Espera lá! E a direita não tem culpa?

Durante milhares de anos, poucos homens exploraram muitos sem que os explorados tivessem verdadeiramente à sua disposição instrumentos mentais, morais ou intelectuais que lhes permitissem perceber que estavam a ser escravizados, que a exploração era uma realidade. Pelo meio, claro, houve revoltas, houve Espártaco, houve jacqueries, houve Galileu e muitos outros que chegaram a mártires, mas foi preciso esperar por tempos mais recentes para que alguns filósofos, independentemente da sua condição burguesa, dessem aos explorados meios para, finalmente, pensar sobre a sua condição. Foi então que os oprimidos começaram a estrebuchar, a incomodar, a exigir, para espanto das classes altas, que, invariavelmente, reagiram com brutalidade, até que, em muitos casos, foram obrigadas, para sobreviver, a aceitar a democracia, sendo que, ainda assim, nunca deixaram nem deixarão de a minar.

O poder, ao longo de milhares de anos, encontrou sempre maneiras de se legitimar, legitimando a opressão que exercia, com a ajuda, entre outras, da religião. No caso da nossa Europa, basta lembrar que o rei era ungido (o mesmo que se disse, por exemplo, do Bolsonaro e já fora dito acerca de Salazar), o que lhe dava direito, na prática, a algo semelhante à impunidade. O equilíbrio de poderes era um equilíbrio entre poderosos (reis, papas, duques e outros) e não entre patrões e servos.

É, evidentemente, um anacronismo simplista considerar que o mundo foi de direita, mas a direita pura e dura descende de todos esses grandes senhores que nunca se conformaram com a perda de privilégios, que vêem com muitos maus olhos a gentinha que até foi estudar e que argumenta e que exige. A direita esteve, portanto, no poder desde o princípio da humanidade: o poder era do mais forte, do mais rico, do poderoso. O poder dividia-se por poucos. No fundo, não havia direita e esquerda, porque só havia um lado e esse lado sempre foi parecido com Hitler, Salazar, Franco, Pinochet, Noriega e muitos outros que, mesmo tendo nascido ideologicamente à esquerda, esqueceram-se ou nunca se quiseram lembrar dos fracos e dos oprimidos. Ser de direita é mais tentador do que ser de esquerda: basta ver as migrações entre os dois lados e descobrir-se-ão muitas zitas seabras e imensos durões barrosos.

O mundo é de direita desde que existe humanidade e, na defesa da manutenção dos privilegiados, continua a ser de direita, com uma União Europeia a impor favores às multinacionais e aos bancos.  A raiva de PSD e CDS contra António Costa nasce apenas do facto de não serem eles a ocupar o poder, porque, de resto, apesar do apoio parlamentar de esquerda, Costa e Centeno são da direita que impõe austeridade a quem tem menos e dá largueza a quem tem mais. O mundo é da direita.

Trump e Bolsonaro, entretanto, foram eleitos e eis que a direita democrática desata a pôr as culpas na esquerda, no politicamente correcto, na defesa de causas tão fracturantes como escusadas, no folclore das barbas e da música de intervenção, na corrupção do Lula e da Dilma.

Os deméritos e os pecados da esquerda serão muitos, mas o Bolsonaro e todos os que trabalharam para que fosse eleito são de direita, numa tradição milenar de gente que domina o mundo desde sempre e que ainda é preciso combater ou aprender a combater. É uma máquina tão poderosa como a das grandes religiões, que, aliás, também participaram nesta e noutras tarefas. Amigos de direita, o Bolsonaro é dos vossos. Não queiram atirar todo o mérito da eleição para o demérito da trincheira contrária, até porque seria desvalorizar todos os que contribuíram para este resultado. Amigos de direita, o herói de Bolsonato chama-se Carlos Alberto Brilhante Ustra. Caso não conheçam, é primo do Mengele.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    Se os Bessas e os Bentos desta vida acha que nem têm culpa pelo Pinochet, não me parece que cheguem lá. Aprender causa e consequência é muito complicado para a direitola.

  2. Dizer que os escravos não tinham à sua disposição instrumentos mentais, morais ou intelectuais é não perceber nada do fenómeno da escravatura na antiguidade e misturar alhos com bugalhos e misturar antiguidade com colonialismo: passava-se num ápice de senhor a escravo no mundo antigo. Houve escravos que ascenderam ao lugar de faraó. Meter aqui o Galileu não lembrava ao diabo. Dizer que o mundo desde o início é de direita é de cabo de esquadra. Esquecer o papel dos reis portugueses na Idade Média contra o poder dos poderosos em prol do Povo e do centralismo do Estado (uma ideia de esquerda) é de uma incompetência atroz. Não lembrar que a Igreja permitiu a ascensão social levando gente do povo a ascender aos mais altos cargos do poder e da ciência, é preconceito. E os regimes comunistas existentes do mundo, serão de direita? A China é de esquerda, do centro ou assim, assim? Bolsonaro de facto já começou a fazer estragos atacando a inteligência de quem se diz de esquerda. A culpa da eleição de Trump foi a ausência da esquerda que não foi votar (Trump ganhou com menos votos com que McCain perdeu para Obama). Se a esquerda governou o Brasil e agora o Povo votou em massa em Bolsonaro, é claro que os votos transitaram da esquerda para a direita. É matemática…

    • António Fernando Nabais says:

      Há documentação que prova que havia entre os escravos um debate profundíssimo acerca das condições de trabalho, especialmente os que trabalhavam na agricultura, sobretudo quando estavam a ser castigados (é rolos e rolos que se conservaram com autógrafos dos escravos e tudo). E, sim, era tão frequente passar-se de senhor a escravo como de escravo a senhor. As excepções, como se sabe, nunca confirmam a regra. O Galileu não afrontou uma instituição poderosa em nome do saber e da verdade e o Brecht, esse grande reaccionário, nem sequer aproveitou a figura do astrónomo numa das suas peças para ilustrar essa luta do indivíduo contra os poderosos. Nem eu escrevi que estava a incorrer num “anacronismo simplista”. Dizer que os reis na Idade Média lutaram contra os poderosos em prol do Povo é uma interpretação tão esquerdista da História que nem eu consigo concordar, quando os reis, de uma maneira geral, lutaram para aumentar o seu poder contra o poder senhorial e todos juntos, reis e senhores, desprezavam o vilão, característica anotada, por exemplo, por José Mattoso como um dos elementos da identidade da nobreza (e, portanto, da realeza). E os regimes comunistas foram ou são ditaduras, mesmo que tenham nascido de ideais generosos (também o cristianismo anunciou o amor ao próximo e deu origem a uma instituição que trouxe tanto sofrimento ao munds, mesmo que nos tenha dado, por exemplo, São Francisco de Assis). A Igreja esteve sempre do lado do poder, sendo que, muitas vezes, os membros do alto clero provinham da mesma nobreza que desprezava o povo. Quanto ao resto, este texto só serve para explicar que o autoritarismo e a direita têm raízes muito antigas e que, portanto, a culpa da eleição de trumps e bolsonaros não pode ser só demérito da esquerda. A direita, mesmo quando não se chamava direita por não existir o nome, sabe muito bem o que anda a fazer.

      • O sarcasmo e a ironia não lhe ficaram bem. Para um post tão simplista que misturou escravos de uma escala social, com escravos de circunstâncias políticas e com escravos do colonialismo, teve uma resposta simplista. Mesmo os escravos do colonialismo, na América, tinham profunda consciência da injustiça em que viviam socorrendo-se da religião cristã que os identificou com a história do povo Hebreu no Egipto, deixando o seu lamento e protesto, muitas vezes político, na música Gospel. Agora misturar Spartacus, um mercenário ao serviço do exército romano, com lutas de esquerda e direita, ou Galileu, um homem profundamente integrado no “sistema”, é forçar demasiado a nota (Brecht era um excelente dramaturgo e daí?). Transpor as questões de direita e esquerda dos séculos XIX e XX para todo o passado político do Homem com a afirmação de que todos os sistemas políticos do passado são de direita, coloca a questão: O sistema dos índios norte americanos era de direita? E o dos aborígenes da Austrália? São regimes fascistas? E o sistema da Coreia do Norte, é de esquerda? E Napoleão? Era de esquerda, de direita ou assim, assim? E por que razão vai aquele contingente de homens, mulheres e crianças em direção à América “fascista” do Trump? E se o Bolsonaro é culpa da direita, o Chavez e o Maduro é culpa de quem? Da esquerda? E o declínio da Merkel, em quem a esquerda gostou tanto de bater?
        Portanto a Esquerda queria uma direita que apanhasse os cacos da má administração e da corrupção da Esquerda. É isso? Bolsonaro é culpa dos votos do Povo que não cuida de esquerdas ou direitas. Quer pão e paz. Todos os agentes defensores da democracia, esquerda incluída, não souberam interpretar os anseios do Povo e perderam-se com questiúnculas menores. O Povo não perdoa.

        • António Fernando Nabais says:

          Desta vez, vou citar: “É, evidentemente, um anacronismo simplista considerar que o mundo foi de direita (…)”. O sarcasmo e a ironia ficam-me sempre bem, tal como o castanho, que vai bem com a cor dos meus olhos. Quem entrar por esta caixa de comentários a usar “argumentos” como “é de cabo de esquadra” terá direito a tudo o que me ficar bem. Vou ainda repetir: com este texto, não pretendi explicar as razões que levam os eleitores (de esquerda, de direita, de centro, de cima, de baixo) a votar em personagens que prometem ditaduras.

      • “A direita sabe muito bem o que anda a fazer”, Uma coisa da nobreza e do clero diz AFN. Tivessem Hitler, Mussolini e Salazar lido o AFN e não se esqueceriam das origens e da condição de explorados, e teriam sido de esquerda…e Stalin não teria esquecido que o autoritarismo era privilégio da Direita. Tal como no cinema, é altura de a Esquerda perceber que o mundo já não é a preto e branco.

    • pata negra says:

      Simples, claro e conclusivo. Bom texto.

  3. JgMenos says:

    «instrumentos mentais, morais ou intelectuais que lhes permitissem perceber que estavam a ser escravizados»

    De facto? … bem precisam de um querido líder para os guiar!!!

    Esquerdalho não teme o ridículo – requisito 1º.

    • António Fernando Nabais says:

      O menos não é só uma cara bonita.

    • ZE LOPES says:

      “Esquerdalho não teme o ridículo – requisito 1º”

      Pois. E direitrolha teme, mas cai lá sempre!.

      Atenção! Mais um título para JgMenos: DRT (Dono do Ridículo Todo)! Quem lhe deu este estúoido título só pode estar no gozo!

    • Paulo Marques says:

      Tendo em conta que a imprensa, os padrecos, o patrão ou dono e os líderes políticos lhes vendiam que assim é que estava bem, é natural que precisassem de quem lhes desse direcção.
      Agora achar antes de Marx não havia tentativas de revolução é de quem aprende história com o Rui Ramos. Até o JC não apareceu do nada.

      • Paulo Marques says:

        E o mal recordado Adam Smith já tinha dito no que ia dar.

      • António Fernando Nabais says:

        Quando se generaliza, não se especifica, diria La Palisse. É claro que houve movimentos, escritos, manifestações de revolta, mas esta globalização do desafio aos poderosos, com Marx ou outros, é coisa recente. Já a ditadura é velhinha, velhinha, velhinha. E com o Rui Ramos aprende-se tanta História como o José Rodrigues dos Santos, passe o exagero.

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