hoje: “não penetramos mais facilmente no universo dos gregos antigos que no dos aborígenes australianos”. Dito por ela, pareceu-me desanimador, mas no fundo, também, revelador das dificuldades que nos esperavam.

O prestígio desta senhora, mal conhecida fora de um nicho académico, não tem par na academia, que também já não é a sua. Hoje, também a universidade sucumbiu à negociata, de notas, de propinas, de tudo. Não queremos conhecer, saber, queremos “atingir objectivos”, chegar aqui ou ali, do mesmo modo como queremos ter, mais que ser. Wittgenstein disse, num dos vários idiomas que MHRP conhecia por dentro, “a ambição é a morte do pensamento”.

A Academia de hoje já não é a de MHRP, mais próxima de Sócrates e Platão, de gente que sabe pensar de forma crítica e autónoma.

Comments

  1. ayres esteves says:

    Parece-me interessantes este tipo de temas, espero que sigam os melhores dos caminhos…

  2. JOSÉ LUÍS COVITA says:

    Muito muito bom

  3. Gostei do texto-testemunho.
    Assinalo que o objectivo ode ser “apenas” CONHECER. Este deve sobrepor-se a todos os outros, claro.

  4. martinhopm says:

    Desconhecia o seu falecimento. Não a conheci pessoalmente, só através de alguns dos seus livros. Concordo com tudo quanto diz sobre os ‘Estudos de História da Cultura Clássica, I (cultura grega) e II (cultura romana), da FCG. Conheço também ‘Romana, Antologia da Cultura Latina’, e ‘Poesia Grega Arcaica’, ambos da Univ. de Coimbra , e ‘Temas clássicos na poesia portuguesa’ da Verbo. Vão-se os melhores. O que nos fica? Rebotalho? É como diz, a sociedade, as relações humanas mercantilizaram-se. Ou, como diria Eça, os Abranhos estão outra vez no poleiro. Que podemos esperar deste tipo de gente?

  5. JgMenos says:

    Isto de atribuir ao ‘mercantil’ o que só pertence ao carácter, demoniza o útil e absolve o desprezível.

  6. Paulo Só says:

    Conhecia a sua contribuição, mas não tive o privilégio de ser seu aluno, e sim do Padre Manuel Antunes que era também uma figura ímpar da Academia. Seria importante que os editores voltassem a publicar textos e estudos clássicos e que os juris dos Prémios Camões e de outras distinções alargassem um pouco olhar para contemplar um panorama que não fosse apenas o editorial literário. Imagino que Jaime Gama, licenciado em Filosofia, o venha a fazer nas suas funções atuais. E também que o Latim e Grego voltassem ao secundário, e a Filosofia desde o pré-primário… É extraordinário constatar as ignoradas qualidades de raciocínio abstrato da crianças desde a mais tenra idade. Todos os meus filhos se encantaram desde cedo com o relato de alguns paradoxos. Sob outro prisma é incrível que Maria Helena da Rocha Pereira tenha sido a primeira mulher doutorada da Universidade de Coimbra mais de 600 anos após a sua fundação…

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