From Russia, with love #1 (Moscow)

‘Good luck’ disse-me o homem, enquanto fechava a porta do táxi

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… entendi aquilo como uma ameaça qualquer, não sei explicar porquê. Talvez fosse apenas por serem duas da manhã em Moscovo, mais uma que em Cracóvia, de onde chegava e mais duas que em Portugal de onde saí há sete dias. Talvez fosse apenas porque estava muito cansada de levantar voo e aterrar e esperar em aeroportos horas infinitas por aviões atrasados. Talvez fosse porque, mal aterrei, me propuseram um táxi para a cidade ao preço de 5000 rublos (75 euros) e ainda talvez fosse porque ninguém falava inglês convenientemente, mesmo no aeroporto. Talvez fosse também porque, quando saí do aeroporto, depois de ter encontrado uma companhia de táxis que me pediu 1700 rublos (25 ou 26 euros), chovia.
 
Tive de esperar, com outras pessoas, debaixo de uma chuva ainda miudinha, mas que haveria de se tornar mais copiosa, pelo táxi que demorou uns bons minutos a aparecer. O rapaz da companhia deu o endereço ao rapaz do táxi que pareceu (talvez fosse de tudo o que descrevi acima) não saber onde era. Eram duas e qualquer coisa da manhã e o aparente desnorte do condutor preocupou-me. O rapaz da companhia fecha-me a porta do táxi e atira-me ‘good luck and enjoy the streets of Moscow’. Podia ter achado simpático – provavelmente foi – mas achei apenas ameaçador.

 
O condutor do táxi, pequeno e nervoso, conduziu como um doido, sob a chuva que caía agora com mais violência. Ligou o GPS e suponho que lhe tenha indicado o caminho a voz de um homem em russo. Passámos um acidente violento como a chuva que caía e eu fiz com a mão sinal ao rapaz para que abrandasse. Suponho que haja gestos universais, mas aparentemente este não é um deles, já que continuou a conduzir como lguém perseguido pela polícia num filme qualquer de Hollywood.
 
Por milagre, pensei eu, deixou-me à porta do hotel, já passava das duas e meia da manhã. Estendi a única nota que tinha (de 5000 rublos) para pagar. Devolveu-me 3000 rublos e afirmou que não tinha troco. Em russo, claro. Disse-lhe em inglês que nem pensar que lhe pagava mais 300 rublos além do acordado. Entrei no hotel, deixando as malas para trás decicida a trocar a nota. A menina da receção demorou um bocadinho a aparecer, devia estar a dormir, coitada. Que não tinha troco. O segurança trouxe-me entretanto a bagagem e atrás dele o jovem e nervoso taxista. Teve com a menina uma conversa de que não percebi patavina. Estava muito aborrecido isso era evidente. Expliquei à menina que se o acordado tinham sido 1700 rublos, eu não iria pagar mais. Ela lá lhe disse qualquer coisa, deve ter sido persuasiva, porque de repente o rapaz lembrou-se que, afinal, vejam lá, tinha troco.
 
A rapariga leva-me ao quarto e eu fico triste porque não gosto dele. Estou cansada e aborrecida. Vejo uma aranha grande a passear por cima da cabeceira da cama e esmago-a com a almofada. Volto à receção e a rapariga – depois de eu ter tilintado uma pequena campainha – ouve de olhos sonolentos – minha queixa contra a aranha. Digo-lhe que fiquei a pensar que pequenas aranhas me iriam percorrer o corpo cansado durante a noite. Compreendeu – na verdade aquela rececionista merece o céu, sempre vos digo – e mudou-me para este quarto onde estou agora, maior, com uma janela grande e aparentemente sem aranhas. O hotel, agora que me passou a neura e o cansaço é na verdade muito simpático, todo branco. Chama-se Troyka, para que conste.
 
Adormeci finalmente às cinco da manhã. Já o dia começava a nascer e continuava a chover. Adormeci embalada pela chuva a pensar em aranhas e taxistas nervosos e em como a rua do hotel me tinha parecido sinistra. Acordei às 11 horas, perdi o pequeno almoço (outra coisa simpática do hotel: o pequeno almoço é até às 11h e doía-me a cabeça. Assim mesmo levantei-me. Quando saí para a rua estava sol e percebi que a rua era bonita e ficava mesmo ali à beira do rio Moscovo, ali mesmo à beira da grande Praça Vermelha, era só atravessar uma ponte muito larga. Aliás, ao virar a esquina da rua do hotel, ali estava ela ao fundo, do outro lado da ponte: a catedral de S. Basílio, com as suas inúmeras cúpulas, coloridas, lindas, impressionantes. Não sei se se lembram que decidi vir à Rússia por causa das cúpulas da nova igreja ortodoxa russa, de Paris. Assim mesmo: apaixonei-me por aquelas cúpulas douradas, todas em curvas suaves e decidi que queria ver mais e mais. Parece-me que Moscovo é um excelente lugar, a começar por esta catedral. Mas há muitas mais, a cada esquina, a cada virar de cabeça.
 
Depois de ter comido alguma coisa no café da esquina da rua do hotel, muito bonito e simpático, fui atravessar a ponte Borovitskaia. À medida que a atravessava espantava-me com tudo o que via a partir dela: o Kremlin, as cúpulas douradas da Catedral da Anunciação, dentro dos seus muros, a Catedral imponente de Cristo Salvador e, sim, aquilo que eu mais esperava ver: a Catedral de S. Basílio e a enorme praça vermelha. Quando entrei na Praça Vermelha senti aquilo que se sente quando se vê qualquer coisa magnífica pela primeira vez. Senti que tudo estava em ordem em toda a parte do mundo. Pus-me bem no centro da praça a rodar sobre mim mesma. A praça tinha muita gente mas menos do que eu esperava. Andei à volta dela. Ergui o punho junto ao mausoléu de Lenine, sem ninguém, porque fechado às segundas-feiras. O mausoléu só abre de manhã. Imagino as filas. Mas lá irei, com certeza. Fui até ao fim da praça, até ao lindíssimo edifício do Museu de História do Estado e voltei para trás no passeio do Gum, provavelmente o centro comercial mais bonito do mundo. Antes entrei na pequeníssima Catedral de Nossa Senhora de Cazã e espantei-me diante dos ídolos, das pequenas velas frágeis e do silêncio. Quase ninguém, aparte umas senhoras de lenço na cabeça que rezavam mexendo as mãos rapidamente. Acendi uma das frágeis velas e fiquei um bocadinho a vê-la a arder.
 
Voltei para trás até à Catedral de S. Basílio. Fotografei-lhe, de todos os ângulos possíveis, as cúpulas, coloridas como chupa-chupas e rebuçados. Nunca tinha visto nada assim e só isso bastaria para fazer com que valesse a pena a viagem. Resolvi depois comprar um bilhete para o autocarro turístico. Dois dias de autocarro e viagem de barco. Apanhei-o e tentei fotografar tudo o que via. As fotografias não saíram grande coisa. Fiquei especialmente contente ao ver a enorme estátua de Marx, que ninguém pôde derrubar ou transferir, porque pesadíssima. E ali está ele, imponente e belo, como as ideias que deu ao mundo. Se não fossem os homens, a natureza dos homens, decerto o ‘esplendor’ ter-se-ia concretizado. A avaliar pela expressão serena de Marx, mesmo quando os pombos insistem em lhe pousar na cabeça, assim deveria ter sido, se não fossem os homens…
 
Depois apanhei o barco e maravilhei-me de novo com a paisagem e com os edifícios. A arquitectura comunista é feia, me parecia até aqui. Mas hoje admiti a mim mesma que há edifícios de que gosto muito. Como as ‘sete irmãs’, as torres mandadas construir por Estaline para comemorar – diz-se – os 800 anos da cidade. Deveriam ser 8, mas só 7 foram construídas. Hoje devo ter visto umas quatro ou cinco e que bonitas me pareceram, enormes, mas elegantes, anunciando o ‘esplendor soviético’. O rio Moscovo é tranquilo e o passeio de barco, vendo as atrações da cidade de outra perspetiva pareceu-me encantador. Tal como Moscovo me parece encantadora.
 
Apanhei o autocarro, outra linha, vendo outras maravilhas da cidade. Jantei no bairro do hotel, num restaurantezinho pequeno onde conversei longamente com o jovem empregado, simpático. Perguntou-me primeiro de onde era e se estava a gostar de Moscovo. E depois, como acontece com frequência contou-me a sua história ainda curta. Diz que quer ir a todo o lado na Europa. Eu disse-lhe que me faltavam poucos países. Admirou-se. Eu disse-lhe que eu era velha e que ele tinha ainda muito tempo para conhecer tudo o que quisesse. Falámos do ‘esplendor soviético’ e ele, à falta de memórias próprias, contou-me as dos seus avós e as dos seus pais. Que se sentem mais felizes assim. Hoje. Eu acreditei, claro. Bebi mais um café. Fumei mais um cigarro e ontem pareceu-me muito longe. Disse adeus ao rapaz e desejei-lhe boa sorte. Estou segura que não lhe pareceu uma ameaça.

Comments

  1. Não é disprimor de classe, mas ainda bem que os ‘sítios’ e as pessoas suplante QQ expectativas vindas dos primeiros contatos com os taxistas ou uberistas ou Whatever desta vida. Gostei.

  2. João Martins says:

    As saudades que já tinha de viajar através destes postais.
    Muito bom.

  3. JgMenos says:

    . Se não fossem os homens, a natureza dos homens…nada haveria de extraordinário nas viagens.

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