A “história de sucesso” que a UE não é

Na quinta-feira passada, em vésperas de reunião do Conselho Europeu que teve lugar no último sábado, Merkel discursou no Bundestag sobre a UE e o Brexit: Primeiro negoceia-se a saída, depois as condições da nova cooperação; há que manter a unidade da UE; há que dar continuidade à “história de sucesso da UE” – enfim, nada de novo. Digna de nota a meu ver, porque, não se tratando propriamente de novidades, são verdades que Merkel bem precisa de ser obrigada a ouvir, foi a contra-argumentação de Sahra Wagenknecht, líder do partido Die Linke, aqui parcialmente traduzida e transcrita:

“Em Junho do ano passado, a população da Grã-Bretanha votou a favor da saída da UE. Em vez de pensar, por um momento, sobre as razões que tornaram a UE impopular ao ponto de tornar possível essa decisão, a Sra. enaltece hoje novamente a UE como uma história única de sucesso. Por vezes, uma pessoa tem a sensação de que está no filme errado.
A Europa está em risco de se desmoronar. Na maioria dos países, a taxa de desemprego está mais elevada e a taxa de crescimento mais baixa do que antes da introdução do mercado único; a classe média receia a descida do nível de vida; a pobreza aumenta. E a Sra. fala-nos de uma “história de sucesso”. Apesar das incertezas associadas ao Brexit, a economia britânica teve, nos últimos seis meses, um desenvolvimento maior do que a média da economia na zona do euro; mas, pelos vistos, isso nem sequer lhe dá que pensar.

Em muitos países, a direita nacionalista está em ascensão. Na Holanda, Geert Wilders alcançou um dos seus melhores resultados eleitorais. Com menos de 6%, a social-democracia foi reduzida à insignificância política. No fim de semana passado, a Frente Nacional conseguiu o seu melhor resultado em França. 45% dos trabalhadores votaram Le Pen, a social-democracia francesa foi pulverizada e os conservadores nem sequer conseguiram passar à segunda volta.
Porém, manifestamente, tudo isto não é – nem sequer para o SPD – motivo para duvidar da “história de sucesso” da UE. Afinal, temos ainda o elegante banqueiro de investimento Emmanuel Macron, cujo vigoroso programa neoliberal de cortes sociais é festejado não só por accionistas, mas também por uma grande coligação política alemã, que vai desde a Sra. Merkel, passando pelo Sr. Schulz, até a Cem Özdemir.

É claro que Marine Le Pen não é uma opção possível; mas, tal como assinalou o intelectual francês Didier Eribon, foram políticos como Macron que deram força a Le Pen. Seria bom ter isso em conta, antes de aclamar Macron como um político supostamente pró-europeu. Não me parece que se deva denominar pró-europeia uma política que comprovadamente fortalece o nacionalismo.

Já o presidente francês Mitterrand estava convicto de que “A Europa será social ou não será Europa”. E de facto, a visão europeia do pós-guerra assentava em dois fundamentos: na democracia e no estado social. Ora, actualmente, pouco resta tanto de um como de outro, já que os actuais tratados da UE não só não os promovem como, pelo contrário, os minimizam e frequentemente impossibilitam. Afinal, os tratados foram formulados propositadamente para impedir que os países possam defender-se do dumping concorrencial – seja no que toca a salários, seja aos impostos aplicados às multinacionais.

Desde que a Agenda 2010 abriu as portas a um boom de empregos miseravelmente pagos e criou um enorme sector de salários baixos no nosso a país, nós deixámos de exportar apenas carros e máquinas de boa qualidade e passámos a exportar carne, alimentos e outros produtos de trabalho intensivo, enquanto as importações, devido à falta de poder de compra, ficaram muito atrás das exportações. Como resultado, os excedentes alemães explodiram e, como reflexo lógico, o défice e o desemprego explodiram noutros países europeus.

Quer entenda, quer não entenda, isto significa que a política que a Sra. vem implementando é uma política anti-europeia.
Tal como também o é o agressivo dumping fiscal que o Luxemburgo e outros países usam como modelo de negócio. Enquanto os mais diligentes promotores da fuga aos impostos puderem ocupar os mais altos cargos da UE – a saber, Jean-Claude Juncker – e para isso contarem com o apoio do governo federal, nada mudará. A UE está em risco de se desmoronar. E a culpa disso não é das pessoas que votam como votam; a culpa é da política que é feita na Europa e da qual o governo federal tem a principal responsabilidade.

Quem quer realmente uma Europa unida, não pode deixá-la degradar-se tornando-se uma máquina de pressão sobre os salários e cortes sociais. É natural que uma Europa em que os lobbycratas de Bruxelas, ou até políticos alemães, arrogantemente impõem regras a outros países afaste as pessoas, em vez de as cativar.

É por isso que, contrariamente à sua fórmula “mais do mesmo”, propomos três sinais imediatos no sentido de uma mudança social na Europa:

Primeiro: Detenha o processo de ratificação do acordo CETA com o Canadá. Na Europa, ninguém precisa deste acordo neoliberal de protecção às multinacionais que só irá baixar ainda mais os nossos padrões. Por boas razões ele é rejeitado pela maioria da população europeia.

Segundo: Acabe com o ditame dos cortes sociais e do dumping salarial e comece finalmente a investir no futuro do continente europeu, em boas escolas e em bons postos de trabalho, em energia limpa e em infra-estruturas. Só quando sentirem que a Europa melhora as suas vidas, em vez de deteriorar mais ainda a situação social, as pessoas poderão novamente entusiasmar-se com a Europa.

Terceiro: Impulsione a alteração dos inenarráveis tratados da UE, nos quais a livre circulação de capitais, ou seja, a liberdade dos banqueiros de investimento, dos ladrões de impostos e da lavagem de dinheiro têm prioridade sobre os direitos sociais. Estes tratados contribuem fortemente para que cada vez mais pessoas se afastem da Europa. Empenhe-se em prol de um novo tratado europeu que assegure a democracia e o estado social nos países-membros e que não continue a miná-los.

Caros colegas, os europeus têm direito a um futuro de paz sem armamento e sem aventuras militares. Têm direito à segurança social, ao bem-estar e à democracia e a uma Europa de boa vizinhança sem a dominância alemã. Foi essa a visão dos fundadores da Europa e essa é a Europa que Die Linke defende e pela qual se empenha, para que, no final, a união europeia possa tornar-se, realmente, uma história de sucesso.”

Comments

  1. Pablo says:

    Tenho dito !

  2. José Fontes says:

    Até que enfim que se lê um discurso à Esquerda diferente da cassete habitual.
    Um discurso racional e sem demagogia, assente em factos facilmente entendíveis pela maioria das pessoas.

  3. Ana A. says:

    Parece mesmo que a França vai ter que dar o seu contributo, para a eutanásia da união (?!).

  4. JgMenos says:

    «a Agenda 2010 abriu as portas a um boom de empregos miseravelmente pagos e criou um enorme sector de salários baixos ».
    O que ninguém explica é como se criam empregos bem pagos, identificando quem produz, o que produz, para venda/consumo a/de quem.
    Tudo indica que a ideia é a Europa-fortaleza fechada ao mundo e a viver um sonho que é só dela e para ela.
    Ou pior ainda, uma Europa guiada por camaradas-dirigentes que são milagres vivos de pesporrência e sabedoria.

  5. Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

    Porque raio é que a Europa, o seu presente e o futuro são discutidos no “Deutcher Bundestag”?
    Onde estão as instâncias europeias que deveriam ocupar-se do estado ruinoso da UE? Nos copos e nas mulheres do Sr. Djosselbloom? Ou nas mesas dos banquetes do Sr. Jean-Claude?
    Porque se chama a Srª Merkel à liça, em vez das Instituições Europeias?
    Quanto ao que é dito, tiro-lhe o chapéu.
    Finalmente, deixamos de ouvir as “galinhas chocas” que dizem sempre o mesmo e nunca pegam o touro pelos cornos.

  6. Mais uma vez a felicito, desta por nos trazer este importante discurso quase completo e traduzido e que passou despercebido ( propositadamente ou incompetentemente? ) nos meios de comunicação.

    • Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

      Tenho a certeza que para além da sua normal incompetência, fazem isto, também, de propósito.
      Andam tão preocupados com a Venezuela e com o duo dinâmico, Trump-Kim, que passam ao lado da crise europeia, dos conflitos em Itália e dos movimentos no Brasil.
      Um pouco mais do mesmo.

    • Ana Moreno says:

      Obrigada Isabela!
      Por uma vez, suponho que não tenha sido intencional nem sinal de incompetência dos meios de comunicação, trata-se de uma sessão parlamentar normal do Bundestag, não sei, mas duvido que chegue aí aos órgãos de comunicação…

  7. JgMenos says:

    O que ninguém explica é como se criam empregos bem pagos, identificando quem produz, o que produz, para venda/consumo a/de quem.
    E já agora o que fazer com milhões de desqualificados, gente de novela, futebol e pouco mais.

    • José Fontes says:

      Olharapo JgMenos:
      Apresentado o cartão do PSD ou do CDS, e indo para administrador de uma empresa ou para banqueiro.
      Queres exemplos?
      António Mexia.
      Eduardo Catroga.
      Sérgio Monteiro.
      Etc,., etc., etc.
      Ainda não percebeste que a nossa economia não aguenta, ao mesmo tempo, salários decentes aos trabalhadores (ou serão colaboradores?) e ordenados altos mas não escandalosos aos administradores.
      Como não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo, opta-se apenas por ordenados escandalosos e obscenos para os administradores.
      Assim a coisa já vai, a economia já aguenta.
      Não passas de um reles olharapo, que só faz perguntas ingénuas demais para serem inocentes.
      Grande troll que me saíste.

  8. Graça Horta says:

    Obrigada Ana, pelo teu trabalho! Talvez não caia tudo em saco roto…quantas mais vozes – e esclarecidas – forem contra melhor.

  9. Anasir says:

    Artigo excelente! Na Alemanha, onde vivo presentemente, este discurso de Sahra Wagenknecht passou despercebido…

    • Nascimento says:

      Este e muitos mais…em França é lindo o que a dita Imprensa Livre publica diariamente sobre as presidenciais! Um nojo.Temos de ser ” modernos e ousados”. Pronto,proponho que a seguir a um discurso deste nível , se dispam , cuspam para cima do micro, gritem, mandem todos á merda ( em vários idiomas), recusem-se a sair do lugar, etc… talvez assim sejam vistos e escutados pelos Mérdias.Talvez…

  10. Anasir says:

    O que não me admira, aliás…

  11. Anasir says:

    Muito obrigada! Já está no meu Facebook, para ser mais difundido.

    • Ana Moreno says:

      Isso é óptimo Anasir, porque eu dou-me ao luxo de boicotar o FB, mas sei que assim se perdem muitas oportunidades de passar a palavra…

  12. Antonio Vilarandelo says:

    Felicito Ana Moreno, por nos trazer aqui a tradução do discurso da lider do partido Die Linke. Discurso que passou totalmente despercebido nos meios de comunicação social Portugueses. ( não sei se propositadamente ou não)
    Pena que em Portugal, haja tão pouca informação e debate, sobre os tratados CETA e TTIP.
    Estou convencido que mais de metade da população portuguesa, não sabe a que se refere esses acordos.

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