As Lições de Português do Professor Expresso

Andrew ‘Andy’ Osnard: No paper trail.
— The Tailor of Panama

Domitius Enobarbus: And what they undid did.
Antony and Cleopatra

Avanço por aí
No gelo salgado
O meu hálito derrete
O teu corpo congelado
— Rui Reininho

This is the glamorous life there’s no time for fooling around.
— Lloyd Cole & The Commotions, “My Bag“, Mainstream, October 26 1987 (obrigado, Nuno Miguel Guedes)

***

Por aí, leio o seguinte:

Há um discurso por aí que valoriza demasiado os erros ortográficos.

É verdade. Todavia, há outros discursos, como este (a reproduzir este), que os desvalorizam em demasia. Já agora, erros sintéticos?

De síntese? Ou sintácticos? De sintaxe? Ou *sintáticos? De nada?

Pelos vistos, o “por aí” criticado no texto será auto-referencial, pois o Expresso indica mais erros ortográficos do que “outros erros”:  

  • «A Joana foi há escola» é erro ortográfico;
  • «Ele tem uma obcessão por carros» também é erro ortográfico;
  • «É um fato que existem alterações climáticas» é um erro ortográfico;
  • «Eles vêm a dobrar» é efectivamente erro ortográfico;
  • «Derepente a zanga começou» é objectivamente erro ortográfico;
  • «É uma casa portuguesa, concerteza!» é de facto erro ortográfico;
  • «Hádes conseguir escrever um livro» não é erro ortográfico;
  • «Já fizestes os trabalhos de casa?» não é erro ortográfico;
  • «Quero duzentas gramas de fiambre!» não é erro ortográfico;
  • «A polícia interviu naquela confusão que houve na rua» não é erro ortográfico.

Curiosamente, como vimos, o texto em apreço debruça-se sobre fatos.

No entanto, cá entre nós, são explicações como esta (fazendo jus, note-se, à ambígua redacção da base IV) que levam ao aparecimento de dogmas. Façamos uma breve incursão pela literatura, mais concretamente, pelo pequeno episódio protagonizado por um dos actuais candidatos à liderança do PSD (chamemos-lhe Carlos, só por causa das tosses), feito personagem de romance escrito neste exacto momento pelo nosso Eça:

Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega o impulso de paixão que o lançara de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelara-lhe mesmo miudamente a história dela, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propôs que fossem comer as sopas à Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo paletó, murmurando, como durante as longas confidências de Carlos: «É prodigioso!… Que estranha coisa, a vida!»

E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos falava ainda de Maria, da vida na Toca deixando escapar do coração muito cheio o interminável cântico da sua felicidade.

— É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!

— E cá na Toca ainda ninguém sabe nada?

[entretanto, o nosso Eça sai de cena, mas o nosso Carlos continua por aqui, pelo Aventar]

— Ninguém sabe nada? Na Toca? O quê? Se facto perde o cê? Se há dupla grafia? Repara, John, naquilo que o Expresso diz e explica-me, entalando o monóculo, se ‘facto’ é palavra de dupla grafia, por que raio não pode perder o cê? — pergunta Carlos, que assinou o AO90 em nome da República Portuguesa, concluindo, como sabemos, dizendo a Ega:

— Portanto, assim sendo, «agora facto é igual a fato (de roupa)». Isto é, é fato, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!

Depois deste momento literário, um pequeno intervalo, com uma canção sobre um carro.

Agora, voltemos ao normal funcionamento deste texto.

Noto, com alguma preocupação, a insistência do Expresso em dar aulas de Português (com maiúscula, é a disciplina) aos leitores, com actividades extra-curriculares, como a denúncia dos erros de outrem: há poucos meses, foi o escândalo do erro ortográfico em estudo do Ministério da Educação.

O Expresso dedica tanto tempo a fiscalizar o desempenho dos outros que acaba por não prestar uma muito necessária atenção aos seus próprios desempenhos em alemão, em inglês e, claro, claro, obviamente, obviamente, em ortografia portuguesa europeia, quer teórica, quer prática.

Reflictamos acerca da possibilidade de alguém aceitar lições sobre esta matéria de um jornal que escreve

fato,

exactamente, fato,

fatos,

efectivamente, fatos,

exactamente, fatos,

contato,

contatos,

efectivamente, contatos

contatar.

Por falar em fatos, tudo como dantes no sítio do costume?

Efectivamente. Exactamente.

***

Comments

  1. ZE LOPES says:

    Rimas em honra do Achordo Ortographico (parte 2):

    [No tribunal]

    – Peço a palavra, Meritíssimo!
    – Dou-lha, mas cinja-se aos fatos!
    -Há aqui um problema, Dr. Juiz:
    as atas não relactam os atos!

  2. Fernando Manuel Rodrigues says:

    E temos um senhor ZE LOPES que acha que tem graça… coitado. De fato, não tem. Sem fato, também não. Porque, DE FACTO, o ZE LOPES é mais um pobre ignorante que se acha muito “à frente”.

    • ZE LOPES says:

      Para dizer que não gostou não era preciso tanto trabalho. Diga lá V. Exa. qual foi o meu pecado. Insultei algum defunto?

Trackbacks

  1. […] Já estamos habituados. […]

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