Os polémicos blocos de actividades*

Inicialmente, de férias e afastado do mundo real, tomei conhecimento do polémico caso através das redes sociais. A tentação para me indignar foi imediata: havia um plano de discriminação de género em marcha, orquestrado pela Porto Editora e por um qualquer gangue de arrojas misóginos, através de cadernos de actividades que tratavam o macho como alfa e a fêmea como uma patega incapaz de concluir labirintos complexos.

Na rede circulavam as mesmas imagens, sempre as mesmas, e, a meu ver, saltavam à vista duas: a dos labirintos e aquela outra que confrontava a menina-doméstica que faz o lanche, mesmo como o Paulo Portas e a entourage da Cristas as querem, e o menino construtor de robôs. Sempre quis ter uma filha e nunca, mas nunca lhe ofereceria um livro de actividades que a levasse a crer que o seu lugar seria na cozinha. Já me/nos chega viver numa sociedade onde a igualdade de género simplesmente não existe, algo que facilmente se verifica, por exemplo, na atribuição de pastas ministeriais ao longo do período democrático: entre 1974 e 2015, Portugal conheceu 498 ministros. Apenas 31 eram/são mulheres (6,2%).

Outra coisa, bem diferente, são os tais cadernos de actividades. Se dúvidas restassem, Ricardo Araújo Pereira desfez todas as que restavam na minha cabeça, na edição de ontem do Governo Sombra. Afinal existem vários exercícios que são literalmente iguais para meninos e meninas. Afinal existem outros labirintos, onde o grau de dificuldade é maior para as meninas. Afinal, imagine-se a infâmia, existem exercícios em que, na versão masculina, temos uma criança com um armário cheio de carrinhos, ao passo que a menina, mais culta, tem o seu repleto de livros. Há até um momento em que, ao jovem macho que observa um edifício, no qual terá que pintar alguns quadrados que são janelas, corresponde uma vez mais a menina culta, cujos quadrados a pintar fazem parte de uma obra exposta numa galeria de arte. Estará o menino a ser estereotipado como trolha, face a uma potencial artista plástica?

Sim, existem estereótipos de género, e são nocivos para ambos os lados.

Não, isto não é lutar pela igualdade de género: é banalizar o debate.

Contudo, há algo de me preocupa neste caso, e que diz respeito à forma como o governo intervém na esfera privada, “recomendando” a retirada do livro à editora ao invés de recomendar aos pais que não o comprem, fundamentando o seu juízo e sugerindo alternativas, e isso foi também muito bem explicado por RAP. Não que se trate de um perigoso acto de censura, como os maluquinhos da alt-right portuguesa nos tentaram vender (para além da quantidade de comparações idiotas que os pequenos Trumps nos serviram nos últimos dias), mas porque o Estado, na minha opinião, abre aqui um precedente perigoso que parece, e muito, decorrente de pressões e não de uma análise aprofundada e objectiva. Mas não posso deixar de registar a forma imediata como a Porto Editora reagiu à “recomendação”. Quem vive das rendas resultantes da venda de manuais escolares, não se pode dar ao luxo de afrontar aquele que tem a faca e o queijo na mão e perder a PPP dos livros. São mãos que se lavam.

*créditos: Ricardo Araújo Pereira

Comments

  1. Ferpin says:

    Os média cavalgaram a coisa, e quando tal acontece, gente do poder politico sai da frente.

    Que o que a geringonça menos precisa é um repórter dum desses bastiões da esquerda da TVI,SIC,sol,i,observador, cm, etc, a meter-lhe o micro pelas fuças acima a berrar-lhe perguntas tipo “o sr ministro apoia esta terrível calamidade operada pela porto editora? Não faz nada?”, seguida do passos e da cristas 20 minutos em cada telejornal a criticar acerbamente o governo pela inoperância face a estes dois labirintos tao graves.

    Também vi o RAP e fiquei esclarecido (quem não tem o livro só ficaria esclarecido vendo-o todo, e com os comentários do RAP teve outro picante)

  2. Rui Naldinho says:

    Boa João. Excelente texto.
    Não há nada como descriminar a hipocrisia, essa velha meretriz travestida quase sempre de gente séria.

  3. JgMenos says:

    «Sim, existem estereótipos de género, e são nocivos para ambos os lados»
    Fica por dizer que há estereótipos que são benéficos para ambos os lados…mas isso não pode dizer-se sem arrostar com a ira do idiotamente correcto!

    • Paulo Marques says:

      Fica por dizer porque é mais um achismo da direita e a realidade que se ajuste.

      • JgMenos says:

        O cientismo de esquerda é por norma o maior dos embustes: a ciência ao serviço da ideologia.

        • Jg, tens sempre a possibilidade de criar o teu blogue facho e escrever sobre o tema. Seu calimeiro chorão!

          • JgMenos says:

            Diverte-me muito mais acompanhar as acrobacias pós-modernas da esquerdalhada.
            Sobre o fascismo basta-me acompanhar as iniciativas corporativa – ó – constituintes do Maduro para conhecer os últimos desenvolvimentos dessa doutrina.

          • Paulo Marques says:

            A outra resposta não era para o João.

            Ó menos, sobre o capitalismo basta-me acompanhar as iniciativas corporativas aos golpes de estado na Venezuela e no Brazil, para só falar no último ano. E na bagunça em que meteram o médio oriente, da qual não sai tão cedo.
            Viva o petróleo capitalista.

        • Paulo Marques says:

          Mesmo que fosse verdade, sempre era melhor do que a fé ao serviço da ideologia. São iguais àqueles idiotas úteis ao serviço dos ayatollas.

  4. Rui Mateus says:

    …mss os quadrados para pintar das meninas são maiores…será miopia? 😈

  5. Mais um delírio dos dias que correm… a espuma sobressai na ânsia de ser primeiro nos media e nas redes, quando alguém se lembrar de verificar de facto se ė assim tão verdade, também já ninguém se lembra. E depois todos nos admiramos com este extraordinário e admirável mundo novo de ignorância que cresce a cada dia que passa.

  6. MJoão says:

    Devagar , devagarinho se chega onde se quer. Qual é , mesmo, a razão da existência dos dois caderninhos?

    • JgMenos says:

      Gostavas de brincar com carrinhos e bonecas, ou tinhas uma preferenciazinha,
      Gostavas mais de ser princesa do que xerife, ou para ti era igual?
      Ilumina-nos o caminho, ó engendrado posmoderno!

      • Paulo Marques says:

        Brincar às bonecas só nos jogos de vídeo, porque é completamente diferente, são virtuais.

    • Ana A. says:

      A razão para a existência dos dois caderninhos é porque os meninos gostam da cor azul e as meninas de cor-de-rosa!
      E até há bem pouco tempo os rapazes/homens que ousassem vestir camisas cor-de-rosa eram olhados de soslaio! Ora, os tempos mudam mas algumas mentalidades não acompanham…

  7. Odília Freitas says:

    Sobre esta pseudo polémica, o que ninguém comenta (e, para mim, é o mais importante) é por que razão a Porto cedeu tão rapidamente? Pois, eu sei, pois analisei cientificamente vários manuais escolares (esses, sim, obrigatórios) da Porto e da também grande Santillana e sim, há mensagens ao nível do currículo oculto que são assassinas e contribuem muito para a perpetuação das construções culturais milenares sobre feminilidade e masculinidade. Como neste país, só o que chega às redes sociais é que existe, só se fez barulho com os livros de férias e pelo lado errado, o que deitou logo por terra qualquer debate sério que urge fazer!…Por isso, a Porto, antes que alguém descobrisse os escandalosos livros de histórias para meninos e histórias para meninas que abundam há anos nas bancas dos hipermercados e que as redes sociais ainda não descobriram, mas, sobretudo, antes que os professores que escolhem manuais com abundantes estereótipos (de género, de raça, religião…por exemplo, como se fala do Islão nos manuais de História…), então, dizia eu, a Porto retirou rapidamente, na esperança de continuar sem que pais e professores abram os olhinhos e denunciem livros muito mais massificados e que formal (deformam) mentalidades…

    • Pode ser que este caso sirva para que outros casos, verdadeiramente graves, venham à tona.

    • JgMenos says:

      Isto de haver dois sexos é uma consumição!
      Felizes os tempos em que eramos amibas.
      Partíamo-nos em dois e já estávamos reproduzidos.
      Põe-te vigilante Odília…isto tem de mudar.

      • ZE LOPES says:

        Ora aí está! Eu nunca tive a experiência de ser amiba. Ao que parece, V. Exa. já passou por isso e foi feliz. Nota-se que, pelo menos no tamanho do cérebro de V. exa. , ficaram vincados traços dessa época.

        Para evitar mais consumições, é melhor abster-se. O melhor é trancar-se (trancar-se? Esqueci-me que no Paleolítico não havia trancas…), ou, pelo menos, meter um pedregulho à entrada da caverna, não vá entrar alguma Neanderthal com segundas intenções. Ou então, junte-se a uma tribo de caçadores de búfalos. Lá não há mulheres.

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