Corrupção e tráfico de influências: o cancro autárquico que corrói o país por dentro

Ouvimos vezes demais dizer que vivemos acima das nossas possibilidades, que somos irresponsáveis e maus gestores do nosso dinheiro. Esta pulhice, alimentada pela imprensa arregimentada e pelo discurso paternalista do regime, levam uma grande parte da população a crer que a economia não sai da cepa torta por sermos todos uma cambada de chicos-espertos. Todos não, que o problema nunca somos nós. São sempre os outros, os subsídio-dependentes, a esquerdalhada dos sindicatos ou os funcionários públicos, esses nababos.

Porém, quando olhamos à volta, percebemos rápida e facilmente a origem do problema: um sector bancário desregulado onde a lei da selva é a única em vigor, um Estado central de compadrios, onde a obra de hoje é a cadeira no conselho de administração de amanhã, onde o favor pessoal poderá garantir o próximo cheque de financiamento da campanha e onde as leis são feitas por deputados em regime de part-time, cujos verdadeiros patrões estão instalados em luxuosos edifícios da capital, de braços abertos para ajudar o mais recente trafulha a escapar pelos buracos ocultos na legislação feita à medida das elites e da criminalidade de colarinho branco. Ou acha que eles se safam todos por mera coincidência?

Tudo isto é verdade, sabemo-lo bem, mas não explica tudo. Fora do perímetro dos holofotes mediáticos das grandes cidades e das intrigas da capital, existem neste país mais de três centenas de municípios onde, regra geral, o autarca está sempre acima da lei. Onde o compadrio impera, onde milhões de euros em publicidade desnecessária são adjudicados sempre aos mesmos, onde se abrem concursos de fachada para obras hiperinflacionadas, em permanente derrapagem, e onde autarcas sem escrúpulos usam recursos públicos para promover a sua imagem e fazer campanha política à custa dos nossos impostos. Tudo isto num registo de absoluta impunidade, mesmo que um ou outro caso acabe na justiça, não raras vezes sem qualquer tipo de consequências para o prevaricador.

Quantos milhões de euros serão anualmente absorvidos pelas redes tentaculares das clientelas autárquicas? Quantos familiares, amigos e colegas e partidos são beneficiados por estes esquemas, para além das luvas e das licenças à distância de um telefonema? Quem vigia e monitoriza estes estratagemas de enriquecimentos ilícito, à custa de municípios cada vez mais endividados, se tudo isto se passa debaixo dos nossos narizes, com a maior das latas e para toda a gente ver? Onde pára a Justiça? Onde pára a Polícia Judiciária e o Ministério Público? Até quando seremos assaltados por autarcas sem vergonha na cara? Muitas perguntas, poucas respostas e um clima de impunidade que parece ter vindo para ficar.

Existe solução? Claro que existe solução. E a solução pode passar, numa primeira fase, pela denúncia pública destes comportamentos desviantes. Pela monitorização, por parte dos cidadãos, dos abusos do poder local, através de uma plataforma chamada Base.gov, que apesar da malha algo larga (ajustes directos abaixo de 5 mil euros não são registados) nos permite perceber a acompanhar o fluxo do dinheiro público. Durante os quatro últimos anos, dediquei parte significativa do meu tempo livre a fazer isso mesmo no concelho da Trofa, onde resido. Nos próximos dias irei partilhar a minha história com os leitores do Aventar, sobre os 18 anos do mais jovem concelho do país, desde cedo no top 10 dos mais endividados, onde políticos e amigos usam e abusam do poder sem que nada de particularmente grave lhes aconteça. E não pensem que nos vossos concelhos será muito diferente. Talvez seja bem pior.

Comments

  1. JgMenos says:

    Vem a mau destino trazer a sua mensagem,
    Dívida pública é por estes lados o primeiro dos instrumentos ao dispor da governação; só se queixam de não poder acrescentar a desvalorização da moeda e umas nacionalizações/saques..

  2. Ricardo Almeida says:

    Tiev em tempos um professor com experiência em projectos públicos que um dia nos disse que em Portugal era impossível cumprir qualquer projecto que demorasse mais de 4 anos a concretizar ou que apanhasse uma transição política.
    A afirmação foi dita em tom de brincadeira e com aquele fatalismo nacional tão característico mas para mim aquilo era muito grave.
    A aversão do PSD pelo PS e vice-versa durante os anos de alternância foi tal que nem o projecto mais simples e óbvio sobrevivia a uma mais uma voltinha do carrocel.
    A antiga governação terminava com um chorrilho apressado de nomeações à administração pública e a nova com uma purga a todas as que fossem passando da validade e podessem ser recicladas por um boy da cor certa.
    E é um pouco por isso que este país não evoluiu muito pouco a nível político desde 1974. Mais de 40 anos desta dança de cadeiras, de um jogo de xadrez disputado por duas pessoas muito idiotas que só sabem jogar à batota e a roubar as peças do outro.
    E a administração municipal, como está um pouco fora da arena principal como a central, é muito, muito pior.
    O caso do Isaltino Morais é uma das maiores anedotas políticas de sempre. Fico seriamente chocado com a leviandade com que a população e a opinião pública tratam esta situação.
    Uma vez até pedi a um habitante desse concelho para me explicar que demónios levam alguém a votar num criminoso convicto: “Ah, ele fartava-se de roubar é certo, mas enquanto roubar aos outros e não ao concelho, as pessoas vão votar nele!”
    Depois disto só posso imaginar que tipo de histórias sórdidas devem andar em autarquias neste país…

  3. motta says:

    Ninguém quer saber o que se passa no Seixal, que,aliás, está fechado para obras há quase dois anos (paradas, completamente…)?

Trackbacks

  1. […] Desengane-se, porém, quem acredita que este é um fenómeno circunscrito à capital ou à São Caetano à Lapa. A corrupção autárquica, uma realidade que muitos teimam não ver ou, pior, encarar com naturalidade, é feita de recursos públicos, que são de todos, mas que alguns autarcas, indignos da função que ocupam, insistem em colocar nas mãos dos seus amigos e colegas de partido, independentemente das consequências que tais decisões possam imputar ao erário público e aos mais elementares valores democráticos. O fenómeno não é novo, é transversal a praticamente todo o mapa autárquico nacional, e os ajustes directos apenas vieram facilitar o processo. Um cancro que corrói o país por dentro. […]

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