A arte de destruir a Linha do Douro

miradouro

[Luís Almeida]

Ao longo dos anos, os pseudo ferroviários que administram e definem politicamente as orientações do setor tem-se revelado muito criativos na “arte” de destruir a oferta comercial de linhas ferroviárias um pouco por todo o país.
E quando se pensa que já se viu de tudo, percebe-se que a imaginação não tem limites.
Em 2016, os operadores fluviais do Douro deixam de usar o comboio por falta de fiabilidade e condições de conforto da oferta ferroviária. São os parâmetros mínimos de um transporte ferroviário de sucesso. Estima-se que 30 mil passageiros passaram do comboio para os autocarros.

Em 2017, a CP reage, por pressão dos operadores interessados em vender um produto no Douro que tenha… Douro! Assina-se pomposamente um protocolo em Janeiro e um novo comboio, exclusivo para operadores, começa a circular em Maio. Os mesmos operadores exigem que o mesmo se prolongue até ao Pocinho, a CP não acede mas percebendo finalmente a importância dessa parcela de turismo e a reboque de tudo o que há décadas se faz na Europa em matéria de turismo ferroviário e que se traduz em relevantes receitas para as empresas, lança o Miradouro até ao Tua.

O MiraDouro tinha tudo para ter sucesso: não tem climatização mas tem janelas amplas que permitem o debruçar sobre o vale. Não tem suspensão dupla mas tem o conforto suíço dos amplos salões e espaços tão característicos das carruagens Schindler. Não tem a modernidade dos dias que correm mas tem o suspense, a magia, a mística e a história nos rodados que já percorrem vários milhões de quilómetros.

Então porque razão o Miradouro não funcionou? A resposta é simples: a CP não quis que funcionasse:

  1. No primeiro ano de atividade (2017), o MiraDouro ia até ao Tua. A viagem no sentido Porto/Tua tinha uma marcha relativamente normal. Em sentido contrário, o comboio saía tardíssimo do Tua e tinha um tempo de espera superior a 1h na estação da Régua antes de seguir viagem.
  1. Na estação de Valongo tinha uma paragem técnica de mais 20 minutos para ser “ultrapassado” por um suburbano.
  1. Em 2018 é suprimida a viagem entre a Régua e o Tua, alegando que o comboio não trazia passageiros no regresso. Ora, a menos que os passageiros se “afogassem na barragem” e uma vez que não há oferta rodoviária e que não foram reportados desaparecimentos massivos de pessoas na região, há uma forte probabilidade das pessoas regressarem em comboios com horários mais adequados e marchas mais rápidas do que a do Miradouro no sentido Tua/Porto.
  1. A CP não perdia clientes, simplesmente os clientes procuravam outro horário de regresso, mas ainda assim foi este o argumento utilizado. No final de contas, deixou de haver passageiros em qualquer um dos sentidos.
  1. Ter um comboio para vender uma viagem junto ao rio e dar essa experiencia apenas nos 30 minutos que vão entre o Mosteirô e a Régua sendo que a região demarcada do Douro começa apenas na estação de Barqueiros (pouco mais de 15 minutos antes da Régua) pode também não ser a oferta mais apelativa.
  1. A falta de passageiros… bem, sobre isso não vou dizer nada, porque apesar de tudo, é só dar uma volta pelas redes sociais onde ontem caíram dezenas de fotos que comprovam a “falta de passageiros” no comboio.
  1. Já para não falar do absurdo argumento técnico de que as “camelas” (UTD série 59x) que alugamos obscenamente a Espanha por 5 a 7 milhões de euros/ano são “mais económicas” com os seus 5 motores dos anos 80 a queimar gasóleo e geram mais valor do que 6 a 7 carruagens Schindler traccionadas pelas mais económicas locomotivas diesel (série 14xx) que alguma vez tivemos em Portugal (se assim for, se calhar a CP deveria estar a exigir a eletrificação e não a trocar o parque diesel).

E como parece que isto não vai ficar por aqui, hoje sabe-se que o comboio a vapor vai reduzir para metade as viagens depois de anos sucessivamente a crescer. Estamos “ansiosos” para saber com que mais criatividade nos vão brindar os pseudo-ferroviários que estão a destruir um património que é de todos e uma mais valia evidente para uma empresa que precisa desesperadamente de equilíbrio orçamental… mas também de chegar ao século XXI.

Foto: Manuel Moreira

Comments

  1. Não é somente o lado financeiro/económico ligado ao turismo, não, é falta de cultura e competência dos responsáveis a nível nacional e autárquico na destruição de património natural e patrimonial em que este Portugal abunda e se afunda !

    …divulguei via email este post, (com a suposta permissão do autor : ) para alguns contactos pessoais e/ou familiares com o seguinte em Assunto :
    ” !! revoltai-vos, que sois do Norte, carago ! : ( “

  2. Mário Reis says:

    Com amigos e politicas destas até os inimigos são dispensaveis… e os Marios Ferreiras deste mundo agradecem!!!

  3. Julio Rolo Santos says:

    Conheci a linha do Tua ainda no tempo do comboio a vapor e os bancos das carruagens eram de suma-pau, linha estreita, velocidade reduzida, dava para descer antes da curva para apanhar figos e retomar o comboio no fim da curva. Era espetacular, mas acabou porque os interesses económicos sobrepõem-se aos interesses sociais. Neste país o caminho de ferro tem desaparecido contrariando a tendência de outros países. É pena mas o cidadão pouco ou nada pode fazer perante a prepotência de quem nos governa.

  4. Lluxpo says:

    Infelizmente este modelo de gestão da ferrovia não e exclusivo do Miradouro, estende-se a todo o serviço de transporte e material circulante.
    Os problemas acumulam-se de ano para ano e sem resolução à vista.
    Mas em equipa vencedora não se muda nada…
    No reino das inverdades, quem questiona é escurraçado.

  5. Tiago says:

    Os cortes de 50% dos passes urbanos nos transportes públicos das grandes cidades vão ter de ser pagos de alguma forma .. pena que no interior os descontos continuam a 100%

    • Carlos Almeida says:

      “os descontos continuam a 100%”

      Julgo que pretendia dizer que os descontos continuam a 0%

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