Tradução e gratidão

Foi depois de ter enfiado – com alguma fúria e frustração, diga-se – aquele insuportável livro num raro buraco de uma das estantes grávidas de livros cá de casa que, vendo na prateleira imediatamente superior e ao nível dos olhos o título a letras de ouro de “As Minas de Salomão”, de Henry Rider Haggard, na brilhante tradução de Eça de Queirós, me ocorreu de novo aquele sentimento de gratidão que tantas vezes me ocorre ao ler um livro traduzido por alguém cujo talento literário se mostra ao nível do autor original – não quero ter o maldoso atrevimento de me interrogar se, por vezes, não o ultrapassa.

Podia aqui fazer uma lista de tradutores- escritores e tradutores -académicos a quem estou profundamente agradecido mas, dada a feliz extensão de uma tal lista e a possibilidade de, por esquecimento ou ignorância, pecar por omissão, não o farei. Mas passam-me pela memória nomes, obras, descobertas, verdadeiros prodígios de tradução e recriação literária e/ou científica. Tanto mais que, não o ignoro, o trabalho de tradução é pessimamente pago e só o amor à arte motiva os melhores a fazê-lo. As gerações mais novas talvez achem esta gratidão excessiva, mas bem sabem os mais antigos como fizeram, por necessidade, os seus estudos sem ler uma linha na nossa língua.

Foi nos anos 70 e com a revolução que a actividade editorial explodiu em produção de obras traduzidas em português e foi então, também, que começaram os expedientes de algumas dessa empresas para ter bom, barato e depressa. Com péssimos resultados. Então, ao lado de grandes tradutores, apareceram, tratados como se fossem iguais, autênticas fraudes. E não estou a falar divergência de critérios ou debates sérios, que os há. Estou a falar de gente que se limita a polvilhar as páginas de sinónimos e pontuação que deixam o leitor com os nervos em geral e os neurónios em particular em péssimo estado – como no caso com que abro este texto. Por vezes, o estilo parece-se com o dos manuais do Tio Patinhas que líamos em crianças.

Não é verdade que não se lê ou se lê cada vez menos. Mas as editoras que respeitem os seus leitores e remunerem com justiça os bons tradutores. É que, por vezes, quando se opta por ler os livros na língua original, não é por snobismo, é por necessidade. Abraço, pois, agradecido, os recriadores-tradutores que houve, que há, e a haver. E sei que, se nenhuma destas palavras vos oferece o que merecem, sempre são uma humilde voz de reconhecimento que talvez algum de vós ouça. E vos torne este dia mais agradável.


Foto: Abbi Sharma

Comments

  1. Bom tema, alinho consigo, J. Gabriel , pelas mesmas razões que aponta.
    Luís Caetano na nossa Antena 2 tb já o tem abordado.

    Sim, esse reconhecimento a nível público a acontecer aos bons tradutores, tão justo e merecido a poderem ser atribuídos quanto os prémio Nobel a alguns tradutores de excelência não inferior aos autores, que conseguem trazer até nós a obra com inteiro ( …por vezes melhor ainda ? ) sabor literário.

    Acrescento esta observação : raramente a poesia árabe é conhecida, lida e divulgada não existindo ou sendo raras edições traduzidas, por desconhecimento de ordem geral da língua e da cultura árabes, mas tb porque grande parte da beleza sublime e essência poética se perdem na tradução, sendo somente verdadeiramente apreciada se lida na língua original, isto me foi afirmado por um grande sabedor e apaixonado pela cultura árabe que assim a usufrui, pq também poeta, considerado um grande e culto arabista, Adalberto Alves, com vários livros editados sobre vários temas dos quais adquiri grande parte,
    ( ex. “Al-Mu`tamid Poeta do Destino ” )

    … e já agora fiquei curiosa de saber qual seria “aquele insuportável livro” que refere em início de seu texto
    : )

  2. JgMenos says:

    E vice-versa.
    Há anos encontrei em Elvas um folheto turístico que continha numa frase ‘…ace walls’. Às muralhas era o sentido.

  3. José Gabriel, nem de propósito, a propósito de tradutores, a nossa Antena 2 como companhia enriquecedora, ontem .

    A assistir, se não teve já a essa oportunidade :

    https://www.rtp.pt/play/p321/e376152/a-forca-das-coisas

  4. Pedro says:

    Agradeço o artigo, a chamar a atenção para o complexante e complexo complexo de complexos problemas.
    No que profissionalmente me toca, agradeço a empatia.
    Traduzir conscienciosamente vem sendo mais e mais desprezado, com a Estupidez a reinar, tanto em causas como em consequências.
    E já nem estava a pensar nas (já graves) imediatas, como googles a montante, ou “obras” indignas de prateleiras a jusante, mas sim nas mais profundas, de genérica falência educativa e de várias — velhas e novas — desumanizações e escravidões.
    [Bolas! Como terminar escabrosos cenários “em beleza”??]

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