O desagravo do pastel de bacalhau

Santana Castilho

Fui à minha galeria de grotescos inscrever o despacho nº 11391, do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, publicado no D.R. de 28 de Dezembro do ano findo. O verbete anterior é de Abril de 2015 e regista que, em consultas compulsivas de saúde ocupacional, as mulheres tinham de apertar as mamas até esguicharem leite, se queriam continuar a ter reduções de horário para amamentação dos filhos. Concedo que, comparado com isto, o Ministério da Saúde melhorou. Agora, apenas decidiu proibir a venda de uma extensa lista de produtos em bares que funcionam em instalações suas.

Do cortejo imenso de carências e problemas do SNS, o iluminismo do Governo escolheu os malefícios dos rissóis e dos pastéis de bacalhau e, do ano saboroso, na proclamação do seu cardeal, o governo do PS retirou o gosto da mortadela e congéneres. Numa pressurosa lista de sinal bom, recomendam-se sandes de alface e cenoura ralada e fixa-se “a disponibilização obrigatória de água potável gratuita”, não passasse pelos neurónios politicamente desalinhados de algum comerciante disponibilizar versões de água com suspensões de coliformes de terceira geração.

No preâmbulo do despacho fala-se de promover hábitos alimentares saudáveis e capacitar os cidadãos para tomarem decisões informadas sobre a saúde. Mas daí ao índex das proibições foi apenas um parágrafo. O mesmo Governo que, contra a vontade dos pais e dos directores das escolas, proibiu o fim das concessões das empresas que servem refeições intragáveis às crianças sob sua tutela, impõe agora o fim da concessão dos fornecedores das empadas e chamuças que os adultos procuram. Uma coisa é condicionar a ingestão exagerada de refrigerantes e alimentos processados por crianças em crescimento, entregues aos cuidados do Estado, nas escolas. Outra é infantilizar adultos autónomos e colocar no índex um croquete (que até pode ter sido cozinhado no forno com carne biológica) ou uma taça de arroz-doce. Uma coisa é proibir o que pode incomodar os outros. Outra coisa é impor o fundamentalismo castrador dos falsos moralistas. Uma coisa é prosseguir políticas que conduzam a escolhas informadas. Outra coisa é remover pequenos prazeres, semeando medos e complexos de culpa, que conduzem a depressões garantidas. O mesmo Estado que instituiu, e bem, o testamento vital, que num hospital permite, e bem, que se interrompa a gravidez e se prepara, e bem, para discutir a eutanásia, libertando-nos, enquanto indivíduos, de morais colectivas, não me permite que dentro das instalações do SNS coma uma patanisca?

Se a ASAE actuar e os pasteleiros resistirem, antecipo o nascimento de uma espécie de filogenia de secos e molhados. Como é sabido da Biologia, a filogenia de uma espécie é função de dados e evidências, sim, mas de interpretações, também. Donde a bizarria do texto permitir quatro sugestões, pro bono, que deixo aos resistentes:

– O pastel de nata, réu condenado neste processo, safar-se-á se for arguida a superveniência de duas condenações para o mesmo crime contra o colesterol. Com efeito, já enviado para a fogueira num período do despacho, pelo esqueleto de massa folhada, é reenviado, noutro, por ter as vísceras feitas de nata. Se em sede fiscal não se admite a dupla tributação, argua-se a nulidade, em processo culinário, desta dupla punição.

– Chamem o Bloco de Esquerda e peçam ajuda a Catarina Martins. A igualdade de género está ferida no despacho: as chamuças são nomeadas e proscritas, mas os torresmos foram protegidos.

– Também o princípio da igualdade é flagrantemente violado. O despacho deita abaixo as frigideiras de Braga (para quem não conheça, trata-se de um ex-libris gastronómico da cidade), mas deixa em pé as caralhotas de Almeirim.

– Proscritos que foram os jesuítas e os mil-folhas, levem ao forno reinventados maçons e novíssimos novecentos e noventa e nove-folhas.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

 

 

 

 

 

 

 

 

Comments

  1. JgMenos says:

    Fiquei sem saber o que há contra o aperto de mamas.

    • José Peralta says:

      Ó “menos” !

      Concedo que o secretário do estado a que isto chegou na Saúde é um homúnculo que quer promover a dita por decreto…

      Agora não saberes a humilhação a que o “outro”, o de Abril de 2015, um canalha que quiz submeter as mulheres a todo o tipo de humilhações, diz muito sobre a tua “persona” !

      Continuas igual a ti mesmo ! Parabéns…

    • ZE LOPES says:

      V. Exa. ouviu algures a palavra “mamas” e automaticamente despertou do estado cataleptico em que se encontrava desde a passagem de ano lá na caverna.

    • ZE LOPES says:

      Se forem as de V. Exa, nada contra!

    • António Fernando Nabais says:

      Falou-se em mamas e o menos apareceu logo. Fez-se referência à falta de respeito por quem trabalha e o menos exultou. A democracia existe, também, para que os menos possam dizer disparates. Força, menos!

  2. atento às cenas says:

    trau!..

  3. Paulo Marques says:

    Os disparates continuam… eles bem tentam que se morra a trabalhar, mas com esta ementa não vamos lá.

  4. Enquanto uma maioria na AR – e PS por unanimidade – aprovou e deu luz verde ao CETA, — https://www.nao-ao-ttip.pt/os-perigos-do-ceta/maleficios-para-a-saude-publica/ —um verdadeiro atentado á saúde pública em que por ex até carne de vaca com hormonas aí vem do Canadá com privilégios de toda a ordem sobre os produtos nacionais a favor da globalização castradora de soberanias dos interesses de mercado internacionais, o Governo supostamente pai zelador dessa mesma saúde pública faz leis urgentes de um rigor e preciosismo que toca o ridículo ! …”Uma coisa é condicionar a ingestão exagerada de refrigerantes e alimentos processados por crianças em crescimento, entregues aos cuidados do Estado, nas escolas. Outra é infantilizar adultos autónomos e colocar no índex um croquete (que até pode ter sido cozinhado no forno com carne biológica) ou uma taça de arroz-doce. Uma coisa é proibir o que pode incomodar os outros. Outra coisa é impor o fundamentalismo castrador dos falsos moralistas …”

    Felicito a autor do post .

  5. Felicito o autor do post ( corrigindo)

    …e aproveito para acrescentar ainda que a questão da alimentação saudável tem em primeiro que assentar alicerces na educação/informação das pessoas nas escolas e/ou através de outros meios para posterior escolha criteriosa, e depois em produtos alimentares saudáveis, na forte promoção e incentivo em várias áreas até nas Escolas Superiores de Agronomia e afins na agricultura orgânica e pecuária sustentáveis a nível nacional, sobretudo a nível dos pequenos agricultores, tantos que temos já mas que lutam com tantas dificuldades e problemas imensos, quando devia ser da parte do Estado que devia haver esse incentivo sério .
    Para que a alimentação possa residir na qualidade alimentar e saudável dos produtos a nível geral e na escolha criteriosa e informada de todos com vista a uma alimentação racional.
    Aí sim é que devia haver forte iniciativa estatal !
    …e deixando a liberdade de escolha adulta de poder comer e beber ( e fumar até ) e também e com prazer sem sentimento de culpa ou prevaricando proibições aquilo que sabe bem mas supostamente só fará mal se for em demasia, que no equilíbrio está a virtude .
    …e o prazer é saudável e legítimo, sendo responsável .

  6. Whale Project says:

    Pessoalmente já como muito menos produtos “nocivos” não por um qualquer moralismo ou fanatismo em torno da vida saudável, nem por acreditar que é a comer alfaces que vivemos assim tão mais tempo, mas para adiar o mais possível o dia em que, também eu, irei parar ao Matadouro pomposamente chamado Hospital de Faro, onde vi morrer muita gente numa miséria perfeitamente desumana. Para que nenhum dos torcionários que lá “trabalham” digam à minha família que a culpa foi minha porque comi e deles porque me deixaram comer. Porque dizem barbaridades dessas, tentando transferir para os sobreviventes uma culpa tremenda, que é deles, só deles.
    Não engulo essa de nos quererem dizer que se morrermos de uma qualquer doença a culpa será nossa, porque comemos produtos nocivos, e nunca do estado calamitoso a que chegaram os nossos hospitais, onde falta tudo.
    De uma experiência de mais de quatro meses, no tal Matadouro de Faro, corria o ano de 2013, resultaram umas quantas passagens pela cafetaria. Ao contrário das personagens das novelas, que perdem sempre a fome quando algo de mau lhes acontece, a mim, quando a vida me corre mal tenho mais fome. E saber, por tantos que via morrer, que a pessoa que acompanhava também provavelmente não sairia dali viva, dava-me fome. Ora, já não basta o sofrimento que passam os familiares que vêem alguém que amam a estiolar de dia para dia num pardieiro daqueles, ainda querem decidir aquilo que comemos enquanto esperamos que se dignem deixarnos entrar? Sabem os Srs. do Ministério da Saúde o que é fazer quase 100 quilómetros para ver um doente e só lá poder estar 10 minutos? Porque é justamente à hora da visita que,supostamente, estão a fazer os tratamentos? Ser desconsiderado e maltratado por médicos e enfermeiros, tratado como burro e débil mental e fazer de conta que não se percebe, porque ainda se mantém uma esperança que o nosso familiar consiga trocar as voltas a uma verdadeira máquina de morte? Para que a pessoa não seja abandonada? Ver criaturas a rir desalmadamente, “muito divertidos”, como se houvesse ali alguma coisa que desse vontade de rir? Ver que deixam uma pessoa a gritar durante mais de um quarto de hora, gritos de aflição, como se a pessoa estivesse a ser submetida a qualquer tipo de tortura lenta, sem ninguém lá ir ver o que se passa, e ser realmente grave? Tão grave que a pessoa falece um dia depois? E pensar no que acontece ao nosso familiar quando nos vamos embora?
    Em resumo, equipem os hospitais, dêem formação em humanidade a quem lá trabalha, que muita faltinha lhes faz, criem serviços de limpeza decentes (não é a limpar com uma esfregona nojenta o corredor de uma UCI que chegamos lá no que a infecções hospitalares diz respeito). Foi de infecção hospitalar, e não da doença que lá a levou, e que estava plasmada na certidão de óbito, que morreu a pessoa que acompanhei naquele Matadouro, a que nunca chamarei hospital. E depois logo se preocupam com o croquete ou a empada com que os familiares matam a fome e tentam esquecer a mágoa e o vazio que já têm e o pior que ainda os espera.
    E, a quem tenta desviar as atenções, transferir a culpa para os cidadãos, com “cruzadas” contra o croquete e o pastel de bacalhau nem sei que que lhes diga.

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