HOJE é dia de sair à rua

Você atrever-se-ia a ameaçar as minhas “legítimas expectativas” de lucro?                                                        Foto: Ana Moreno

Hoje é dia de sair à rua para mostrar aos nossos representantes que NÃO queremos que nos atraiçoem, fazendo-nos prisioneiros do CETA.

José P. Ribeiro de Albuquerque, Secretário-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, explica-lhe porquê:

(…) O acordo CETA e os anexos respectivos tem centenas e centenas de páginas, requerem o domínio de um certo jargão técnico-jurídico que não favorece a compreensão, nem a discussão do seu conteúdo e consequências. A dificuldade de leitura não é um resultado involuntário. Pelo contrário, é uma dificuldade que convém à mutação sistémica que promove, como acima se disse.Entrando nos aspectos jurídicos mais relevantes, podemos identificar dois: um primeiro aspecto, que tem consequências no desarranjo da democracia e da soberania por via da denominada harmonização legislativa ou regulamentar e um segundo que tem que ver com a instituição do mecanismo de resolução de litígios ou, em termos simples, a instituição de um tribunal arbitral.

Relativamente à designada harmonização legislativa ou regulamentar, a grande questão aqui em presença é a da efectiva transferência de soberania para os gigantes da industria financeira e dos negócios. Para isso é necessária a desregulamentação legislativa em cada plano de ajustamento estrutural, como se o CETA fosse um novo capítulo do pós-troika. Como se faz esse desapossamento de soberania? O CETA prevê a harmonização da regulamentação nos sectores abrangidos pelo acordo de comércio. O acordo, no capítulo 21, prevê um Fórum de Cooperação Regulamentar, que não é mais que um mecanismo de atentado à democracia. O mecanismo visa a eliminação de toda a regulação desnecessária e consente uma espécie de veto à regulação futura que não esteja ao serviço da competitividade das empresas. Como toda a decisão pública tem ou pode ter um efeito directo ou indirecto no comércio (efeito directo ou indirecto resultam por exemplo de medidas de protecção da saúde pública, de aumento do salário mínimo, de regulamentação das relações laborais, entre muitos outros exemplos) o risco iminente é o de que os parlamentos não terão apenas a concorrência deste fórum, mas poderão vir a ficar-lhes submetidos e conformados. Segundo uma leitura genérica dos termos do acordo CETA, cada projecto de regulação será notificado aos “lobbies” de interesses para serem comentados. A nosso ver, este mecanismo de harmonização constitui na verdade a guarda avançada e preliminar do mecanismo de resolução de litígios (ICS) de que iremos falar adiante. Uma interferência desta natureza, ainda que sob a forma de acordo, corresponde a uma ingerência na democracia sem que se tenha a legitimidade do voto e que por isso despreza a vontade colectiva subjacente ao sistema representativo.

(…)

A segunda nota é a que se refere à instituição do mecanismo para a resolução de litígios, uma espécie de tribunal arbitral ou à la carte. O contexto da arbitragem internacional tornou-se favorável às soluções da justiça privada. A nova economia da normatividade, na perspectiva global, aposta sistematicamente no reforço e até no domínio da arbitragem, como instrumento jurisdicional do direito universal dos negócios. O direito nacional já não conta nessa jurisdição. O que se aplica são regras do comércio internacional em substituição do direito nacional e, mais do que tudo, o que se observa de forma estrita são as normas constantes dos contratos ou acordos, que assim passam a constituir direito substantivo, ficando a jurisdição entregue a um tribunal constituído por uma espécie de guarda pretoriana, que são em regra advogados de negócios internacionais a fazer o papel de juízes. Estes tribunais arbitrais podem ser accionados contra os Estados e é isso que veio a dar escândalo a uma realidade que já não é nova, a dos ADR (Alternative Dispute Resolution). O que significa um mecanismo destes no quadro do acordo CETA? Significa que os Estados renunciam à competência das suas jurisdições nacionais. O efeito directo ou muito provavelmente indirecto é o de, sendo as decisões desses árbitros executórias, eles obrigarem os Estados a modificar o seu direito ou impedirem os Estados de o modificarem. Os exemplos já são conhecidos de todos.

José P. Ribeiro de Albuquerque

Secretário-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Excerto do texto que pode ler aqui.

 

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    A única pergunta que eu coloco é a seguinte:
    E o Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha vai papar esta coisa sem pestanejar?
    Eu pessoalmente não acredito que os alemães se queriam por a jeito, ficando dependentes de terceiros, que não controlam.
    Ou então, digamos que este Tratado é uma coisa cozinhada por eles, estilo euro, para ficarmos mais uma vez todos amarrados.

    • Ana Moreno says:

      De facto, Rui Naldinho, estão há já um ano cinco queixas contra o CETA à espera de decisão do Tribunal Constitucional: https://aventar.eu/2016/10/14/o-ceta-no-tribunal-constitucional/ , subscritas por duas centenas de milhares de cidadãos; outras tantas providências cautelares para impedir a entrada provisória em vigor do CETA foram chumbadas, embora o Tribunal Constitucional tenha frisado que essa decisão não tem qualquer relação com a verificação da constitucionalidade, a qual poderá demorar anos. Ainda assim, o Tribunal impôs ao governo como condição para a assinatura do Acordo, a garantia de que a Alemanha poderá retirar-se do Acordo, caso o Tribunal venha a decidir que o CETA é anti-constitucional, bem como a condição de que só podem entrar provisoriamente em vigor as partes do CETA que são de competência europeia, não as partes de competência nacional, como é o caso da propriedade intelectual e do ICS.
      Agora, isto foi resultado de um movimento fortíssimo de cidadania, com os mais diferentes actores da sociedade civil, ao longo de vários anos – por acaso esse movimento levou um chimbalau de todo o tamanho com esta ardilosa colagem que os defensores destes tratados fazem entre protecionismo e Trump; basta dizer que se está em vésperas de eleições e os candidatos não são confrontados com o tema em lado nenhum. É verdade que haverá ainda oportunidade de ganhar força na altura da ratificação pela Alemanha, mas o movimento está meio paralisado.
      Quando o Rui fala de alemães, há pois que diferenciar: por um lado, há os cidadãos, sendo uma parte significativa deles contra o CETA; por outro, há o governo e os poderosos interesses comerciais; e quanto a estes, já sabemos que a Alemanha é campeã do comércio e aliás, é quem mais vai lucrar com o CETA e com os mais 30 acordos que estão na pipeline da UE; o governo alemão, a “grande coligação”, está ao serviço desses interesses, de modo que não está nada preocupada com as perdas que isto possa trazer para os cidadãos. Foi vergonhoso como Sigmar Gabriel (SPD) reprimiu as muitas vozes críticas dentro do seu partido, até conseguir o ok deste para assinar o CETA.

  2. De novo consigo por inteiro no seu empenho e esforço, Ana.
    Este seu post e respectivo texto do SMMP já seguiu para a destinatária do MP que lhe referi.
    Aquelabraço especial, que hoje é dia !

  3. O Magistrado curiosamente diz que :

    “… requerem o domínio de um certo jargão técnico-jurídico que não favorece a compreensão, nem a discussão do seu conteúdo e consequências. A dificuldade de leitura não é um resultado involuntário …”. Mas não é assim em tudo o que é jurídico? Não é assim que são treinados ? para que o comum dos mortais tenha sempre de recorrer aos seus serviços por mais básica que seja uma questão ?
    Mas tem razão para que toda esta teia de burocracia ? A decisão de comprar ou não, apenas deve pertencer ao cliente. Mas a noção dae Liberdade para esta malta é muito tortuosa.

    Rui Silva

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  1. […] nesta, porque era esta que se ía realizar nesse dia, como já incitei à participação noutras. Pois não faltaram comentadores a perguntar: então e contra a “irresponsabilidade que permite […]

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