Notícias do sultão do Bósforo

Claro que o sultão do Bósforo não iria conseguir suportar a ferroada que lhe provocou a vitória, em Istambul, do maior partido da oposição nas últimas eleições municipais, após 25 anos de domínio do seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP). “Quem ganha Istambul, ganha a Turquia”, havia ao longo dos tempos dito e repetido Recep Tayyip Erdogan, ele que, na década de 1990, também foi presidente da câmara de Istambul, a cidade onde vive um quinto da população do país.

Seguiu-se o pressionamento da comissão eleitoral, até que esta (após contagens e recontagens que não alteraram o resultado final) acabou por anular a eleição – note-se: apenas esta que não conveio ao sultão. Nas dos conselhos municipais, que ocorreram na mesma ocasião, mas lhe correram de feição, nessas já não houve irregularidades… apesar de terem sido realizadas com as mesmas pessoas e de os boletins de voto estarem todos no mesmo envelope, colocados na mesma urna. Foi assim convocada nova votação para o próximo dia 23 de Junho, altura em que muitos turcos estão de férias e não poderão votar (só se pode votar presencialmente). É uma vitória que dói fundo ao déspota, que durante a campanha eleitoral andou a fazer propaganda pelo AKP no avião presidencial; e que foi conseguida apesar de a presença do AKP nos meios de comunicação ter sido pelo menos dez vezes maior do que a dos outros partidos.

Se, até aqui, o despótico presidente invocava os resultados de eleições para legitimar o seu poder absolutista – em especial a de 2017, quando conseguiu que fosse aprovada por referendo uma emenda à Constituição que reforçou maciçamente os seus poderes presidenciais -, desta vez (que não é a primeira) foi necessário interceder publicamente para retomar as rédeas e o chicote próprios da sua governação.

E pese embora a corajosa reacção de Ekrem Imamoglu, o candidato da oposição que tinha sido eleito e entretanto foi deposto, tudo indica que o tirano irá assegurar que o próximo resultado seja o único que aceita e lhe consolida o poder.

Erdogan não olha a meios; tudo lhe serve, desde a mais reles demagogia até à violência dos cárceres e da tortura.

Em Março de 2017, no contexto da campanha eleitoral do referendo para alteração da Constituição, Erdogan dirigiu-se aos turcos que vivem na Europa: “Tenham cinco filhos, não três, porque vocês são o futuro da Europa”. E porque para o sultão as mulheres são máquinas de parir, no passado dia internacional da mulher a polícia turca usou granadas de gás lacrimogéneo e balas de borracha para dispersar uma manifestação proibida que reuniu no centro de Istambul milhares de mulheres que se manisfestavam pacificamente.

A precária situação económica do país levou a cortes drásticos em vários ministérios, nomeadamente o da Educação. O que não impede o sultão otomano de providenciar a que as verbas para a autoridade religiosa Diyanet tenham aumentado em mais de 30%.

Em forte crescimento está também tudo o que se relaciona com as prisões.

No ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, a Turquia ocupa o 157º lugar de entre 180 países. Erdogan controla 95% dos media turcos, depois de ter encerrado os principais jornais críticos sob a acusação de “propaganda terrorista”. Segundo a Human Rights Watch, mais de 175 reporteres e jornalistas estão nas prisões – as quais, apesar de novas construções prisionais, estão completamente superlotadas.

A escritora turca Aslı Erdoğan, que após a tentativa de golpe militar de 2016 esteve quatro meses presa em Istambul, afirma: “Neste momento há mais de 300.000 prisioneiros. Quando fui presa, havia 160.000. A Turquia bate recordes atrás de recordes. 170 jornalistas estão presos, muitos membros e funcionários do partido curdo foram presos. E continuam a construir novas prisões; até 2021, a capacidade deve aumentar para meio milhão.”

Deniz Yücel, jornalista do reputado jornal alemão Die Welt, esteve preso sem culpa formada na Turquia durante um ano e só foi libertado graças à sua dupla nacionalidade turco-alemã ( por via de maciça pressão e sabe-se lá de que contrapartidas do governo alemão), veio há três dias declarar que durante o tempo em que esteve preso foi sujeito a tortura.

Can Dündar, antigo chefe de redacção do Cumhuriyet (o maior diário de oposição entretanto extinguido), escreveu há dias, a propósito de Arife – uma estudante de 12 anos, que a 23 de Abril passado, durante uma transmissão ao vivo de um festival infantil na televisão, afirmou, quando lhe perguntaram qual o seu sonho para o futuro: “Eu gostaria de estudar medicina na Universidade de Colónia e talvez mais tarde de me tornar uma cidadã alemã”:

“Entre os prisioneiros estão também representantes da geração da Arife, que estão atrás das grades por reivindicarem educação gratuita ou um país livre. Assim, a alternativa que a Turquia oferece aos jovens é: passar pela educação religiosa e submeter-se – ou ir para a prisão. Estes são os blocos de construção da estratégia de Erdogan, com a qual ele quer criar uma geração que acredita sem questionar, que obedece sem contradição e que se verga sem pensar.”

A lira turca caiu novamente após o anúncio da decisão da comissão eleitoral. A UE continua no faz de conta da entrada da Turquia para o clube, tendo já disponibilizado pagamentos rechonchudos de “preparação para a adesão”. Erdogan é demasiado necessário como porteiro obstruidor da passagem de refugiados e migrantes e, a ele, os milhares de milhões de euros que recebe por esse serviço também lhe sabem muito bem.

Comments

  1. Miguel Bessa says:

    A sério que o Islão é isto? E anda a esquerda tão ansiosa por receber esta gente.

    • ZE LOPES says:

      Olha! Sua Alteza Bolsoneira saiu do coma!

      V. Exa. não apoia o Erdogan? Estou admirado! Para quem apoiou um tipo que louvou publicamente o Coronel Ustra, um sujeito que chegou a torturar prisioneiros e prisioneiras em frente aos filhos crianças, pensei que achasse o regime do Sultão como normal.

      Não, o Islão não é isto! A sério!

      • Fernando Manuel Rodrigues says:

        A sério que não é isto? E que tal publicar umas “estatisticazitas” sobre a Faixa de Gaza?

        Ah.. espera, sobre a Faixa de Gaza não se podem publicar estatísticas, excepto sobre os mortos (mas só os que forem atribuíveis aos ataques de Israel, os outros não contam).

        • ZE LOPES says:

          Tá bem! Acabe lá o repasto de gambozinos que depois a gente conversa. Ou desconversa. Para V. Exa. é o mesmo. Ainda bem!

          • ZE LOPES says:

            Olha, já agora, responde ao “Tayb Abeb” e deixa-te de merdas.

  2. Ana A. says:

    Ana Moreno,

    Quando se lêem estes relatos de tirania, ficamos com um ódio imenso a tal criatura…

    Mas…não podemos esquecer que se ele faz tudo isto é porque pode. E pode, porque tem quem o apoie e comungue dos seus “valores”.

    É pois “injusto” darmos os “louros” apenas ao tirano, ao que dá a cara. Pois um homem é apenas um homem e tem, somente, o valor/poder que uns quantos lhe atribuem/conferem!

    • Ana Moreno says:

      Olá Ana, isso é bem verdade, “que alguns quantos lhe atribuem/conferem”; mas não retira proeminência ao papel poderoso e brutalmente manipulador do actor principal…Os ditadores sempre tiveram as suas cliques de apoio. Quanto ao resto, certamente que há muitos (demais!!!) convictos nesta linha, mas num meio em que a censura e lavagem ao cérebro imperam, também não será nada fácil formar uma opinião própria.

  3. Rui Naldinho says:

    A Turquia com muita dificuldade será alguma vez uma democracia. Falo numa democracia consolidada. Pelo menos nos tempos mais próximos, não vislumbro essa possibilidade.
    Apesar das inúmeras tentativas de a democratizar, de Mustafa Bülent Ecevit a outros que não me ocorrem agora, a Turquia acabou sempre com inflexões eleitorais, mais ou menos cíclicas, para este tipo de ditadores, dando-lhes um Poder quase absoluto. As contradições de caráter étnico e nacionalista, maus do que religioso, tal como em Espanha, alimentam estes avanços e recuos, na busca da democracia plena. Aquilo que se passa hoje na Turquia, não é mais do que aquilo que se passa em Espanha hoje, mas numa versão 10 vezes pior.
    Há muitas Turquias, não nos esqueçamos disso. Lembrem-se do genocídio Arménio, e as sequelas que daí advieram. Dos Curdos, que representam 16% da população.
    Não me parece que o Islão, seja a questão predominante, ainda que Erdogan e a esposa façam questão de dar um ar islâmico às suas aparições.

    • Rui Naldinho says:

      …mais do que o religioso…

    • Ana Moreno says:

      É bem verdade, Rui. A forma como o governo turco trata o genocídio arménio (negando-o furiosamente) é reveladora. E quanto aos curdos, até eu, que sou contra a violência, acabo por ter certo entendimento pelo desespero das armas. Como responder a tantas décadas de repressão e brutalidade?

    • A Turquia é uma democracia. A ditadura kemalista nunca regressará.

  4. Julio Rolo Santos says:

    Para mim, um ditador é um ditador independentemente de o rotularem de direita ou de esquerda. Quando alguém defende um ditador, por quem simpatiza preferindo fechar os olhos ao que ele é e faz, não me parece que tenha moral para atacar o outro, por quem não nutre simpatia. Erdogan, pelos golpes e contra golpes que tem lançado contra o seus adversários é tão ditador como o Coronel Ustra, já aqui referido. Julgo não haver uma bitola para poder avaliar qual deles é mais ditador. Defender um ou outro, não me parece moralmente correto.

  5. “A UE continua no faz de conta da entrada da Turquia para o clube, tendo já disponibilizado pagamentos rechonchudos de “preparação para a adesão”. Erdogan é demasiado necessário como porteiro obstruidor da passagem de refugiados e migrantes e, a ele, os milhares de milhões de euros que recebe por esse serviço também lhe sabem muito bem.”

    Para mim o essencial do que escreve, Ana Moreno, é este final .
    É aqui que nos toca e dói de mais perto !

    Tudo o resto é a faceta da luta e conquista predadora dos poderios, supremacias e interesses que sempre fez a história da humanidade e que se repete, se repete e se repetirá !

    ( como é que a Ana estuda e sabe tanta coisa a esse pormenor ? ) : )

  6. Leio no artigo o mesmo sentimento de superioridade colonial, e vejo que o espírito de Cruzada de outrora não terminou. Tudo que acontece no Oriente é despótico, tudo no Ocidente cristão é democrático, mesmo que se possa demonstrar que há um de facto imperador cristão sentado em Washington.

    Quando é que muda a retórica da superioridade? Eu acho que nunca acontecerá!

    • ZE LOPES says:

      Não há “superioridade colonial” nehuma no artigo. É V. Exa que reduz o problema a javardos que usam a religião para se promover, à custa dos seus povos! Como diria a minha avó: “Os colonialismos já lá vão, agora a coisa é a religião”. E parece que lhe dão razão.

      “Nunca acontecerá” ? Pois não! Se for de “superioriedade”. Aqui, ou seja, no post da Sra. Ana Moreno não é! V. Exa. tem de aprender a ler! Não digo propriamente palavras e letras. Isso parece que sabe. A ler, digamos, “coisas”…

      • Doeu? Não gosta das verdades? A Turquia foi dividida depois da derrota do Império Otomano. O turcos ainda não se esqueceram dos cruzados.

    • Ana Moreno says:

      Tayeb Habib por acaso lê no artigo várias citações de turcos? Essa da retórica da superioridade é tão obscurantista que nem merece resposta. Se fosse por si, tínhamos de ser cegos e mudos perante outras sociedades.
      Pensa tão tiranamente como Erdogan, Tayeb Habib.

      • Li sim. Não contam para nada. Todos os povos têm estes tipos de pessoas. Em Moçambique ouvi de alguns moçambicanos que a vida era boa durante o colonialismo. Há gente que não evolui. Há ainda os turcos saudosistas da ditadura militar e do secularismo imposto, tal como há portugueses saudosistas do salazarismo.

        • Paulo Marques says:

          «Há ainda os turcos saudosistas da ditadura militar»
          Disso não há dúvidas.
          Queremos lá saber em que criatura mitológica acreditam, ditadores são feitos para ser criticados e gozados estejam nos EUA ou na Coreia do Norte.

          • Aposto que o Paulo Marques ama o genocida Assad. A mim não me convence a sua preocupação pela Turquia, ou pelo povo turco.

    • Tayieb Habib, Ana Moreno, e Zé Lopes,

      De novo para mim é interessante e importante a leitura deste livro sobre esta apreciação histórica tão relativa que de mais longe no ontem do tempo se deve manter sobre supostas supremacias ocidentais colonialistas e orientais e/ou outras :

      ” As Cruzadas Vistas pelos Árabes ” de Amin Maalouf

      e já agora do mesmo autor e bom de se ler e viajar no tempo,

      ” Samarcanda “

      • Ana Moreno says:

        Obrigada pela dica literária Isabela, agora sou eu que pergunto: como é que consegue ler tantos livros de fundo sobre os grandes temas? 🙂

        • : ) ! já cá ando há mais tempo que a Ana, e no meu crescer não havia tecnologias a empatar-nos os tempos livres, as saudosas tardes longas das férias grandes eram passadas em grande parte a ler, a ler, a reler, mesmo com os nihil obstat da católica, paternos e salazarentos…. depois ao longo do tempo de vida nem sempre livre, e agora neste tempo do meu tempo de vida ainda o tempo vai dando menos mas dando também para ler e reler e estar atenta .
          …a ler e não só, e não sobra tempo, raios, neste dias que passam depressa demais a caminho da reta final .

          Abraço solidário para si, sempre !

          Nota: soube das grandes marchas em Bruxelas da Green Peace contra as Monsantos e Bayers !!!!
          Algo vai acontecendo e meche na atitude e consciencialização e comportamentos dos cidadãos !

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