Ponderação versus aventureirismo

Santana Castilho*

As intervenções do PS em Educação permitem identificar um padrão de tendências notórias: para o facilitismo “eduquês”, para o experimentalismo pedagógico irresponsável e para falíveis modernismos tecnológicos. Se acrescentarmos o ódio aos professores do tempo de Maria de Lurdes Rodrigues, fica feita a ecografia às partes moles dos governos do PS dos últimos tempos.

O vazio de ideias do ministro Tiago Rodrigues foi preenchido pela torrente de iniciativas desastradas do secretário de Estado João Costa: o espectáculo degradante em matéria de avaliação, com três modelos vigentes num mesmo ano, com a recuperação de provas outrora abandonadas por inúteis, com o ministro a desmentir o primeiro-ministro e vice-versa e os deputados do PS a votarem contra o programa do seu próprio governo; um perfil de alunos para o século XXI, repositório de conceitos banais copiados de publicações não citadas, que endeusou as “aprendizagens essenciais” ao mesmo tempo que o ministro decretou o fim dos “saberes essenciais”; um pomposo Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, rapidamente afirmado como desilusão maior que a ilusão que o promoveu, e uma miserável flexibilidade curricular, instrumento de desconstrução curricular e imposição de transdisciplinaridade boba.

Faltava a costumada caldeirada tecnológica. Aí a temos sob o título “Estratégia TIC 2020”, transportando-me, irremediavelmente porque tenho memória, ao falido Plano Tecnológico da Educação que, dizia Sócrates em 2007, iria “colocar Portugal entre os cinco países europeus mais avançados em matéria de modernização tecnológica”. Melhor fora que a prosa de cabresto dos discípulos que serviram a criatura e agora nos trazem mais do mesmo, com a burocracia totalitária das plataformas digitais, tivesse, ao menos, o decoro de se libertar dos esqueletos dos famigerados Magalhães. Não para desentupir as sargetas a que foram parar. Mas para exorcizar os negócios que proporcionaram. Aqui, na Venezuela e em Timor.

A deriva palavrosa que embrulha a coisa tem neologismos curiosos: “usabilidade” e “interoperabilidade”, por exemplo. E plataformas excitantes: uma “para gestão das diferentes componentes de negócio do recrutamento e gestão de carreiras na área da educação” e outra de “big data (sic) para tratamento de informação financeira”. Negócio de recrutamento? Big data?

Enquanto isto, já temos lei que impõe  a adopção de manuais digitais para uso em tablets e João Costa disse que vai avaliar as condições que as escolas têm para aplicar a medida. Falta avaliar os riscos do aventureirismo sem ponderação. É inegável que os tablets permitem armazenar muitos livros, protegendo do peso das mochilas as colunas vertebrais, sem abdominais nem dorsais que as sustentem, de crianças obesas, em parte porque se tornaram escravas sedentárias da “usabilidade” e da “interoperabilidade” de tablets, smartphones e demais gadgets do século XXI. Mas já há reflexão que importa e desaconselha a substituição radical do papel pelo digital. Nos EUA fizeram contas e concluíram que o uso de tablets multiplicou por cinco o custo dos clássicos manuais. Porque são caros, partem-se facilmente e não se arranjam facilmente. Ficam obsoletos rapidamente, como convém ao negócio. E há que pagar royalties anuais a editores, custos de infraestruturas wi-fi e treino de professores para os usar. E quanto ao ambiente? Desenganem-se os ecologistas porque, segundo o The New York Times de 4 de Abril de 2010 (How Green Is My iPad?), a produção de tablets é bastante mais destrutiva e perigosa que a produção de livros em papel. Mas, acima de tudo, há evidências científicas de que ler em papel facilita a compreensão e a memorização por comparação com a leitura digital e que a perda da motricidade fina que a aprendizagem da escrita com papel e lápis permite é danosa para o desenvolvimento das crianças. Finalmente, há a certeza de que o preço dos tablets e a ausência de wi-fi na casa das crianças pobres as deixará ainda mais para trás.

*Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Comments

  1. A deriva palavrosa …
    Deus nos proteja destes “eu acho”.

    • Manuel Henrique Santana Castilho says:

      Um artigo de opinião é, passe a redundância … opinião. Quem vem a público expor-se (e eu sou colunista do “Público” vai par 17 anos, a que se somam, pelo menos, mais 13 de análise das políticas de Educação, sistemática, noutros órgãos de imprensa) tem que estar natural e elementarmente preparado para ser criticado. O que me deixa perplexo é que ASD fale de “deriva palavrosa” e insinue simples “achismo” para classificar um artigo que está, tanto quanto o permite a “ditadura” dos 4.000 caracteres a que o “Público” me sujeita, minimamente fundamentado, sem, ele próprio, ASD, passar de um “achismo” de … 9 palavras.
      ASD não tem obrigação de conhecer os milhares de páginas, em artigos e livros, com que, ao longo décadas, tenho fundamentado as ideias que avento sobre Educação. Nem sei se saberá que o que aparece aqui no “Aventar” é a reedição dos artigos do “Público” que, há muito, o próprio blogue me pediu para publicar. Mas, apesar desse eventual desconhecimento, poderia ter ido bem mais além: contraditando, com argumentos, aquilo que menosprezou. Teria, assim, contribuído para manter a genérica seriedade e qualidade do que por aqui vou lendo (sem prejuízo da salutar diversidade de ideias), constatação que me faz ter gosto em que os meus textos apareçam no Aventar.
      Cumprimento ASD, que não conheço, e todos os leitores que tiverem a generosidade de ler estas linhas.
      Santana Castilho

    • Paulo Marques says:

      Pois, e que se tem feito nos últimos vinte anos na educação, bem como na economia e em muitas coisas, é o quê, ciência? Lol.

  2. Um bom texto que só peca pelo que ainda ficou por dizer.

    • E porque não diz a Ana o que acha que ficou por dizer?

      • Basicamente, o esmiuçar das importantes questões levantadas pelo professor SC mas que a “ditadura” dos 4.000 caracteres” impede de o fazer.
        Por exemplo, uma “reforma curricular” que o ME diz que não quer fazer, as “inovações” que datam dos anos 90 e cujos resultados ou não se apresentaram ou não foram feitos, uma ideia de escola inclusiva sem condições para o ser, a “desmaterialização” dos manuais e a opção por tablets e outros gadjets , um nicho de mercado apetecível para os fundos europeus mas de difícil “implementação” na maioria das escolas.
        Finalmente, a constante instabilidade para alunos, professores, pais e escolas a servirem de lab rats de uma reforma que deita clichés cá para fora mas que mantém o essencial em surdina.
        Pior do que tudo, assiste-se a uma documentação “inovadora” , mantendo-se documentos anteriores em vigor do tempo da ex ministra Lurdes Rodrigues e do ex ministro Nuno Crato, com pressupostos diferentes. Uma inovação que se faz por camadas que se sobrepõem umas às outras.
        No entanto, algo liga tudo isto- o afastar os professores do debate, o considerar-se que não precisam ser ouvidos quer em questões pedagógicas quer em questões ligadas à sua entropiada carreira,mais trabalho por menos salário, cortes, envelhecimento docente e níveis alarmantes de burnout profissional. requisitos básicos a considerar para qualquer reforma na política educativa.
        Esperemos que, apesar de tudo, tudo isto resulte.
        E sabemos que, caso existam constrangimentos, as escolas e os professores serão os bodes expiatórios.
        As usual.

        • Dado o seu outro comentário (“Tentei responder, mas o comentário não saiu!”), fui espreitar no spam e estava lá. Erro do software anti-spam. As nossas desculpas, mesmo assim.

      • JgMenos says:

        E porque no te callas?

        • ZE LOPES says:

          Mais, perdão, Menos…um brilhanteiro comentário!

          Para ficar tudo completo, já só falta matar o elefante!

      • Asd,
        Tentei responder, mas o comentário não saiu!
        Apagou-se…….

      • Nascimento says:

        Nadinha!Um bom texto do Professor.

  3. Pedro says:

    Eu já não tenho pachorra é para este discurso dos computadores e do mal que fazem os computadores às crianças e de que estamos a formar gerações de analfabetos por causa dos computadores renhorenhó. Calma, os livros não se vão acabar, mas a tecnologia simplesmente não tem volta e não se preocupem que as nossas crianças não se vão tornar atrasadas mentais. O projeto Magalhães era óptimo, pura e simplesmente esbarrou contra o desinteresse e falta de preparação dos próprios professores. Se querem uma causa, muito agradeço, como pai, que se preocupem com o preço dos manuais escolares. Tenho toda a legitimidade para dizer isto, porque tenho um filho de 13 anos na escola e sou de classe média baixa. Ah, é verdade, já agora: existem tablets bastante baratos no mercado. Não estamos a falar de macbooks, Obrigado por se preocuparem.

    • Paulo Marques says:

      Não são os computadores que fazem mal, são os idiotas que os querem usar para o que não servem, dando mais uma avença aos que vivem à sombra do regime.

      • Pedro says:

        Paulo, está a falar de quê? Desculpe a franqueza, mas isso é daqueles bitaites com zero d conteúdo. Quais são as funções dos computadores que n servem para as crianças? Texto de leitura? O quê, afinal?

    • Calhando, Pedro os tablets baratos ainda podem ser mais onerosos a curto prazo- necessitam manutenção e tornam-se obsoletos em menos de 1 ano.
      Escrevi “calhando” que até sou muito pró tecnologias….

      • Pedro says:

        Tornam-se obsoletos em menos de 1 ano? Não, Ana, que exagero.

      • Pedro says:

        Está um tablet Insys, 4 giga, na fnac por 49 euros. É só um exemplo. A tecnologia está cada vez mais acessível aos mais pobres. Não exagerem no miserabilismo. E provavelmente os mais caros é que exigem mais atualizações e manutenção. Muitas atualizações até são grátis.

    • Mónica says:

      Já cá faltava o discurso de “os professores é que não souberam/quiseram usar!!” São sempre os culpados de tudo. Impingem-lhe ideias, burocracias e utopias que eles têm de fazer e calar, mesmo que não concordem e saibam que não vão resultar e quando não resultam a culpa é sempre deles. Quanto a tablets e computadores sou mãe e sou professora e não concordo mesmo nada que o argumento para substituir livros por tablets seja o de ficarem mais baratos. Podem e devem usar-se as TIC de muitas maneiras sem que suplantem e substituam totalmente outros instrumentos que são igualmente úteis ao desenvolvimento do cérebro, como está provado. Quanto às escolas não estão fisicamente preparadas para tanta tecnologia isso tenho a certeza! Quanto aos professores serão capazes de se adaptar mas para os mais velhos pode ser difícil. O que é preciso é bom senso e não embandeirar em arco, que é o que muitos ministérios da educação têm feito.

      • Pedro says:

        “e não concordo mesmo nada que o argumento para substituir livros por tablets seja o de ficarem mais baratos”

        Ninguém disse isso. O que eu acho é que os computadores ou tablets são cada vez mais ferramentas essenciais de aprendizagem. Mais uma vez, não se preocupem que não é por isso que os livros vão acabar. O que me impressiona é o discurso apocaliptico sobre o ensino.
        Eu não sei é que “tanta tecnologia” é essa de que fala a Mónica. Qual tecnologia? É giz e um quadro e muito de vez em quando uns trabalhos de power point. Mais do que isso já mete muito medo.

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