Ninguém diria, aqui, recostados ao sol como esse gato gordo que quase morreu de tantas sardaniscas que comia, mas agora passa os dias a dormir encostado ao muro. Ninguém diria que era daqui que saltavam para a linha, homens e mulheres, velhos e novos, gente daqui do bairro e doutras paragens, porque havia quem viesse de propósito para matar-se aqui. Desde que puseram este gradeamento alto, os suicidas desistiram da ideia ou buscaram outros lugares.
À mesa, sou a única forasteira. Os homens não dizem nada, fala a Maria, a mais velha.
– Nunca mais me esquece o dia em que vi muita gente debruçada no muro, fui espreitar e vi uma mulher caída, com a cabeça a deitar tanto sangue… Andei meses a pensar nisso, nem dormia em condições. Eu devia ter uns 14 anos e aquilo impressionou-me tanto…
O comboio está a passar debaixo dos nossos pés, estremece-nos.
A Maria puxa o xaile para os ombros. É o comboio que a arrepia.
– Olhe que já passaram mais de 60 anos disto que lhe estou a contar, mas eu lembro-me como se estivesse a vê-lo agora. Aquele muro foi a perdição de muita gente.
Levanto os olhos para o gradeamento. Entristece e desfeia a paisagem, com o seu quadriculado ferrugento a recortar as pontes e o rio. Ao longo do muro, grafitis, manchas de tinta, declarações de amor e de ódio.
Como se adivinhasse o que estou a pensar, acrescenta:
– Até pode estragar a vista, mas faz falta. Há horas que são do diabo.
Calamos, consentimos. E ela continua:
– Às vezes saíamos de manhã de casa, e o muro parecia que puxava pela gente, palavra de honra. A gente debruçava-se, olhava lá para baixo e a cabeça parecia que pesava mais. E que alguma coisa nos dizia para saltar. Não é bom ter estas coisas ao pé da porta, não é. Assim como também lhe digo que não é bom ter 605 Forte em casa. Tive uma prima que se matou assim por uma insignificância. Matou-se porque era fácil, sabe? Aquilo estava ali.
O Zé traz finos para todos menos para a Maria, que pediu uma cevada. Pergunta se queremos que ponha a rádio nos discos pedidos, que vão começar. A Maria quer, não falha um.
Há um rumor de água sob os nossos pés, uma descarga. Parece que tudo aqui arrasta para o fundo.
Maria mexe a cevada com muito vagar, atenta ao gesto da mão, aos círculos que a colher vai traçando. Com a outra mão segura as pontas do xaile.
– A vida é bonita, mas tem horas muito negras, sabe? É nessas que a gente tem de saber guardar-se.
O gato espreguiça-se, acaba de acordar. Sentiu o comboio que nós ainda não conseguimos ouvir.
Mais uma vez conseguiste arrepiar-me com as tuas palavras, que também me puxam para o centro do que escreves e crescem dentro da minha cabeça, engolem-me os pensamentos e deixam-me assim, com a sensação agridoce de ter lido uma pequena maravilha que é curta demais para saciar a sede com que fico sempre depois.
Muito obrigada, Adélia.
Julgo interpretar os desejos de várias famílias solicitando que estas crónicas continuem, e com mais regularidade, se possível.
Interpretação a acertar na mouche 🙂
Vou fazer por isso. E muito obrigada, José Galhoz.
No meio de tanta desgraça…
a desprotecção civil,
a sempre retorcida informação dos órgãos de cs,
as guerras desse mundo alternativo que é o futebol,
o cinismo e a absoluta incapacidade política de todos os partidos “que nos representam”,
os donos disto tudo (vai escapando a alma!),
a justiça que se recusa a ser justa,
a chuva que não vem (e ninguém fez nada para prevenir a falta de água num país quase deserto),
o Trump
…
valham-nos as crónicas das mulheres do aventar. Um bálsamo!
Que grande responsabilidade 🙂 Muito obrigada!