O estado a que a CP chegou

José Manuel Rosendo

Ponham um mapa em cima da mesa e decidam qual é a rede de ferrovia que querem para o país. E depois digam-nos. E, já agora, porque é indispensável, digam-nos que CP querem.
Falar da CP, confesso, integra uma grande componente afectiva. Talvez por isso, a situação vergonhosa do transporte ferroviário em Portugal potencia aquela sensação de “vergonha alheia” que por vezes nos invade a alma. Quando se fala da CP é isso que sinto: uma grande vergonha (alheia) pela situação a que a empresa chegou.

Passo a explicar: sou filho, neto, sobrinho, primo e tenho muitos amigos ferroviários. Nasci numa terra – Pinhal Novo – que, também ela, cresceu a partir de uma “Estação de comboios”. Ainda hoje – embora pela negativa – a linha ferroviária marca a vida de Pinhal Novo, cortando-a literalmente a meio. A electrificação da via e a anulação de passagens de nível deixou-nos duas pontes – de difícil utilização pedonal – e um túnel que convém evitar, principalmente durante a noite. Cerca de 30 mil habitantes divididos pelas linhas do comboio.

Até eu, embora fugazmente, trabalhei na CP, e durante toda a minha vida, enquanto os mais velhos da família foram vivos, as conversas sobre comboios eram o tema favorito. O comboio marcava o ritmo da vida familiar. Ia com a minha mãe à Estação levar a lancheira ao meu pai – maquinista – à passagem do comboio. Havia maquinistas que tinham uma forma específica de serem reconhecidos através do apito da máquina. Era também no bar da Estação de Pinhal Novo que comprava, sem falha, todas as semanas, os livrinhos de banda desenhada da colecção “O Falcão” com as aventuras de Texas Kid, Major Alvega e tantos outros. Durante o verão, cheguei a vender bilhas de barro, com água fresca, através das janelas dos comboios “rápidos” que iam para o Algarve e para o Alentejo…

Pai maquinista, tios maquinistas, um tio operário das oficinas da CP no Barreiro, um tio “chefe de lanço”, avôs “trabalhadores da via”, a minha avó Maria Augusta guarda de passagem de nível. Desde os 10 anos que utilizei o comboio para ir para a escola. Era o tempo daquele a que chamávamos o “comboio do texas”, tal a velhice das carruagens ao serviço, que tinham portas de abrir para fora e não poucas vezes provocaram acidentes. A CP está-me no sangue e é também por isso que me dói – ainda mais – o que está a acontecer à empresa.

Não é de agora que a CP está mal. É de há muito tempo! E a CP ficou ainda pior desde a ideia peregrina de espartilhar a empresa de transporte ferroviário em várias empresas: REFER (Rede Ferroviária Nacional, agora integrada na IP – Infraestruturas de Portugal), EMEF (Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário), CP Carga (agora Medway – operadora privada de transporte de mercadorias…); até a FERTAGUS (operadora privada de transporte de passageiros) – uma PPP da ferrovia. Para quê, perguntamos agora, quando afinal a ferrovia chegou a este ponto. Apenas, claro, para criar umas administrações ocupadas por amigalhaços e uns quantos negócios certamente úteis a alguns “empreendedores”. Espanto dos espantos: o actual Presidente da CP disse recentemente na Comissão Parlamentar de Obras Públicas que “não existe CP sem EMEF!”. Faltou-lhe dizer que também não existe CP sem REFER e sem o serviço de transporte de mercadorias. Que eu tenha dado por isso – quiçá lapso meu – nenhum deputado da dita Comissão perguntou ao presidente da CP se defende uma empresa que recupere todas as vertentes de que foi espoliada. A CP deve ser uma empresa ao serviço do país, em todas as vertentes do transporte ferroviário. A CP deve ser um todo num país que deve ser olhado e gerido como um todo.

Um dos problemas da CP é semelhante ao de outras empresas públicas: os lugares de administração são distribuídos por conveniência política! Em Portugal não existe uma escola de Serviço Público e as empresas não conseguem (não as deixam) gerar os seus próprios líderes: gente que conheça, de facto, as empresas, para além das folhas de excel e dos resultados financeiros. Gerir a CP não é o mesmo que gerir a TAP, um Hospital ou a RTP. Não é, mas parece, tal a dança de cadeiras que todos conhecemos.

Há ainda o problema das indemnizações compensatórias. O Estado exige das empresas, devia pagar, mas não paga.

A génese do problema da CP é semelhante aos problemas do Serviço Nacional de Saúde, aos problemas da Escola Pública, e a tantos outros: não há uma ideia para o país que queremos, com Serviços Públicos que sirvam de facto o desenvolvimento do país, em vez de servirem interesses da elite que em cada momento tem lugares no Governo. Os sucessivos governos não podem escamotear responsabilidades no estado a que a CP chegou e os partidos políticos que têm tido responsabilidades governativas continuam entretidos em trocas de acusações que nada resolvem. Deixem de esgrimir argumentos sobre propostas que não passam de paliativos e mostrem-nos um plano verdadeiramente regenerador da CP e da ferrovia. O desafio aplica-se também aos partidos políticos que têm estado fora do chamado “arco da governação”: não basta criticar, digam-nos qual é a CP que querem e, já agora, como é que a podemos pagar.

Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2018

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Muito bom. Parabéns ao autor. Sentem-se a dor de alma. E eu, ex militar no activo, que percorreu Portugal de comboio, sinto o mesmo.

  2. Helder says:

    Quando houver novamente eleições lembrem-se destas coisas todas que referiu, CP, SNS, TAP, etc.
    É que a memória é sempre curta neste país…

  3. Luís Lavoura says:

    Ponham um mapa em cima da mesa e decidam qual é a rede de ferrovia que querem para o país.

    É muto bonito, mas há brutais condicionantes. O terreno de Portugal é excecionalmente acidentado. A maior parte dos terrenos são privados. Muitas cidades ficam no topo de montes. É por isso que, ao contrário do que acontece com o Entroncamento e com Pinhal Novo, a ferrovia serve mal e porcamente a maior parte das cidades portuguesas.

    • Pedro says:

      Então os suíços é que estava mesmo tramados … 😉

      • Luís Lavoura says:

        Vê-se mesmo que você não conhece a Suíça…
        A Suíça tem altas montanhas, mas também tem muitos vales muito planinhos. E todas as grandes cidades suíças, sem exceção, ficam em regiões bem planas. As cidades suíças são muito mais planas que as portuguesas.
        A grande maior parte dos suíços vive numa coisa chamada “planalto suíço”, situado entre os Alpes e as montanhas do Jura. Esse planalto é basicamente plano.

    • Mónica says:

      Ah! Deve ser então porque surgiram montanhas novas desde que existe comboio em Portugal que se fecharam linhas e se desinvestiu completamente noutras. Já quando a montanha está no caminho da estrada não há falta de dinheiro para construir túneis. 😀 :

    • Paulo Marques says:

      E o que é que isso tem a ver com a pergunta? E porque é que isso não impede que haja um meio de transporte cuja expansão nunca acaba?

    • Portugal acidentado francamente, parece que não gostamos de fazer túneis, ficam reservados para as toupeiras do futebol… Na Noruega fizeram comboios, seria mais difícil, mas este povo tem uma mania de ser poupadinho para ser probrezinho mas honradinho…

  4. Nascimento says:

    Um post vindo CORAÇÃO! Certeiro. Também eu conheço algumas partes citadas neste texto. Sim, tudo começou quando um bandido de Boliqueime começou a fechar apeadeiros, linhas, armazens de viveres que serviam os ferróviáros, etc.
    Depois? Ora depois APARECEU O ” PICARETA FALANTE” XUXIALISTA, ( anda pela a ONU), e toca de dividir para por os que saÍam da CP/PSD, na REFER e afins.
    Simples.
    Com o Socrático apareceu um m…-o ( Cardoso dos Reis) o qual , por sua vez, foi
    ” buscar” um rapazola ao Norte, e que tinha prestado um ENORME FAVOR AO PARTIDO na altura : Tinham-lhe dado uma sova lá prós ladecos de Gondomar ( braço ao peito, olho negro) e aquela merda metia CAMARA DE GONDOMAR, PESSOAL DA NOITE E ACUSAÇÕES DE UMA ” RAPARIGA” QUE ANDAVA NA BERRA OU SERIA BIRRA? COM O PRESIDENTE FLATULÊNCIAS DO FCP , etc. ENFIM UMA UMA LINDA TELENOVELA! Á MODA DO PORTO!
    Bom ,resultado?: o RAPAZ ( HOJE INSIGNE DEPUTADO DO PS ), VEIO PARAR Á CP ( MAS VEIO PARA LISBOA!! HOTEL,CONDUTOR Á PALA, ETC…) E A SUA MISSÃO? ANDAR A PASSAR/ PRIVATIZAR TUDO O QUE ERA ” BENS” DO TIPO:
    ” PARQUES DE CAMPISMO/PRAIA DE VALADARES / GAIA E PRAIA DAS MAÇAS/ SINTRA…
    e o BES AGRADEÇEU!!! DIZEM AS MÁS LINGUAS QUE TAMBÉM ANDOU ALI A MÃOZINHA DA MOTA E ENGIL…ENFIM.
    MANDAVA NESSA ÉPOCA FARTA O TROLL, ” O JAMAIS” , MAS, ERA UMA SENHORA CHAMADA ANA PAULA VITORINO. QUE ….. POIS É … MAIS ?
    SABEM … GORDURAS ?TOCA A DESPEDIR . não sabiam? é que a CP DESPEDIU TRABALHADORAS ( CRECHES/ INFANTÁRIOS) , ISTO NO TEMPO DO “PIEGAS” PASSOS, QUANDO Á FRENTE ESTAVA UM MERDOSO VIGARISTA QUE QUERIA VENDER PASTEIS DE NATA, ACOMPANHADO POR UM F. DA P. DE UM SECRETÁRIO DE ESTADO QUE HOJE ” PRESTA SERVIÇO” NO BANCO DE PORTUGAL! MAIS?UI…

    Ps. O que é que o rapaz ” deputado” PERCEBIA DE COMBOIOS??? DASS… RIEN PÁ !ELE SÓ ANDAVA DE PÓPÓ ! EHEHEHEHEH

  5. Adão Fonseca says:

    A gestão Socialista nunca funcionou em sitio nenhum e nunca funcionará por questões que para qualquer pesoa com um QI mediano são obvias.
    Mesmo que page principescamente aos seus funcionários…
    A gestão Socialista apenas resiste com defice e qualidade baixa.
    Insistam insistam , na esperança que fazendo a mesma coisa obterão um resultado diferente.

    Adão Fonseca

    • Manuel Silva says:

      Ao contrário, a gestão que preconiza funciona muito bem a acumular na mão de poucos o que devia ir para muitos.
      Essa nunca falha: faz sempre a mesma coisa e obtém sempre os mesmos resultados.

    • Paulo Marques says:

      Continuem a ladrar que não há de ser por aí que alguém se vai esquecer de como o new deal era incomparável com o monetarismo.

  6. Manuel Silva says:

    O texto, como desabafo afectivo, é muito interessante e genuíno.
    Mas não passa disso.
    Enferma do erro com que se analisa o país: fala-se sempre a jusante e nunca a montante.
    A jusante está a distribuição e a justiça distributiva (que entre nós é pior do que péssima: uns, poucos, comem a carne, outros, muitos, lambem os ossos).
    A montante está a produção de riqueza e as condições para a aumentar, permitindo, depois, a distribuição (seja ela pelas pessoas, pelo SNS, pela Educação, pela CP, etc.): dessa pouco se fala.
    E quando se fala, muitas vezes fala-se de forma enviesada: contra a UE, contra o euro, etc. (contra aquilo em relação ao qual pouco podemos fazer, restando-nos barafustar. Mas a discussão que depende de nós para melhorarmos o que está ao nosso alcance, essa fica por fazer).
    Enquanto não se falar da produção de riqueza, e dos melhores meios de a incrementar, em vez da lamúria que não leva a lado nenhum, continuaremos na desconversa e nas lamentações afectivas.

    E temos andado nisto há 44 anos, os anos da esperança e da oportunidade de melhoria do país e da vida das pessoas: parece que a maioria das pessoas não está contente com o que se conseguiu.

    P.S. ─ Vou dar um exemplo, aparentemente estapafúrdio e sem relação com o que acabei de dizer (mas com muita relação com o desabafo do J. M. Rosendo).
    Quando o ministro Betoneira do Amaral (o do tacho na Lusoponte que ele tutelou e com quem negociou a Ponte Vasco da Gama) criou o Fertagus, a promessa é que ia reduzir os carros na Ponte 25 de Abril. Aumentaram.
    Isto porque a Fertagus continua, há 19 anos, com os mesmos horários absurdos: de 20 em 20 minutos de Coina a Lisboa e 60 em 60 de Setúbal: embora nos curtos períodos de ponta dupliquem. Isto não induz a procura nem potencia a linha. Entretanto, o serviço degradou-se e tem uma bilhética absurda (só há pouco aderiu ao zapping).
    Recentemente, a Área Metropolitana de Lisboa (criada em 1991), apesar do agravar do problema da mobilidade e dos inúmeros protestos dos utentes, acordou agora e exige um passe social único e acessível para os seus 18 municípios (há 7000 títulos de transporte diferentes na AML).
    Pergunto: o que impediu a AML de exigir antes o que exige agora.
    Isso não dependia da UE, do euro, de quem quer que seja: dependia de as instituições burocrático-administrativas estarem ao serviço das pessoas, a exigir a melhoria da sua vida, em vez de se entreterem em lutas político-partidárias de divisão de lugares para os seus.
    Pensemos na enorme estrutura político-administrativa para gerir um território de 90 000 Km2 e 10 milhões de almas: não cria riqueza, gasta recursos e impede a criação de riqueza. Reduzi-la e racionalizá-la depende de nós, não da UE nem do euro ou de outras desculpas de mau pagador.

    • Paulo Marques says:

      Mentira e muito má economia. Só há investimento em Portugal no dia em que possa voltar a existir défice por períodos prolongados em substituição da dívida privada, só depois de tudo isso é que pode haver alguma coisa para exportar que não sejam recursos humanos. A Ásia explica.

  7. Paulo Marques says:

    E hoje evitou-se a primeira catástrofe de muitas por pura sorte. Siga a austeridade.

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