Chinelos

À hora a que chegam os primeiros funcionários das lojas, e a rua desperta com o cacarejar metálico das grades corridas com a resignação brusca das segundas-feiras, o homem ainda dorme um sono profundo. A sua cama é ampla, ocupa quase metade de um passeio largo, e, pese a precariedade da instalação, está bem cuidada. Cartões grossos no fundo, dois cobertores finos por cima, um cobertor mais grosso e um edredão amarelo no topo.

O homem dorme, o rosto voltado para a rua, para quem passa. A seu lado, há um balde com duas garrafas de água e uns chinelos de quarto, muito finos, quase de papel, daqueles que os hospitais e hotéis por vezes oferecem. Os chinelos são de um branco impecável. E é a presença dos chinelos ao lado da cama, no chão, tal como a cama, que nos fazem sentir embaraçados por estar ali, como se tivéssemos entrado inadvertidamente em casa do vizinho – uma porta mal fechada, pensávamos estar no segundo e afinal estávamos no terceiro andar, uma distracção, enfim, e agora estamos aqui, frente à cama deste desconhecido que dorme de gorro na cabeça, alheio à nossa invasão.

Porque há poucas coisas mais domésticas, mais íntimas do que uns chinelos. Ver os chinelos que alguém deixa ao lado da cama todas as noites é vê-lo quase despido, desprovido das capas com que anda pelo mundo. E deve ter sido por isso que a todos os que passávamos pelo homem aconteceu o mesmo: baixámos o volume de voz, se íamos à conversa, pisámos o chão com delicadeza, se levávamos tacões, e só nos faltou fazer sinal aos carros para que não buzinassem, mas não foi preciso porque o trânsito ainda não se tinha complicado.

Pusemos, enfim, todo o cuidado para não despertar o homem em cujo quarto havíamos entrado sem dar conta, estouvados e insensíveis, na nossa frustração contida das segundas de manhã, e deixámo-lo dormir, sob o edredão amarelo, uma grande mancha soalheira no passeio. O sono faz-nos quase felizes.

Comments

  1. Tito Adriano says:

    Carla Romualdo,
    Genial Post! Ainda por cima com um humor muito especial. Deixo-lhe as minhas felicitações por semelhante texto, verdadadeiramente espantoso. Uma observação (critica) atenta a esse fenómeno dos sem-abrigo, em que o humor tem um papel particular, como que a enfatizar toda aquela tristeza.
    Bom Ano,
    Cordialidade,
    Tito Adriano
    PS: posso partilhar/divulgar este seu Post?

    • Carla Romualdo says:

      Muito obrigada, Tito Adriano, e um bom Ano para si também.
      E claro que sim, pode divulgar este texto conforme entender, fico-lhe grata.

  2. …e por causa de afinidades sentidas :

    https://www.rtp.pt/play/p1109/e174659/a-vida-breve

  3. Luís Lavoura says:

    Em Portugal os chinelos são uma coisa muito íntima. Uma pessoa só anda de chinelos, ou descalça, na sua própria casa e na presença exclusivamente da sua família.
    Na Alemanha muitas pessoas calçam chinelos no trabalho. E em muitos países da Ásia toda a gente calça chinelos ou anda descalça em casa – inclusivé nas casas de outrém, inclusivé quando se recebe visitas em nossa casa. Nesses países, ao contrário do Portugal retratado neste post, os chinelos não são um sinal de intimidade caseira.

  4. Jorge Fernando Pinheiro says:

    A Carla Romualdo surpreende sempre. Muito obrigado por esta saborosa prosa. O Aventar ficaria muito mais pobre sem a sua luminosa presença.

  5. Carla Romualdo says:

    Muito obrigada. A verdade é que eu também ficaria mais pobre sem o Aventar.

  6. Rui Mateus says:

    A não perca da dignidade numa situação dramática e que nos devia provocar indignação é extremamente extraordinária.

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