O dia inicial faccioso e distorcido

Chegados ao 25 de Abril, o segundo da era da Geringonça, damos por nós confrontados com a habitual literatura ficcional-conspirativa, que tende em dar o ar da sua graça por esta altura. O texto de João Marques de Almeida (JMA), publicado no insuspeito Observador, esse hino à imprensa independente, é um belo exemplar do género.

Diz-nos este académico e antigo assessor de um dos exemplos maiores de ética e sentido de estado que foi Durão Barroso, hoje no topo da hierarquia desse farol da liberdade moderna que é o Goldman Sachs, que a luta pela liberdade, protagonizada – não só, que fique claro – pelas forças de esquerda contra o salazarismo não passa de um mito. “Absolutamente falso”. A sua luta, segundo JMA, não era mais do que uma fachada para “impor uma ditadura aos portugueses. Seguramente, mais violenta do que a do Estado Novo”. O resto é mais ou menos o mesmo que os JMA’s desta vida normalmente escrevem nestas ocasiões. Tudo no mesmo saco, a adoração religiosa de Estaline como dogma e as cegueiras ideológicas do PCP com Coreias do Norte e afins como prova científica de que tudo o que mexe à esquerda tem como missão abolir a democracia e todas as formas de liberdade, especialmente a económica, que um tipo de esquerda que se preze tem que ter prioridades.

O facciosismo também não foge ao habitual. Tenham medo do PCP que bate continência ao regime de Havana mas aqui d’el rei se alguém contesta os handshakes da galáxia neoliberal aos sheiks absolutos da Arábia Saudita e de outros estados igualmente democráticos do Golfo. Engraçado que as más companhias de uns sejam sempre melhores que as dos outros, excepto quando vemos PCP, PSD e CDS-PP, juntinhos no congresso do MPLA. Que o regime venezuelano seja um regime opressor excepto quando o Portas lá vai fazer negócios. Que os herdeiros de Salazar sejam os partidos de esquerda quando, no CDS, emergem movimentos e personagens que praticam o culto do ditador e peregrinam até Santa Comba Dão para, ajoelhados, dedicar orações a um facínora que censurou, reprimiu, matou e institucionalizou a carência e a iliteracia entre as massas, para melhor as domesticar.

Exemplos de como a esquerda lida mal com instituições independentes, fruto dessa cultura antidemocrática? As críticas feitas ao Banco de Portugal, ao Conselho de Finanças Públicas e ao Tribunal Constitucional. Como se a direita não as tivesse feito também. Como se não tivesse desferido um ataque muito mais violento contra o Constitucional durante a anterior governação. Como se o Banco de Portugal, que acumula decisões danosas e negligentes, estivesse imune à contestação. Como se o CFP, por ser independente, não pudesse ser alvo de críticas. Como se a existência de “concursos viciados” que usam “critérios políticos ou de proximidades pessoais” não fossem tão frequentes em governos socialistas como o são em governos do PSD, com ou sem CDS. O CDS, tão ou mais pequeno que os partidos de esquerda, mas ainda assim com um historial de situações nebulosas como o abate de sobreiros na Comporta, o negócio dos submarinos ou os tachos da Parque Expo. Quais serão, exactamente, os equivalentes comunistas ou bloquistas a estas festarolas?

Para JMA, vivemos num “Estado socialista ao serviço do poder e da influência dos partidos de esquerda”. Pois com certeza! Um estado onde PCP e Bloco controlam bancos, empresas públicas, multinacionais, maçonarias e clubes de futebol. Onde o proletariado aufere salários astronómicos e os desgraçados dos patrões congelam na fila da sopa dos pobres. Onde o imenso poder da esquerda procura desmantelar a Educação, a Saúde ou a Segurança Social para a entregar, definitivamente, a privados. Onde perigosos esquerdalhos são imunes à lei e toda e qualquer expressão de liberalismo perseguida. Onde os BPNs desta vida, feitos de sérias e impolutas figuras, sucumbem às mãos do socialismo predador, que cria, a partir do nada, milhares de milhões em imparidades e crédito malparado. Onde bloquistas e comunistas circulam entre o Parlamento e as grandes construtoras, fundos especulativos e escritórios de advogados que ajudam a produzir leis que posteriormente permitem a esses mesmos bloquistas e comunistas escapar de um compadrio qualquer. Que multiplicam fortunas entre a secretaria de Estado e o emprego de consultor numa empresa do PSI-20. Que fogem ao fisco através do Panamá ou das Ilhas Virgens Britânicas. Que escapam de crimes de corrupção e tráfico de influências pela via da prescrição.

Eis uma das grandes ironias do pós-25 de Abril. Passados 43 anos, a história é colocada na máquina de factos alternativos de Kellyanne Conway e chega a ser possível, pelo menos para alguns, acreditar que a esquerda não lutou pela liberdade e contra o fascismo. Como se todos aqueles que fizeram Abril partilhassem de uma visão ditatorial de extrema-esquerda. Como se partidos como o CDS não tivessem a sua ala salazarista, envergonhada ou não, saudosista de uma imprensa servil, de um Estado ao seu dispor e de um povo analfabeto, manso e domesticado. Um povo manietado por dogmas religiosos, tão reais como as histórias de aliens que ajudaram a construir as pirâmides do Egipto. Um povo na miséria, enquanto Salazar, o exemplar austero que morreu “pobre”, fazia negociatas com os mesmos Espíritos Santos que hoje brincam aos pobrezinhos na Comporta. Como se a ruína financeira, as PPP’s ou os tachos no sector público fossem património dessa esquerda.

Num país onde a direita está nos grandes grupos económicos, enraizada nas estruturas de poder e numa posição de controlo sobre a comunicação social, ainda existe quem nos queira convencer de que vivemos num país controlado por comunistas e bloquistas. Que as direitas, unidas ou não, são o elo mais fraco numa sociedade profundamente desigual. É preciso combater esta poderosa máquina propaganda, apesar do terreno inclinado. Por Abril. Sempre!

Comments

  1. é preciso ser muito alucinado para escrever as barbaridades que este JMA escreveu. inacreditável.

    só concordo com o titulo: há retos de salazarismo em portugal – e têm muitos nomes. um dos nomes é joão marques de almeida.

  2. mdlsds says:

    É preciso combater, verdade, mas estou convicta de que o povo não está distraído, nada distraído. É tão pequenina esta tal direita, que chega a meter dó.

  3. JgMenos says:

    ‘os equivalentes comunistas ou bloquistas a estas festarolas’ deram um ar da sua graça desde o 25A e em particular de Março a Novembro de 1975: saneamentos e incompetentes e oportunistas a tomar o poder e suas benesses por todo o lado e por todo o modo.
    Mas não é preciso ver para crer.
    A ideologia que lhes funda a acção é explícita no seu desprezo pela liberdade e a autonomia individual.
    Doutrina de rebanho e falsos altruísmos, empesta a linguagem há quatro décadas. E se execraram a responsabilidade social da propriedade (que funda a liberdade individual) para promover o lema de que propriedade e roubo são uma e a mesma coisa, queixam-se do sucesso alcançado pela mensagem quando proliferam os ladrões a coberto de leis e de um sistema judicial ineficazes.

    • Paulo Marques says:

      A única liberdade que a direitalha conhece é o de ser pobre e mal instruído.

      • JgMenos says:

        Pelo menos ser rico e instruído não é proibido.

        • mdlsds says:

          Ser rico roubando os pobres não só é proibido como é crime e nada tem a ver com instrução.

          • José Peralta says:

            Sim ! “Devia ser” crime, mas não é, por que tem “altos patrocínios”, além da cumplicidade dos jgmenos

        • Paulo Marques says:

          Depende da família em que se nasça. Mas instruído, a julgar pela ideias politico-económicas, tenho dúvidas.

    • José Peralta says:

      Aí estão “eles” !

      Que dia negro para os “almeidas” e os “menos” a regougar, tentando re-escrever a História !

      Para “estes” figurões, não houve os elps, os mdlps, os bombistas da direitalha, os cónegos melo, os ferreira torres, as sedes incendiadas de partidos políticos, no seu desprezo pela liberdade e autonomia individual e colectiva, porque…foi tudo “obra” da “esquerda” !

      E “saneamentos e incompetentes e oportunistas a tomar o poder e suas benesses por todo o lado e por todo o modo” pós “prec” que, desde o “25 de Novembro” à actualidade se têm vindo a repercutir e a multiplicar, como demonstram os exemplos paradigmáticos dos BPN, SLN, BPP, BES ?

      Mas, é claro ! Tudo “obra da esquerdalha” !!!!

      https://ionline.sapo.pt/558127

      E a “doutrina de rebanho que vai de aldrabões coelhos “salvadores da pátria” e passa por toda a sua tropa fandanga de mentiras louras albuquerques, “leais” coelhas e fugitivos gaspares, paulinhos “feirantes e submarinistas” e sucessoras “dinásticas” de “crista arrebitada”, todos a empestarem ainda mais, a linguagem fétida de um passado recente, o qual, os “menos” e “almeidas”, tentam sem êxito, fazer-nos “esquecer”, varrendo-o para debaixo do tapete.

      E os belmiros e os soares dos santos , este, recém condecorado (!?) pelo Marcelo (!?) pela sua “responsabilidade social”, e “servidor da comunidade” (holandesa…) que promovem o lema de que propriedade (a sua !) e roubo (o seu !) são uma e a mesma coisa, e LEGÍTIMA, ainda por cima !

      E “quando proliferam os ladrões a coberto de leis e de um sistema judicial ineficazes” quem é que paga ? Quem é ?

      É… o sem abrigo que rouba um iogurte no(s) “continente(s)” do(s) belmiro(s), ou a senhora idosa que “faz mão baixa” a um creme de beleza no(s) “dia(s)” do(s) soares dos santos…

      25 DE ABRIL !

      Que dia negro para os “marques almeidas” e o “jgmenos” !

      O que hão-de fazer ! Olhem ! Tomem uma carrada de “rennies”…

      As “melhoras” e…não têm nada que (me) agradecer—

  4. Mário Soares disse-o, alto e em bom som, no célebre debate do: olhe que não, Sr. Doutor, olhe que não, dito por um Cunhal que não disfarçava o facto de se sentir apanhado.

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading