Coletes amarelos: o povo saiu à rua

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A batalha de Paris, que ontem levou a cena o seu quinto acto, não é uma versão moderna da tomada da Bastilha. É a entrada em cena, no núcleo duro da velha Europa ocidental, de uma forma muito particular de terrorismo, que há meses se manifesta ideologicamente em blogues e redes sociais, onde se formou um pequeno exército de indignados que, a meu ver inadvertidamente, serviu de cobertura para que um grupo de profissionais do distúrbio pusessem em marcha uma agenda de destabilização, focada no objectivo final de abater a Democracia como a conhecemos. E de colocar Marine Le Pen no poder.

Mas esse pequeno exército, que nem é tão pequeno como parece, nem se resume aos revolucionários gauleses que tomaram as ruas da capital e das grandes cidades francesas, é muito mais do que um grupo de delinquentes que professa ideologias extremistas. É a manifestação de um povo, cada vez mais consciente da sua condição de financiador das mais fabulosas fortunas do planeta, que assiste, indignado, à galopante precarização das suas condições de vida, perante a indiferença e escárnio da elite que os comanda.

E é simbólico que tudo isto esteja a acontecer em França, berço da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. Na França dos direitos sociais, onde durante décadas se conseguiu, em certa medida, domesticar o capitalismo para garantir uma ampla rede de serviços e infraestruturas públicas, regimes salariais atractivos e um Estado Social funcional. É nesta França, onde ainda se vive melhor do que na esmagadora maioria dos restantes países, que milhares estão nas ruas, pelo quinto fim-de-semana consecutivo, sem uma liderança clara e reconhecida por todos, desorganizados demais para resistir às investidas dos gangs de criminosos que vandalizam, destroem e incendeiam.

Encostado às cordas no quarto acto, Macron desistiu do aumento de impostos que acendeu o rastilho, e decretou várias medidas, como um aumento de 100€ no salário mínimo e uma redução da contribuição dos pensionistas com reformas inferiores a 2000€. De pouco lhe adiantou tentar salvar a sua pele. Com os níveis de popularidade a bater mínimos históricos, já são muitos aqueles que pedem a deposição de Emmanuel Macron.

Significa isto que Macron terá que ir a jogo novamente. E se Macron não ouvir o que os franceses lhe estão a tentar dizer, se não estiver disposto e ir mais longe, a sua morte política poderá estar para breve. A situação poderá ainda contagiar outros parceiros europeus, onde a tensão social é elevada, e criar novos focos de contestação e confronto, férteis para o surgimento e reforço de movimentos extremistas, que se alimentam da fúria da turba, mas que, ao contrário dela, estão devidamente preparados para o dia seguinte.

Momentos como este, em que uma potência mundial se vê confrontada com uma insurreição interna, que as forças de segurança têm dificuldade de conter e que muito provavelmente levará o seu presidente a tomar medidas pouco populares, fazendo o confronto escalar ainda mais, servem também para nos recordar que os 99% estão efectivamente a ser explorados, pilhados e agredidos, não pelo 1%, mas pelo 0,1%, que os restantes 0,9% são na verdade aios e mordomos bem pagos, funções que acumulam com a de idiotas úteis.

E como em tudo na vida, poderá chegar o dia em que os donos disto tudo acordam com a turba à porta de casa, de pau na mão e pouca disposição para conversas. Nesse dia, suspeito, pequenos estalines e hitlers terão os seus discursos escritos, homens e mulheres armadas e um plano de governo bem delineado, que, por força de convenientes circunstâncias, poderá nem vir a ser alvo de escrutínio. É que, por vezes, as pessoas zangam-se mesmo. Chegam até a ficar furiosas e a descontar naqueles que percepcionam como sendo os culpados pela sua condição. E os culpados, meus caros amigos, são facilmente identificáveis.

Os culpados – e de pouco lhes adianta agitar o papão do antiparlamentarismo – são a classe política que durante décadas dirigiu os destinos da União e dos seus membros. Uma classe política manchada pela impunidade, corrupção e descaramento, absolutamente imune à justiça, que permitiu que os Estados europeus fossem assaltados pela máfia público-privada que esbanjou quanto quis, enriqueceu quantos quis e tomou decisões que hipotecaram o futuro das democracias, tornando-as reféns de uma dívida estratosférica e impagável, que se alimenta de mais dívida, devastando tudo à sua passagem.

Uma classe política que nos quis convencer que vivíamos acima das nossas possibilidades, enquanto tapava buracos na banca criminosa com o dinheiro dos nossos impostos. Cortes na Saúde, cortes na Educação, cortes em tudo o que atenua a pobreza instalada, e mais uns milhões despejados nas contas dos parceiros público-privados, que vivem à custa do orçamento de Estado até ao dia em que são resgatados pelo orçamento de Estado.

Durante anos, alimentou redes caciquistas de pequenos mafiosos, através das quais tomou conta de associações, institutos, fundações, organizações e empresas públicas, órgãos de comunicação social, clubes de futebol e estruturas religiosas. Controlavam tudo, corrompiam tudo, pagavam favores pessoais com recursos públicos e abatiam quem tivesse a ousadia de questionar os métodos.

E enquanto os Estados eram geridos em função dos apetites da pandilha criminosa, que do alto da sua arrogância se achava acima de tudo e todos, a paciência foi-se esgotando à mesma velocidade a que a revolta cresceu. E o povo saiu à rua. Resta saber até onde estará disposto a ir.

Comments

  1. Jorge Evaristo says:

    E nós por cá temos que fazer o mesmo que estão a fazer os franceses. Abaixo os de cima, queremos Justiça!
    Sugestões de palavras de ordem para a manifestação da próxima sexta-feira:
    -Costa fora,
    Jerónimo e Catarina rua!
    Explicação: é que enquanto os comunistas e os bloquistas se alimentam berrando na rua em manifs e greves, os socialistas preferem estar dentro de casa a mexer na massa.

    -Viva o Populismo/Nacionalismo que defende Portugal.
    -Abaixo a Geringonça que defende ideologias.

    -Costa escuta,
    o Povo está em luta!

    -Levanta-te outra vez,
    Povo português!

    • ZE LOPES says:

      Só uns comentariozitos às “palavras de ordem”:

      “Abaixo os de cima, queremos Justiça!”

      Colossal! E quando “os de cima” caírem irão ficar em baixo. Nessa altura a palavra de ordem será …””Abaixo os de cima, queremos Justiça!”. Depois caem esses e a palavra de ordem vai ser “”Abaixo os de cima, queremos Justiça!”. Que será, mais tarde utilizada pelos caídos na rua gritando “Abaixo os de cima, queremos Justiça!”. Os que estão em cima, ao tentarem fazer justiça, serão interpelados por manifestações onde a palvra de ordem será “Abaixo os de cima, queremos Justiça!”.

      -“Levanta-te outra vez,
      Povo português!”

      Esta é melhor, na medida em que rima, o que é sempre bonito numa palavra de ordem. E cá na minha terra vai certamente ser seguida. Vai haver um levantamento geral, posso assegurar: milhares de pessoas vão ter de se levantar às sete da manhã para ir trabalhar.

    • João Mendes says:

      Portanto, segundo o Evaristo, abaixo as ideologias, excepto a dele. Presumo que com a liberdade de expressão será igual, não é?

      • ZE LOPES says:

        Eu gostei mesmo foi da explicação. Parece que o objetivo é afastar Costa da massa, enquanto Evaristo zela, por outro lado, pela alimentação de Jerónimo e Catarina.

        É caso para perguntar: Evaristo, tanto colete só p’ra isto?

    • “Levanta-te outra vez,
      Povo português!”

      Enquadra-se bem nas decadentes rábulas da (extinta) revista à portuguesa.

      • ZE LOPES says:

        Estou a imaginar. Entra o “compére” Evaristo e diz: “Ó povo português! Levanta-te lá outra vez!”. Depois de dar meia-hora à assistência para se rir, entra o corpo de bailarinas vestidas só com coletes amarelos. Vai ser um sucesso!

        • Acabaste comigo com a entrada das bailarinas em colete amarelo. Não jogo mais 🙂

          • ZE LOPES says:

            Não sei é se entra a seguir corpo de baile do PNR com o Castelo Branco em plumas! Estou verdadeiramente preocupado!

  2. JgMenos says:

    Treteiros com uma única via de satisfação: tirar a quem tem para acrescentar aos coitadinhos, em que naturalmente sempre se vêm incluídos!

    Alguém identifica uma lei que não vise acrescer ao saque?
    Alguém propõe um plano que altere outro dado fundamental que não seja garantir o saque?

    Culpam os políticos.
    Mas alguém reclama algo que não dependa da acção dos políticos?
    Não é aos políticos que propõem que aumentem o saque?
    Não é dos políticos que requerem mais dádivas?

    Sociedade civil? Matilha de pedintes maldizentes, sem outro foco que não sejam os seus umbigos.

    • ZE LOPES says:

      Nem mais! Mas a mais insólita reivindicação que ouvi foi a de exigirem a mudança do nome das festas de Vila Franca de Xira para “Festas do Colete Amarelado”. E querem mesmo que os campinos vão de colete amarelo e levem os cavalos às costas para simbolizar a opressão dos políticos ao povo!

    • Paulo Marques says:

      Claro, os pedintes que fizeram que o Morcon baixasse os impostos dos ricos, que haja cortes nos direitos do trabalho, nos salários e no poder de compra, que fizeram com que não haja regras para o sector financeiro, etc. são completamente apolíticos e nunca viveram à custa do estado. Claro.

    • ZE LOPES says:

      Ah! Nem me lembrei! É um extrato da prédica dominical do Apóstolo Menos lá na Igreja Universal do Reino da Coelha! Todos os domingos nos brinda! A Coelha seja louvada!

  3. João Mendes, análise de alertas muito pertinentes que merece ser divulgada !
    Subscrevo inteiramente …de colete arco-íris !

  4. anonimo says:

    “Os culpados – e de pouco lhes adianta agitar o papão do antiparlamentarismo – são a classe política que durante décadas dirigiu os destinos da União e dos seus membros.”
    Se fosse assim tão simples então a solução era fácil: eleger BE ou PCP, por exemplo (segundo interpreto das suas palavras, a classe política de que fala não incluiria PCP e BE). Porque não ocorre? Os restantes teriam, máximo, 10% de votos (0,1% + 0,9% de “aios e mordomos”).
    Pelo contrário, não só PCP e BE não aumentam significativamente as votações como as manifestações em França servirão para “colocar Marine Le Pen no poder”.
    Talvez a insistência em afirmações populistas do género “0,9% de aios e mordomos” conduza precisamente a este resultado.
    Populismos por populismos o povo vai sempre preferir os de extrema-direita que lhe prometem responder à que é afinal a sua primeira prioridade: ordem e segurança.

  5. anonimo says:

    “Os culpados … são a classe política que durante décadas dirigiu os destinos da União e dos seus membros.”
    Caro João Mendes,
    Desculpe mas tenho de lhe pedir uma clarificação direta: incluí neste grupo de culpados o PCP e o BE (no caso português) ou o França Insubmissa (no caso Francês)?
    Se não incluí, então porque não votam estas pessoas em PCP, BE ou França Insubmissa?

    • Paulo Marques says:

      Porque não são “pessoas sérias” que queixam “ter contas certas” e a não “assustar os mercados” ou “afugentar os criadores de emprego”, querem é andar a “amamentar preguiçosos”, a “fazer as pessoas homossexuais”, a “afastar a igreja das pessoas” e “a comer criancinhas ao pequeno-almoço”. Isso e anda a perder tempo com casos identitários invés da igualdade como um todo.
      A propaganda tem muita força, mas a realidade tem mais. A TINA está morta, seja pela “extrema” esquerda ou direita e o capital já se adapta ao que vem a seguir. E a realidade é que não é durante muito tempo que se consegue convencer as pessoas que ter um emprego estável, 3 refeições por dia e uma habitação é um luxo.

      • anonimo says:

        Desculpe mas não percebi a sua resposta às minhas perguntas:
        O PCP e o BE (no caso português) ou o França Insubmissa (no caso Francês) também são culpados pela situação atual? Defendem o que os coletes amarelos pretendem?
        Se não são culpados e defendem, então porque não votam estas pessoas no PCP, BE ou na França Insubmissa?

        • Paulo Marques says:

          Defendem parte, o direito ao trabalho e a uma vida digna. Não votam porque não lhes reconhecem competência em seriedade, em parte por razões legítimas, mas maioritariamente por propaganda capitalista de que era o fim do mundo e arredores; e vendo que continuam a ser eurófilos, até é capaz de ser verdade – nunca vai haver haver reformas da eurolândia.

          • Anonimo says:

            Agora percebi o seu ponto de vista, e concordo em parte com ele. Só discordo na parte em que refere a “propaganda capitalista”: não me parece que quem vem para a rua protestar com esta convicção se deixe influenciar pela propaganda capitalista de que fala (e que existe). Acho que é mesmo por considerarem que, no fundo, são todos iguais. Casos como o Robles só confirmam essa percepção.

          • Paulo Marques says:

            O Caso Robles (TM) não é coisa nenhuma, qualquer dia estão a dizer que quem é de esquerda não pode ter acções, ir a clínicas privadas, frequentar universidades privadas, usar combustíveis fósseis, consumir gado de fábrica ou semelhante parvoíce.

          • ZE LOPES says:

            É por isso que o cristianismo não tem hipóteses! Se quisesse transformar-se em partido político haveria sempre um que diria: e o Judas? São todos iguais! Não voto!

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