Tudo correu mal, Senhor Presidente.

[Raquel Varela]

Li os jornais, todos. O que li foi o caos, foi exactamente o contrário do que anunciou Marcelo R. de Sousa ao país – tudo correu mal. Se ontem estava convencida que a eterna questão da propriedade é a chave, hoje acho que há outro factor tão ou mais grave. O que está a desenhar-se no horizonte é uma combinação de dois factores explosivos – o eucalipto e a ruptura da protecção civil, a má gestão pública dos recursos humanos especializados, numa palavra, a erosão do Estado Social.

Li o testemunho de uma senhora humilde que foi desviada para a Estrada 236 pela GNR, ela conta-o sem mágoa ou dedo acusatório. Noutro, um inglês, jornalista que ali vive, diz que lhe aconteceu o mesmo, não compreende, foi para ali porque a GNR o desviou naquele sentido. Compreendem a gravidade? A GNR não só não terá cortado as estradas que já ardiam, como alguém desviou para lá as pessoas, é isto que as testemunhas estão a dizer nos jornais hoje publicados. Ninguém em seu juízo perfeito dirá, se isto for verdade, outra coisa que não seja a GNR estava tão desorientada e ignorante do que se passava naquela estrada como os civis. Não havia planos de evacuação, refúgios, conhecimento de ventos. Podia até ser um operacional especializado em trânsito, sem qualquer saber de florestas. Mas o que segue não é melhor. Uma mãe, um bebé de 9 meses e o filho inanimado no chão de 4 anos – o INEM aterra ali por acaso, porque pelas chamas não podia ter ido para onde seria chamado, e o aguardavam também com emergência. A criança foi assim reanimada. Está internada em estado grave, salva, todos esperamos, por um INEM que terá chegado ali por…sorte. Ou azar, dos que não socorreu para onde se dirigia. Há mais, há 135 feridos, para já. Afinal há dezenas de pessoas que estiveram nessa estrada da morte, se queimaram e conseguiram sair com vida. E as que não ficaram feridas e conseguiram escapar entre as chamas e os acidentes – dezenas. Portanto podiam ter sido centenas os mortos nessas estradas. Os testemunhos das pessoas num tanque 8 horas à espera de auxílio. As dezenas de relatos, em que as pessoas dão nome e cara a quem queira escutá-los, em que esperaram por bombeiros e médicos 6, 8, 10 horas; são dezenas de aldeias isoladas – não são idosos que resolveram viver num ermo, são famílias inteiras com tudo destruído, às centenas. As pessoas entraram em pânico e fugiram? Há muitas que dizem isso, fugiram, não sabem para onde e como, outras que dizem que foram para ali orientadas, outras que não fugiram e morreram à espera de ajuda dentro de casa. O que sobra disto é que estavam todos sem saber o que fazer – civis e protecção civil. O desdém com os académicos que nestes dias com coragem se levantaram – silvicultores, arquitectos, urbanistas – em detrimento dos homens que “estão no terreno a sofrer e dar tudo por tudo” não vai ajudar a resolver nada.

Sabem porque gastamos milhões de euros a construir uma via nas autoestradas que não é usada? – a via de paragem. Para um acidente. Uma excepção. Imobilizamos capital para um azar, “desperdiçamos” tempo e dinheiro em algo que raramente é usado, mas que salva vidas. É por isso que temos que ter guardas florestais que parte do ano vão caçar perdizes. Porque temos médicos de prevenção no INEM parados parte do tempo, a namorar, à espera de uma chamada e a escrever poemas. Porque temos bombeiros especializados em fogos que parte do ano jogam à bisca no café. Porque nem tudo é rentável na vida, a vida aliás não tem a rentabilidade de um eucalipto, a eficiência de um gestor público nem a rotatividade dos juros. A vida é um direito. Tudo correu mal, Senhor Presidente.

Comments

  1. Luís says:

    Excelente!
    Na agora chamada “estrada da morte” só faltavam plantar eucaliptos no meio da via, o SIRESP do D. Loureiro voltou a falhar, o “alerta vermelho” só serviu para avisar os idosos para beberem água e as crianças serem afastadas do sol, a época dos incêndios só começa no dia 1 de Julho o que leva a crer que todos os meios necessários para combater a desgraça ainda não estariam operacionais, as estradas da “morte” não foram cortadas … e dizem-nos que não devemos falar disso agora.
    Mas temos de falar pois o Estado tem obrigação de proteger os cidadãos e não o fez e eu tenho a incómoda sensação que em estado de emergência poucos sabem o que andam a fazer.
    Impõe-se pois a demissão de toda a cadeia de comando da Prevenção de fogos e da Protecção Civil e seus apêndices e a sua substituição por pessoas competentes e responsáveis como primeiro passo para evitar que estes horrores de repitam.

  2. Ricardo Almeida says:

    Tenho que comentar os últimos parágrafos do artigo pois vão de encontro com algo que li, também acerca de fogos e bombeiros:

    http://www.unilad.co.uk/news/grenfell-firefighters-story-of-impossible-choice-he-made-on-20th-floor-is-heart-breaking/

    Noutro país e noutra situação mas resultados muito parecidos. Mas em ambos os casos algo comum: a noção por parte da população e do governo em que os serviços de emergência são supérfulos e são normalmente os primeiros a levar com cortes (juntamente com a educação e saúde públicas) quando o cheiro a crise atinge as delicadas narinas políticas.
    Ambas as tragédias se podem atribuir a políticas deficientes e à eterna noção idiota que qualquer trabalhador têm de parecer continuamente ocupado pois isso é sinónimo de produtividade.
    Isto é particularmente evidente em “empregos de escritório”, onde as pessoas se obrigam a ficar horas após os expediente, normalmente a procrastinar nas redes sociais, apenas porque o chefe ainda os pode ver.
    Mas aqui falamos de profissões caracterizadas por intervalos de trabalho muito intenso entre outros de extrema inactividade. É a vida. Para algumas pessoas é assim que funciona.
    Custa assim tanto ver um médico a beber um café ou a fumar um cigarro? É assim tão indecente ver um bombeiro a bricar com os filhos às 15h num parque?
    Isto tudo acontece porque a maioria das pessoas é incapaz de fazer um exercício simples: pensar onde e o que é que aquela pessoa esteve a fazer uma hora ou um dia atrás.
    Na maioria das vezes, para o médico aquele café ou cigarro é a primeira pausa depois de dois turnos seguidos nas urgências e o bombeiro foi brincar com o filho pois 24h antes estava a salvar pessoas de um prédio em chamas e honestamente achava que não o ia voltar a ver.
    O capitalismo desenfreado desenvolveu na nossa sociedade uma ideia errada de que se deve trabalhar enquanto se está acordado. E dormir só mesmo um bocadinho.
    Lembro-me das histórias que o meu falecido avô contava da vida no Alentejo nos anos pré 25 de Abril, quando se trabalhava de sol a sol, literalmente, por um bocado de pão e toucinho bolorento. Choca-me muito mais o orgulho com que ele e outros contam essas histórias, como que para mostrar os duros que eram, mas que mostra apenas que a lavagem cerebral pelos poderes latifundiários foi executada com sucesso.
    Infelizmente esta mentalidade suicida ainda pervalece bastante no nosso país e à coisa de uma semana para cá percebemos que até nos está a matar.

  3. António Joaquim says:

    Raios partam isto. O país ficou atarantado, chocado, sem palavras, incrédulo. O único que até agora reagiu bem foi o Presidente apelando à calma, mantendo a calma. Para que não se siga estes caçadores de bruxas tipo rainhas de copas que querem a cabeça de alguém. A culpa é de nós todos. É isso que não entendem estes “politicos” que brincam à politica.

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