From Russia, with love #3 (Moscow)

Dos heróis caídos…

 

 

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assim chamam à parte do Parque-Museu das Artes, que ocupa a parte norte do Parque Gorki. Há quem lhe chame parque, mas a maior parte das pessoas refere-se-lhe como ‘cemitério dos monumentos caídos. Além de uma impressionante coleção de estátuas, nem todas dos heróis soviéticos derrubados, esta parte do grande espaço verde que é o parque Gorki, é ocupada pela Moderna Galeria Tretyakov e também pela casa dos artistas.
Antes de ir visitar o parque, fui à galeria Tetryakov, a antiga, ou a clássica, como quiserem que apresenta uma coleção magnífica de quadros de pintores russos do século 11 ao início do século 21. Se me conhecem sabem que sou pouco apreciadora de arte que não a moderna e contemporânea, mas lá fui. Acordei tarde e achei que era um bom plano. Perdi o pequeno almoço no hotel e era meio dia e meia quando bebi um sumo de laranja e um croissant e um expresso, no café da esquina. Depois, tendo aprendido a lição breve que um rapaz me deu sobre os anéis de Moscovo e as linhas de autocarro, assim como a das imensas e rapidíssimas escadas rolantes do metro de Moscovo (de que tenciono afastar-me),apenhei o M5 para Tretyakovskaya.

A praça que rodeia a estação de metro Tretyakovskaya é bonita, colorida e animada. Há umas pequenas barraquinhas que vendem de tudo, e mais à frente uma bela igreja vermelha – A igreja Ortodoxa de S. Clemente, com umas bonitas, ainda que pequenas cúpulas. Depois de ter observado a azáfama das pessoas e a calma da igreja, voltei para trás e percorri a Ordynskiy, onde algumas pessoas vendiam pequenas coisas. Uma das senhoras vendia uns sapatos feitos de corda ou palha, bonitos, acompanhados de bonecas russas. Perguntou-me se queria comprar. Disse que não, mas pedi-lhe se me deixava tirar uma fotografia. Que sim. Ficou bonita.
Tenho estas conversas numa língua que não existe, naturalmente, dado que não sei falar russo, embora leia o suficiente para me desenrascar num restaurante, na leitura de placas com nomes de ruas, nomes de lojas, essas coisas. Falo com toda a gente nesta língua inexistente que consiste em as pessoas se me dirigirem em russo e eu lhes responder em inglês, tudo acompanhado de muitos gestos até que nos entendemos. A maior parte das informações e das ementas não estão em inglês. É estranho estar num sítio assim, é verdade, em que tudo parece relativamente incompreensível. Relativamente. Basta ter dois olhos, alguma atenção ao que nos rodeia, conhecer o alfabeto cirílico… e contar com a boa vontade das pessoas.
Devo dizer que a maior parte das pessoas com quem me cruzei e com quem conversei, nesta língua inexistente e em inglês, são extremamente simpáticas e prestáveis. Quase todos, desde adolescentes até pessoas idosas se mostram disponíveis para ajudar. Por exemplo, por causa das inimaginavelmente rápidas escadas rolantes do metro tive ontem a simpatia e a generosidade de uma das funcionárias que se desviou do seu caminho para tentar ajudar-me a superar o ‘pânico’. Hoje, uma mulher, tentando eu comprar água e um bolo num quiosque, aproximou-se para servir de intermediária entre mim e a vendedora. Umas horas mais tarde, e já depois da visita aos heróis caídos, no autocarro, um homem – depois de eu ter comprado o bilhete e ter feito ao motorista uma pergunta que ele não entendeu, nem sequer naquela língua inexistente – sentou-se delicadamente à minha frente e perguntou-me para onde queria eu ir. Mostrei-lhe o mapa e expliquei que queria apanhar o autocarro M5. Disse-me que ele também o ia apanhar e ali fomos frente a frente até Kitay-Gorod.
Mas antes de Kitay-Gorod e depois da visita à galeria Tretyakov, dirigi-me devagar para o parque dos heróis caídos. Tem estado muito bom tempo em Moscovo e, apesar da chuva que agora cai, hoje fez bastante calor. De maneira que me fui dirigindo transpirada e vagarosamente para o parque. Cheguei à beira do rio Moscovo, na Kadashevskaya e lá estava pequena ponte, com o coração de flores. a mesma onde antes me explicaram ser o lugar onde vêm os recem-casados colocar um cadeado. Já vimos o mesmo noutras partes. Somos mais parecidos do que aquilo que aparentamos. A estreita ponte chama-se Luzhkov. Caminhei para a esquerda da pequena ponte dos amores fechados com cadeado e estava realmente calor. Resolvi apanhar um autocarro, usando a experiência anteriormente adquirida. Avancei até à Polyanka e apanhei o autocarro onde esta encontra a Yakimanskiy. Duas paragens e saio. Tenho de andar um bocadinho para trás e reparo numa igreja pequenina, com um portão bonito e cheia de sombras.
Entro no portão e os sinos tocam. Mas não é por mim, naturalmente. Saem uns noivos da porta lateral. Certamente irão até à Lushkov fechar um cadeado. No jardim da igreja há um quiosque e resolvo comprar água. Vejo os bolos e quero um, mas a senhora não entende. Aproxima-se uma mulher e diz que fala inglês e pode ajudar. Munida do meu bolo e da minha água, pergunto à mulher que fala inglês (Svetlana, que original) se vou bem por ali para o parque dos heróis caídos. Ela arregala os olhos azuis, arredondam-os mais e pergunta-me porque razão quero eu ir a semelhante sítio. Acrescenta que não é parque que os moscovitas lhe chamam, mas cemitério e que não vale a pena ir lá ver as estátuas de quem fez o povo passar tantas dificuldades. Ouvi-a, claro. Mas respondi que gostaria de ver, apesar de tudo. Ela disse que as pessoas de Moscovo nunca íam ver as estátuas, aquelas, não as outras espalhadas pelo parque. Disse que era portuguesa e que por isso teria desculpa. Ela riu-se e disse que sim, que ía bem por ali. Ficámos à conversa um bom bocado, mais de meia hora seguramente. Deu-me conselhos sobre Moscovo. Disse que tinha muitos amigos russos em Portugal, esse país que é um dos mais pobres da União Europeia, acrescentou. Ela falava bastante mais que eu, e isso é difícil. Talvez só quisesse falar com alguém, já que antes de eu ter atravessado o portão da pequena igreja, ela estava sozinha, com o seu leite e o seu bolo. Quando lhe disse que me chamava Elisabete, achou graça a ter, segundo ela, um nome tão internacional. Confesso, eu também, que dá jeito.
Despedi-me da mulher e continuei a andar até à pequena Babyegorodskiy ao fundo da qual se encontrava uma das entradas para o parque. Há muitas e belas estátuas no parque e, de facto, ninguém, excepto eu e umas duas ou três pessoas, de passagem, andavam de volta das estátuas de Lenine, de Marx, de Estaline e outros ‘heróis’ soviéticos. Perto delas, estava uma obra que achei comovente – ‘victims of totalitarian regime’ – se a vissem decerto concordariam comigo sobre a sua força. As vítimas do totalitarismo, os verdadeiros heróis de que ninguém fala e a quem ninguém ergue estátuas em praças, para que sejam derrubadas. Andei por ali, entre as estátuas bastante tempo. Tantos ‘lenines’ e só um ‘marx’. Dois ‘estalines’, um deles sem nariz… e tantos outros, estátuas de pé de tantos ‘heróis’ caídos, de tanta gente caída, talvez porque não soubesse falar a língua impossível das pessoas ou ouvir, apesar disso.
Quando saí do parque dos heróis caídos, vi um homem de pé como uma estátua, de sobretudo vestido, apesar do calor. Apanhei o autocarro até à Biblioteca Imeni Lenina, a Biblioteca Estatal Russa, a que apenas os milhões de livros que guarda e a frágil estátua de Dostoiévski emprestam humanidade. Deixei-me ficar sentada num banco a olhar para o escritor. Um homem chega e diz-me em russo se se pode sentar. Digo que sim. Fala comigo e eu digo que não entendo, que não falo russo. Fala ele na língua impossível que desta vez não me apetece entender. Digo-lhe que não quero falar. Ele diz que está bem. Eu levanto-me e apanho o autocarro.

Comments

  1. Maria J. Castro says:

    Não pode imaginar o que eu gosto destes seus postais! Segui atentamente os de Paris (e não foram poucos) por ser uma cidade que adoro e onde vou com alguma frequência.
    Tenho a proposito uma historieta para lhe contar que acho vai diverti-la.
    Na Páscoa estive em Paris com o meu marido, por estarmos na Place Saint-Michel lembrei-me do restaurante de que tantas vezes falou e que nunca a decepcionou, o Saint-Michel.
    Fomos lá jantar e ao entrarmos perguntei quem era o Franco, de imediato o dito se apresentou. Disse-lhe ( decerto me perdoará) que era sua amiga, da Elisabete la Portugaise.
    Ficou super contente, quis saber de si, mandou cumprimentos ( que finalmente chegam ao destinatário) e desfez-se em vénias, mesuras e delicadezas. Tivemos tratamento vip, vip.
    Comprovamos que o magret de canard estava a point e o petit gateau também.
    Agradeco-lhe a ajuda ainda que involutária e continuo a seguir as suas crónicas com todo o interesse.
    Obrigada da sua “amiga imaginária”
    MJ

    • Elisabete Figueiredo says:

      Adorei saber, MJ. Muito obrigada! E fico contente que o Franco ainda se lembre de mim 🙂 . Mas o café/ brasserie chama-se Saint André.

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