Mais justiça, menos lei

[Marco Faria]

O “Público” trouxe-nos a história na quarta-feira (e Fernando Alves nos “Sinais” já dissecou o caso).
Em 2014, um homem, de 42 anos, bebeu meio bagaço logo pela manhã num café em Amarante. Teve uma queda e, desse acidente, resultou um traumatismo crânio-encefálico, que levou à sua morte. Devia ainda 35 mil euros do empréstimo de compra da casa à Caixa Geral de Depósitos. A viúva accionou o seguro de vida da Fidelidade, mas a seguradora descartou-se do pagamento desse valor em falta, mantendo a dívida sobre a viúva.
A decisão da 1.ª Secção Cível Tribunal da Relação do Porto é um exemplo flagrante da fronteira entre lei e justiça. Podíamos estar horas a discorrer sobre se a lei é injusta, e está correcta a aplicação da modalidade do abuso de direito, «Venire contra factum proprium» (basicamente, aquele que não cumpre com as suas obrigações, não pode retirar vantagens desse incumprimento).
Mas há pontas soltas deste acórdão. Algumas.
Para mim, nos contratos, deve ser sempre protegida a parte mais vulnerável (neste caso, o segurado). A seguradora até sabia que o senhor consumia 0,75 litro de vinho verde diariamente (haverá muito agente de seguros ou juiz que fará o mesmo).
De uma decisão, que é sempre controversa, a primeira instância – o Tribunal de Marco de Canaveses –, não deu razão à Fidelidade, para não “conduzir a situações absurdas”.
Assim em jeito simples, pergunto: pode um diabético comer duas mousses de chocolate ou terá de comunicar previamente às seguradoras? Teremos de olhar quatro vezes (esquerda-direita, esquerda-direita) quando atravessamos uma estrada, numa zona de passadeira, e enviar sempre um “email” à Fidelidade?
Há uma coisa que sabemos: as seguradoras procuram, cada vez mais, furtar-se às suas responsabilidades. Para um banal acto médico, temos de solicitar relatórios e, mesmo assim, em certos casos, é-nos recusado o reembolso dessa despesa ou a realização do acto comparticipado. Qualquer dia teremos de celebrar um seguro à apólice de seguro. É ridículo e entra-se numa espiral doentia.
Espero que o Supremo Tribunal de Justiça corrija esta iniquidade judicial à luz de um conceito de Justiça que deveria estar mais presente nas cidades judiciárias. Mais justiça e menos lei e cláusulas contratuais!
E, em “ultima ratio”, caramba, estamos a falar de 35 mil euros e não de 35 milhões de euros num País onde caem bancos como tordos.

Comments

  1. Nuno M. P. Abreu says:

    Em qualquer situação, para que um comentário sobre um assunto jurídico seja proveitoso, é necessário que tenha em conta a veracidade dos factos e o conhecimento mínimo das normas aplicáveis. Pode-se ainda discutir, em abstraco, a justeza da implementação das normas, mas não será aqui o caso .
    Quanto aos factos, parece-me que o autor do artigo não os descreve dentro do contexto. Hoje o JN relata:
    “ O homem, de 42 anos, morreu a 26 de junho de 2014. No dia anterior, após beber bagaço, tinha caído no café que costumava frequentar em Amarante. As duas ações – beber e cair – eram usuais. Mas, desta vez, sofreu um forte traumatismo cranioencefálico que se revelou fatal.”
    Ora parece que foi provado em tribunal que o homem já havia caído várias vezes e tais quedas haviam sido provocadas pelo álcool. Dá-se conta ainda que da apólice constava um cláusula pela qual se dizia que, a quando de acidente de que resulte a morte, se o segurado tiver uma taxa alcoólica superior (0,5 g/l), havia exclusão de responsabilidade.
    Essa comprovação parece ter sido feita.
    A ser assim, não faz sentido este comentário. Dever-se-a discutir se aquela cláusula não era em letra tão miudinha que quase se não consegue ler, (é uma luta em que me envolvo) ou se cláusulas daquele teor não podem ser incluídas em seguros de vida obrigatórios, como no empréstimo para compra de casa. Aqui, muitas vezes como parece ser o caso, a vitima é a viúva que com reduzidos rendimentos e sofrendo na pele as violências do marido ( conheço quem conhece a senhora) não tem condições mínimas para pagar as prestações.
    Doutro modo não passamos de D. Quixote`s que Cervantes imortalizou, a lutar contra moinhos de vento, que sendo símbolos do Aventar também comprovam que o vento , bem aproveitado serve para fazer pão, ou ,neste caso, uma sociedade mais consciente..

    • Luís Lavoura says:

      Bom comentário.

      se cláusulas daquele teor não podem ser incluídas em seguros de vida obrigatórios, como no empréstimo para compra de casa

      O seguro de vida não é obrigatório. Ninguém é obrigado a comprar uma casa nem a pedir um empréstimo para tal efeito. Se as pessoas decidem comprar uma casa e pedir um empréstimo para esse efeito, então sujeitam-se às condições, que incluem fazer um seguro de vida, o qual seguro tem naturalmente as suas condições – a morte deve ser imprevisível e não ser causada por descuido evidente do falecido.

      Neste caso, o falecido morreu por desleixo seu e sua própria culpa e, naturalmente, a companhia de seguros descarta-se de responsabilidades. Qualquer companhia de seguros de vida faz o mesmo em tais circunstâncias.

      Portanto, as cláusulas estão corretas, a atuação da companhia de seguros idem, e a culpa da triste situação em que a viúva se encontra é, exclusivamente, do falecido marido.

      • Nuno M. P. Abreu says:

        Caro Luís Lavoura:
        É evidente que, “stricto sensu”, o seguro de vida não é obrigatório, não é uma imposição legal. Ele é obrigatório,”lato sensu”, para quem quer obter um empréstimo para comprar uma casa e o banco lhe coloca essa condição. Eu lancei, genericamente,o tema para a mesa do debate, no âmbito do “dever ser”. Face aos normativos em vigor as cláusulas estão correctas. Mas nada impede que possamos discutir se certas cláusulas pela sua importância, devem constar expressamente do contrato e não de um anexo que, fazendo parte dele, de tão extenso, por vezes, nem é lido.
        Outro aspecto poderá ser o de pensar-se que face ao direito constitucional a casa de habitação, seja o estado a suportar este seguro, em condições bem definidas. Doutro modo, aquele direito aparentemente básico é letra morta na lei.

      • Paulo Marques says:

        Claro que não, podem sempre alugar um quarto à jorna para condizer com o emprego.

        • Luís Lavoura says:

          Exatamente. Se os imigrantes podem fazer isso, os nacionais também podem.

          • Ó Luís lavoura, um quarto? Para quê tanto luxo se há quem viva na rua?

  2. Mr José Oliveira Oliveira says:

    Isso de transferir as responsabilidades de quem pratica qualquer acto para cima de alguém que nada tem a ver, é prática usual da “justiça”. Os bancos tb vão à falência e o Zé é que tem de se esmifrar. Tudo a bem dos credores e tudo contra as vítimas…

    • Acho que nas letrinhas pequenas das entidades financeiras que prestam serviços ao Estado português emprestando dinheiro aos portugueses, está lá bem claro que, caso os administradores pratiquem gestões criminosas e levem o banco à falência a culpa e responsabilidade de pagar os prejuízos é unicamente do contribuinte.

  3. Rui Mateus says:

    As empresas de seguros são especialistas em tentar descartar de cumprir as suas obrigações com os segurados.

  4. Anonimus says:

    Ou seja, o senhor tinha um comportamento de risco.
    Se eu fumar, e apanhar cancro do pulmão, seguradora não tem nada que pagar.
    Se morrer a correr uma maratona, não paga, que eu não tinha nada que ir fazer esforços.

    • Desculpe lá. Mas agora as companhias de seguros são um estado policial de estilo puritano?
      Já vimos que não se pode apanhar um pifo porque a companhia não o permite. O quê mais? Não seja mãe para não apanhar um cancro na mama; não saia á rua para não ser atropelado; não tome banho para não escorregar na banheira?
      Se não querem correr riscos limitem-se apenas a vender seguros a monges budistas zen paraplégicos.

  5. Julio Rolo Santos says:

    Os seguros são uma treta. O meu seguro automóvel telefonou-me á dias dizendo-me que estavam a fazer uma consulta a todos os segurados para conhecerem o seu grau de satisfação sobre a sua seguradora. Respondi-lhe que lhes dava nota máxima no atendimento quando me apresentava para fazer o pagamento mas, em relação a um eventual sinistro, não sei qual seria a reação deles no momento da participação. E ficamo-nos por aqui.

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