Dias

Sempre que eu oferecia um presente ao meu pai, ele fazia uma coisa que me irritava muito. Sem desfazer o embrulho, revirava-o nas mãos, abanava-o junto ao ouvido, e punha-se a adivinhar: “Isto é um perfume”. “É um cachecol”. “Um livro”.

Claro que às vezes acertava e isso ainda me irritava mais. “Não adivinhes, abre!”, repetia-lhe eu sempre. Ele achava graça a esse jogo. Eu sentia que parte da surpresa se arruinava. Claro está que ele tinha razão, eu ainda não me tinha libertado dessa urgência estúpida que carregamos durante anos, por vezes a vida toda.

Passaram anos. Percebo agora um bocadinho a ideia tantas vezes repetida de que somos imortais na memória dos outros. Percebo que é uma responsabilidade, mas sobretudo um amparo carregar essa memória, mas não me culpo pela que se dissipa todos os dias.

De cada vez que morre alguém, eu faço contas. 80 anos, que sorte, o meu pai só tinha 69. Sinto-me mesquinha por pensá-lo, envergonho-me, mas ainda não consegui evitá-lo.

A vida é breve e vivemos como se fossemos imortais. Ou somos espantosamente tolos ou quase sábios.

Comments

  1. JgMenos says:

    É a vida..

  2. Luís Lavoura says:

    Que querida a Carla, a oferecer presentes ao pai. Que idade tinha?
    Ontem os meus dois filhos adolescentes não me ofereceram nada…

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