Autopsicografia de um homem de esquerda

João Valentim André

A pergunta ressoa no mais fundo do corpo ético do homem de esquerda: “como posso eu aceitar, sem forçar todo o meu ser à dissolução, que a sociedade de que participo condene mil homens à pobreza para que possa criar um que seja rico?”

A pergunta é labiríntica. A resposta reside no seu centro mental, um ponto cósmico, guardada por um temível animal mítico. Mas uma vez chegado a esse centro, não tem, o homem de esquerda, como evitar o confronto. E ele dá-se precisamente no lugar do eixo, no axis mundi, na base da árvore da vida pela qual se ascende à resposta.

Para que o mistério não viesse a ser simplesmente um maneirismo literário, o demiurgo achou por bem fazer depender a vitória sobre a besta mítica da resposta a uma outra pergunta: desses mil homens condenados à pobreza, quantos não sacrificariam outros cem mil ao mesmo mísero destino para que a fortuna lhes sorrisse a eles?

Se o homem de esquerda responder “Nenhum”, restar-lhe-á a esperança na doce Ariadne. Fugirá do Minotauro pelo fio e uma vez livre da encruzilhada reformulará a primeira pergunta, a tal que ressoa no mais fundo do seu corpo ético. Descobrirá, talvez, que é ele próprio o obstáculo à sua iluminação, pois que fantasia na humanidade a condição dos deuses e não compreende que essa ética que reclama como sua matriz e que sonha estender a toda a humanidade, não é mais do que uma grosseira arrogância perante a sua própria natureza, que claramente desconhece. Mais ainda, é uma incompreensão pueril da verdade, da justiça e da misericórdia actuantes nos três mundos: o humano, o natural e o divino.

O homem de esquerda sente, por exemplo, uma infinita compaixão pelos cães. Ama-os por vezes mais do que aos seus próprios semelhantes, mas nada o preocupa a miríade de bactérias que sacrifica em cada respiração. Nem atenta sequer que essa mesma respiração representa, com todo o esplendor, a tal matriz ética divina: a vida pertence à morte e a morte pertence à vida. Para lá disto, toda a filosofia é basicamente inútil.

Opõe-se, na titânica luta travada na consciência, que esse é o caminho da barbárie. Que assim sendo, nenhum sentido mais se encontra na civilização que quis ajudar a construir. Mas só compreendendo que essa mesma civilização com que sonha e a barbárie que o aterra são o respirar do mundo humano, pode regressar ao centro do labirinto, derrotar a besta e ascender, pelo eixo do mundo, à plenitude.

Nesse dia não será mais de esquerda nem de direita. E não pertencerá também ao centro que lhe serviu, uma vez conquistado, a salvação. Será um Homem Novo, renascido das próprias cinzas existenciais, liberto, finalmente, de si próprio.

Reformulou a pergunta: “Como posso eu compreender que a sociedade que ajudo a construir crie mil homens pobres para que possa condenar um à riqueza?” Assim a resposta é bem mais singela e vive na própria pergunta, o círculo fecha-se e o Universo respira na eternidade.

Comments

  1. JgMenos says:

    No meio do labirinto subsiste o dogma de esquerda « a sociedade cria».
    Quem cria a sociedade é a pergunta proibida que o reconduziria ao homem.
    E se num acto de coragem incomum no homem de esquerda se interrogar sobre o homem, horrorizado, torna-se religioso e crente do Homem Novo, não ele próprio pois sempre se dispensa de o ser, mas um Desejado que enquanto não chega lhe permite olhar para a riqueza dos outros e chamar-lhe sua por direito.

    • Com que direito Rothschild se apoderou de uma riqueza imensa que pertencia, por direito moral, aos herdeiros dos que morreram e combateram em Waterloo?

      • JgMenos says:

        Explica lá esse negócio…

        • Quando alguém obtém mais valias devido ao resultado de uma batalha sem nela ter participado, como pode alguém não aceitar que os combatentes e os herdeiros dos que morreram nessa batalha reclamem essas mais valias como suas por direito, e achar que essa é uma riqueza de quem especulou e a quem mais ninguém pode reclamar como sua. É uma questão ética ou moral, se quiser. Quanto a Waterloo, informe-se. E de caminho leia o Mandarim do Eça ou o Bel-Ami de Maupassant. São apropriadas para a canícula.

    • ZE LOPES says:

      É inegável! Este JgMenos é um génio da Filosofia. Não admira, a sua dedicação ao Saber é inaudita. Não podemos deixar de salientar ser o autor moral e material do conceito de “esquerdalho” que tem influenciado decisivamente todo o pensamento filosófico Direitolho por esse mundo fora.
      Não espanta, portanto, que se interrogue quotidianamente sobre o homem. Questões pertinentes como “quem se aproximará de mansinho? Será o padeiro? O homem do talho? Um escoteiro?” estão sempre a assomar à sua consciência, mesmo entre duas colheres de sopa ou três garfadas de batatas com bacalhau.
      .

  2. Paulo Marques says:

    Seja lá o que fumas, também quero.

  3. João Soares says:

    fume ou beba o que quiser, mas o palavreado em causa está distorcido, é mais uma conversa da treta

    • JgMenos says:

      Ora desdistorce lá a treta…

      • :) :) :) says:

        OOOO Menos!
        Pareces o Cantinflas !
        As tuas explicações são dignas do mexicano… coño!

  4. caco says:

    Ó menos que fillsofia tão rasca, sabes o que é trabalhar eu digo trabalhar? Sabes o que é trabalhar uma vida para alimentar o teu capitalismo selvagem e chegar ao fim da vida sempre pobre? Sabes o que é ser roubado ás descaradas uma vida inteira sempre pelos mesmos? Esses mesmos são todos os que tu defendes e nenhum deles é esquerdalho. Muitos que defendes têm problemas com a justiça e sabes porquê não sabes?

    • JgMenos says:

      Caco, trabalhar toda a vida e ser pobre toda a vida é uma história vulgar desde há milénios.
      ‘Ser roubado às descaradas’ tão só significa que és manso ou de esquerda (nos termos acima descritos).
      Não defendo ladrões, e aos mansos recomendo-lhes que o não sejam face aos ladrões.

  5. ZE LOPES says:

    Trabalhar toda a vida e ser pobre…é vulgar! Ora aí está! Que profundidade de pensamento!Que ideia tão salgada, tão mellada, tão champalimada!Só um génio!

  6. “Condenar à riqueza” é um paradoxo insanável.

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