João

Mais mês, menos mês, faz dez anos que o João me convidou para o Aventar.

Ao João não se podia recusar um convite sem ele se tornar chato. Um chato especial, é certo, mas chato.
O João podia ser um chato maravilhoso, cheio de doçura e candura, insinuante e convincente, e podia ser ríspido e cortante como um x-acto. Era capaz de ser chato quando falava e tataramudeava, e era capaz de ser chato quando se calava e nos olhava com olhinhos trocistas e aquele sorrizinho fuinha.
O João era capaz de ser chato até quando nos encantava. Se alguém não acredita que se pode ser chato e encantador, não conheceu o João. Mas também podia ser um adversário terrível, persistente até ao tutano, determinado como só um grande chato o pode ser.
O João, para dizer a verdade, até na morte foi chato. Não apenas porque morreu, porque essa é a suprema chatice, mas também pela forma como não morreu. Os outros muito nossos que morreram, o Tó, o Rui, o Paulo e mais alguns, ficaram postos em sossego e, depois de devidamente chorados, só aparecem raramente, de longe em longe, numa imagem fugaz, numa frase que recordamos, numa história que contamos, e regressam de novo ao seu repouso lá para os lados obscuros da eternidade. É como se tivessem morrido antes de nós para nos ensinar como se morre, como se permanece imóvel e ausente na penumbra, como, afinal de contas, se comporta um morto depois depois de ter morrido.
O chato do João, não. Está sempre a aparecer quando vamos na rua, quando bebemos um copo, quando discutimos uns com os outros. É inconveniente, interrompe-nos a leitura de um livro sem pedir licença, distrai-nos quando vemos um filme, espreita por cima do ombro se escrevemos um texto, fala-nos ao ouvido quando estamos em silêncio, põe-se a dizer larachas, a fazer advertências, a responder sem ser perguntado. E continua a mandar-nos à merda sem respeito nenhum. “Porra, pá, nunca mais aprendes”, “eu tinha-te avisado”, “és sempre a mesma merda mas já estou habituado”, “se eu não te conhecesse, até era capaz de te dar razão”, “se queres ir aí, vai, mas é só porque não percebes nada do assunto”, “Já te disse mil vezes onde é que se come o melhor cabrito aqui perto, isto se conseguisses imaginar o que é um cabrito a sério”.
O João é tão chato, aliás, que me obriga, para além de o ouvir, a falar com ele quase todos os dias, a fazer-lhe perguntas, a dar respostas por ele, a interrogar-me sobre o que ele acharia disto ou daquilo, a desatinar com ele e apanhar-me a dizer em voz alta “tá as a ver, meu cabrão, aconteceu exactamente como eu te tinha dito”, “olha, João, vai à merda mais o teu cabrito. Descobri um muito melhor que o teu, mas tu é que percebes de cabrito”, ou, quando ele, só para chatear, me vem falar do FCP, “epá, João, às vezes consegues ser quase tão fanático como o Pinto da Costa”. E leva-me regularmente a desabafos “Percebes, João? Esta treta não é fácil”, “Já viste isto?…”, “Repete lá aquela cena…”

Do João não espero que deixe de ser chato e de se atravessar à minha frente, nem que me deixe em paz. Não espero que aprenda a morrer civilizadamente e se aquiete num cantinho da memória seguindo o exemplo dos outros, os que morreram antes e depois dele. O que espero do João, aliás, enquanto eu for vivo, é que ele continue a aparecer sem ser chamado, que continue a interromper e a dizer coisas com ou sem razão, que atravesse uma rua à minha frente enquanto durmo, que continue a assaltar-me a cabeça mesmo que eu não esteja para aí virado. Enquanto depender de mim, o chato do João não descansará em paz.
Suspeito que ele não esperaria outra coisa dos amigos.

Comments

  1. Sónia Pinho says:

    Belíssima e merecidíssima homenagem, até sempre João Josê Cardoso

  2. Não conheci pessoalmente o João José Cardoso, mas vim a conhecê-lo aqui no Aventar como sendo especial, único, inteligente e inconformado, amigo do amigo, sorte malvada a vida que lhe terá sido adversa .
    De tal modo me cativou e convenceu, que até quase o vejo ainda nas ruelas da baixinha de Coimbra.

    Verdade, há pessoas especiais que passaram por aqui, deixaram rasto de luz, e foram embora cedo demais porque não eram deste planeta .
    Há mais. Eu sei, e como sei.

    • Diogo Cabrita says:

      Conheci o João José desde 1974 quando fui recrutado por ele para o longínquo MRPP. Saímos em 1977 mas a intensidade foi tal que fomos do “MR” para sempre nos discursos alheios. Depois estivemos no “liberatura” onde conheçi o admirável AP Correia que aqui admiravelmente descreve o chato, ousado, eloquente, brilhante JJ Cardoso. Voltamos a estar juntos no fim do João José quando me chamou para esclarecer a ascite por carcinomatose peritoneal. Porra! Consolou-me ele nos dias seguintes e ficamos pela baixa a conversar uns dias bons.

  3. Mário Costa says:

    O JJ foi-se embora vai para um ror de tempo mas continua a atender-me o telefone. Sempre que me aproximo de Coimbra não resisto ao impulso de lhe ligar para saber se vai ao reis ou ao espanhol, se já está na bica e coiso no santa cruz, se não desceu do atenas ou se ficou pela praça como nos tempos mais antigos em que fazíamos serenatas bêbadas com o a.pedro às rameiras futricas nas colinas da figueirinhas. O JJ atende sempre o telefone para me mandar à merda e dizer-me que já estou mais do que atrasado, que a chanfana se afogou na gordura azeda, que o melhor vinho que mandara abrir para mim, já o bebeu ele para não avinagrar, que agora só uma aguardente velha embrutecida em casca de carvalho no tasco da esquina da praça velha e que me deixe de manias e venha comer uma bifana no mijacão com um ovo cozido em casca de cebola.
    Estaciono como posso logo que posso e corro no seu encalço. Mas o JJ já foi. Acabou mesmo agora de sair, inda agora aqui estava, garantem-me sempre, faça chuva ou faça sol. Amanhã à mesma hora. De certeza.

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