Quando Portugal Ardeu ou Uma Comédia Portuguesa – Crónicas do Rochedo XX

miguel carvalho livro

O automóvel que explodiu foi armadilhado aqui em casa. A minha sogra pedia-nos sempre para não matarmos ninguém, “Por favor, não entrem nesse campo, eu não quero cá ninguém assim”. Eles levavam o carro já armadilhado, com o material todo, só faltava colocar os detonadores. Mas iam estragando tudo. À ida pararam na Mealhada, nos leitões. O Ramiro pediu a conta e o homem demorou a trazê-la. E ele disse: “Bem, se não vem já a conta vou-me já embora e depois, olhe, meta na conta deste senhor”. O Ramiro tinha um porta-chaves com a imagem do Salazar num porta-chaves” – Silva Santos em entrevista a Miguel Carvalho no livro “Quando Portugal Ardeu” do jornalista e escritor Miguel Carvalho.

Este episódio, como outros do género que se podem ler na obra do Miguel Carvalho dizem muito sobre Portugal. Vamos ali a Lisboa colocar uma bomba mas antes, claro, toca a aviar um leitão na Mealhada… Eu, por exemplo, se me pedirem para ir ali a Vigo colocar uma bomba tinha de desviar a Viana para comer uma bola de berlim no Natário, obviamente.

Quando terminei de ler o livro fiquei na dúvida se toda esta história é cómica ou trágica. Depois de uma noite de sono a minha conclusão é outra: nem tragédia nem comédia, apenas Portugal. Uns bombistas com bons sentimentos, arrependidos por terem assassinado uma inocente em S. Martinho do Campo, que para todas as missões não dispensavam uma refeição opípara (seja leitão ou marisco) nem o conforto de um hotel de luxo, uns financiadores pretensamente ricaços que se esqueciam de pagar os serviços e, tão português, uns espertalhaços que desviavam os fundos para a causa directamente para o seu bolso e, cereja no topo do bolo, nem falta o empresário bronco que aproveita a onda terrorista para um ajuste de contas pessoal com um seu antigo funcionário. Sem esquecer uma dúzia de gabarolas, a santa igreja católica, autarcas, polícias e juízes corruptos, militares sinistros, prostitutas e uma boa dúzia de tontos. Se isto não é Portugal no seu melhor…

No final de tudo isto ficou uma conclusão que me arrepia, escrita pelo autor da obra: “Oradores exaltados, habituados a atear almas e comícios, recolhiam-se agora em poltronas e gabinetes alcatifados. Conspiradores de outras safras tinham sido reciclados para o conforto dos cargos, das instituições e do poder político. Militares, vetustos juízes, certos polícias e uns quantos ladrões disputavam negócios e sinecuras, à luz do dia e com cobertura legal, mas tão na sombra como no passado. Todos queriam sossego, iniciativa privada, brandos costumes e democracia de estufa. E silêncio, por favor”.

Nada mudou. Só o trotil é que já não está na moda.

Aproveitem para ler esta obra do Miguel Carvalho. Retrata uma época de Portugal que é um espelho de todas as outras, até da nossa. E pode ser que compreendam o verdadeiro papel do General Ramalho Eanes em tudo isto. Pode ser. Eu fiquei com mais dúvidas que certezas. E reparem bem nalgumas das personalidades do Norte que surgem neste livro. Algumas ainda andam por cá. Outras foram, hoje, substituídas pelos filhos. E genros. E afilhados. E sobrinhos. Sem esquecer os primos. É que se Portugal é uma aldeia, o Norte é uma ruela…

Comments

  1. Pedro says:

    Pois. Uns patuscos reinadios com bom coração, uma espécie de cantinflas. E uns padres e bispos bonacheirões um bocado estouvados, como o Don Camilo É por isso que tiveram uma reforma descansada, hihihi.

  2. Paulo Marques says:

    Quanto mais conheço o mundo, mais acho disparatada e provinciana esta idea de que só Portugal é que tem as coisas más. Há em tudo o lado os mesmos defeitos.

  3. … sound bites para surdos e rendimentos popolunchos da livralhada cravo e ferradura.

  4. magalhaesnascimento says:

    Tinha 6 meses quando a bomba explodiu. Não me lembro. Lembro-me da marca que ficou para sempre, nos corações dos meus pais e avós. Já não sinto ódio. Sinto desprezo e asco desta gentalha…e não me esqueço.

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