Talvez o meu pai morra amanhã

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Fátima Marinho

Talvez o meu pai morra amanhã. Se Deus quiser. Se Deus for clemente e compassivo, sim, talvez o meu pai morra amanhã. Se as minhas preces servirem para alguma coisa, sim, talvez o meu pai morra amanhã.
Morre tarde, todavia.
Morre às mãos dos que, pela crueldade, para se livrarem de culpas, o obrigaram a tormentos impossíveis de imaginar, mesmo nos mais negros quadros de guerrilha e tortura. 
No dia 4 de agosto, sexta-feira, à hora de almoço, uma senhora da equipa de gestão de altas do Hospital de Guimarães telefonou-me para me informar de que o meu pai, hospitalizado em Cabeceiras de Basto, iria ser transportado; às 14h00, para uma Unidade de Cuidados Continuados de Guimarães. O meu silêncio trouxe a ameaça. “Caso recuse a vaga, vai para casa.” Estando o meu pai com um quadro clínico impossível de manter em casa, onde o oxigénio só vai até 5 litros, e, oscilando o seu débito entre os 7 e os 15 litros, não pude recusar. Fiz mal. Muito mal. Quem sabe o meu pai já estivesse na paz que merece e eu não teria assistido à tentativa de o reabilitarem, a ponto de manterem a sua vaga na Unidade de Cuidados Continuados de Guimarães.
Nem no inferno de Dante se pode ver a negrura da alma dos humanos com tanta nitidez como a que me foi mostrada.

Condoído com o seu estado, o médico da Unidade de Cuidados Continuados de Guimarães enviou-o para o Hospital de Guimarães, no dia 8 de agosto de 2017, data a partir da qual o meu pai deixou de ter o conforto da morfina para ser sujeito a um sofrimento inominável, que passou por o obrigarem a estar, já sem carne entre os ossos, diariamente, cerca de três horas preso a uma cadeira de rodas, só para que, em conformidade com a intenção da equipa de gestão de altas do Hospital de Guimarães, pudesse, no mais curto prazo, voltar para a Unidade de Cuidados Continuados. Tentaram até reduzir o seu débito de oxigénio colocando-lhe uma máscara normal e diminuindo os litros de oxigénio. Só perante a minha insistência e a evidência das suas mãos já negras, foi prescrita máscara de alto débito e o oxigénio voltou aos 15 litros.
Colocaram-lhe uma sonda e ensinaram-me a alimentar o meu pai, com uma seringa descartável que ninguém descarta. A seringa é usada dia após dia. Para que não restem dúvidas, já a marquei.

Desde então só come sopa e bebe sumos de pacote. Tem fome. O meu pai tem fome. Tem falta de ar e só lhe administram analgésicos de venda livre.

Tenho uns assuntos a tratar com os que enchem a boca com a defesa da dignidade da vida e recusam, em nome dessa dita dignidade, o direito à serenidade da morte. Tenho muitas fotografias para lhes mostrar. Quero discutir com eles a fronteira de Deus e a do diabo. E, não obstante, talvez o meu pai morra amanhã. Se Deus ouvir as minha preces.

Comments

  1. Regina says:

    Use os horrores do Political Correctness a seu favor. Denuncie à Comissão Europeia e a Corte de Direitos Humanos. Até as Nações Unidas. Diga que é descaso com idosos. Aí mande essa informação para algum grande jornal de alcance global.
    Sei que fazer isso quando o caso é o seu pai pode parecer até herético, mas estas são as armas deste mundo cão, e gente medonha não hesita em usá-las para coisas mesquinhas. O caso do seu pai é exatamente um dos casos que justificam a existência dessas redes de proteção e regulamentos.
    Lute por ele. Principalmente porque o horror que você descreve é a verdade.

    • Fátima Marinho says:

      A história humana, feita de horrores, não nos tem servido de aprendizagem. Sabemos colocar em voo toneladas de aço. Não obstante, somos inaptos na compreensão do que somos. Há um ano que o meu pai vive o destino irônico de altas hospitalares indevidas, das quais reclamei em sede própria. O que aconteceu desta vez ultrapassa todos os limites. Já está criado um grupo de trabalho para que esta ignomínia, tantas vezes repetida, seja travada.
      É muito difícil, por múltiplas razões, denunciar. Calar seria, no entanto, colaborar com os que se julgam inatacáveis e dispõem da vida e da coisa pública como de propriedades suas. Há muito escolhi de que lado fico quando estão em causa pessoas, e, pelo meu pai até viro o mundo do avesso. Só posso agradecer o seu apoio. É bom saber que somos muitos e difíceis de dobrar.

  2. Antonio Correia says:

    Também eu passei pelo mesmo martírio com o meu, como a compreendo, vimos sofrer sem saber o que fazer.

    • São muitas as histórias semelhantes das quais tenho tomado conhecimento. Há que travar, pelo confronto aberto e informado, o que a bonomia e o silêncio têm perpetuado.

  3. Sim, POR FAVOR, lute pelo descanso da morte do seu pai. Talvez consiga poupar outras pessoas a um sofrimento atroz. Obrigado, desde já.

    • Obrigada! Lutarei, sim. No que depender de mim, tudo farei para que os idosos, a quem tudo devemos, sejam tratados com a dignidade que merecem.

  4. …como alguns, NEGÓCIOS e “personalidades(?)”, ganham MUITO dinheiro com o sofrimento alheio. e viva o mundo LIVRE (?) imposto pelo capitalismo opressor e diabólico.

    • Vejo que sabe o que só agora começo a perceber… Acerca deste mundo subterrâneo e macabro do vil metal, altar de todos os sacrifícios.

  5. Viriato says:

    Mas que porcaria, não há nada que se possa fazer?
    Não percebo como é que, em democracia, não há nenhuma entidade á quel nos possamos dirigir para a verificação destas situações. Concordo com a Regina, fale com um daqueles jornais/televisões sensacionalistas para que exponham o caso.
    Os iluminados que se lembraram de acabar com os hospitais públicos, com certeza não vão lá parar, quando era tudo público não faltava material. Nunca mais se convencem de que a saúde não tem preço. Eu acho que a saúde deveria ser gratuíta e que todos deveriam ter acesso aos melhores cuidados possíveis, quer ganhassem 575€ ou 5000€ mensais.

  6. TERESA Sá says:

    Passei semelhante com a minha avó. Te teu denunciar. O meu pai impediu-me : “é que a gente precisa deles…”. Ironia. O meu pai morreu na mão ‘deles’. Infeção Hospitalar. Cara Fátima Marinho, avance por onde puder. Em nome de todos nós.

    • Conheço esse temor, tão letal quanto as bactérias. É por causa dele que os abusos se repetem. Não me cabe mudar o mundo, não deixarei, todavia, que o mundo me mude. Grata pelo testemunho curto e certeiro.

  7. TERESA Sá says:

    Tentei*

  8. Catarina Reimão says:

    Fátima contacte a Comissão de Protecção ao idoso. DENUNCIE E RECEBA APOIO- Zona Norte- !- https://www.facebook.com/pg/cpidoso/about/?ref=page_internal

  9. O Hospital e os profissionais não são uma fábrica de consertos do corpo humano.
    A solução não e dar-lhe, apenas, morfina.
    Obviamente também me deram instruções como alimentar por sonda, como monitorizar os restantes aparelhos de respiração. O quarto foi convertido numa enfermaria.
    Os meus conhecimentos de saúde eram próximo de zero para responder as estar situações.
    O meu pai já morreu…
    Desejo que o seu pai tenha o conforto que deseja e não sofra para além dos limites…da falta de algo básico.
    A vida já traz a marca da morte.
    Sempre há ” A solidão dos moribundos” – Norberto Elias.
    Aceite as ajudas objectivas-concretas (fazer higiene, companhia, alimentar) que lhe oferecerem e deixe de lado as lameches do que deveria ser feito e das teorias eloquentes (?) da vida e da morte.

  10. Tenho que afirmar que alguns comentários (alguns) revelam ignorância de circunstância. Não há experiência formativa, então atira-e com um acho… Ou deveria ser…

  11. Nossa que horror! Que sua voz seja ouvida em todos os cantos do mundo!

  12. Ana Seixas says:

    Como entendo esta prece….como percebo bem esta situação. Vivi-a igualzinha com o meu pai….e, durante dias….meses orei para que partisse. Partisse porque a minha dor em vê-lo sofrer era maior….muito maior do que assistir à sua partida….apesar do enorme amor que ainda hoje sinto pelo meu progenitor.

  13. NÃO FAZ SENTIDO………

  14. Luís Lavoura says:

    Não percebo este post. A autora poderia talvez explicar melhor.
    O senhor foi transferido de uma UCC (Unidade de Cuidados Continuados) para um hospital. Aparentemente, no hospital querem dar-lhe alta para que ele volte à UCC. E então que fazem? Tratam-no mal, tirando-lhe oxigénio e morfina! Mas, se o tratam assim mal, é evidente que o seu estado só poderá piorar, e então nunca lhe poderão dar alta! Então, que sentido faz tratarem-no assim mal? Não entendo.
    Que interesse tem o hospital de Guimarães em tratar mal do senhor?

    • Caro Luis, o meu pai não foi transferido de uma UCC para o hospital. Foi enviado pelo hospital para uma UCC indevidamente, considerando o seu estado de saúde. Confrontado com tal, o médico da UCC reenviou-o para o hospital que, não querendo assumir a alta clínica indevida, se preparava para reenviar o meu pai novamente para a UCC. Eu sei que já sente a vertigem…eu também! Sabe, contra factos não há mal entendidos! Contra assinaturas sob protesto também não. Sabe, a maldade e a estupidez humana não têm limites.

  15. Sem palavras….mas tão real. Acompanhei o processo da minha mãe…que teve a sorte de eu não a deixar 1 minuto sózinha e fui-me valendo de todos os conhecimentos que tinha para “meter uma cunha”….mas bem que senti que se não fosse isso….coitada dela, que apesar da doença e de estar num estado terminal estava tão lúcida….
    E agora esta: eu, mulher só, sem familia alguma….tenho pensado nestas coisas e arrepio-me só de pensar se um dia chegar a algum estado de falta de saúde….como será… que medo!

  16. Luís Lavoura says:

    Tal como a Fátima, também os médicos do hospital só querem que o pai dela morra rapidamente. Para esses médicos, esse doente, em estado terminal e sem hipótese de cura, não é compensador. Não vale a pena gastar muito esforço com ele, porque não são de esperar melhoras. Mais vale investirem o esforço e dinheiro em doentes jovens e com hipótese de cura.

    Ouvi uma vez um médico ocologista pediatra a dizer que a oncologia era uma das formas de pediatria mais agradável porque, embora alguns doentes morram, aqueles que se curam ficam totalmente curados – ao contrário daquilo que ocorre noutras áreas da pediatria, nas quais frequentemente se lida com doenças que permanecem a vida toda. Os médicos têm gosto em tratar doentes que se curam e ficam perfeitamente saudáveis, não em tratar pessoas que ficarão eternamente doentes.

  17. Disse acima que um hospital não era uma fábrica de consertos…
    Pois!!!
    Já experimentei, como milhares de outros, as aflições da autora do texto.
    Há circunstâncias menos boas no tratamento e no relacionamento com os profissionais de saúde do SNS.
    Mas muitas destas circunstâncias são apenas ponto de conhecimento e percepção diferentes.
    Uma coisa é o que deveria ser, outra coisa são os recursos disponíveis que efectivamente existem e o que pode ser realizado. Acordem…
    Cura do cancro!? Qual? Se não forem neoplasias benignas o que existem é um erro de diagnóstico que se embrulha num discurso de cura.

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