Motoristas e professores

[Santana Castilho]*
  1. Independentemente de todas as considerações colaterais possíveis, é politicamente desonesto não reconhecer a greve como um instrumento essencial para o equilíbrio de forças entre trabalho e capital. Assim foi no último século. Não sei se assim será no futuro, mas sei que não foi assim nesta legislatura. Não foi só agora que o Governo deixou de ser árbitro para ser parte, no que ao diálogo social se refere: recordo os atropelos que cometeu para anular a greve dos professores, a linguagem lamentável do primeiro-ministro quando se referiu aos enfermeiros e à sua greve, a legislação laboral que aprovou sem prévia negociação com os parceiros sociais ou a chantagem que exerceu para conseguir acordos de concertação, preordenados para favorecer os patrões.
    O papel de um Governo democrático não é impedir que o direito à greve seja exercido, sob pretexto de garantir (como também deve garantir) a satisfação de necessidades fundamentais dos cidadãos. Arbitrar esta dialética é difícil mas exigível a um Governo de esquerda. Mandar tocar a corneta é mais fácil, mas apanágio do autoritarismo estatal que comummente caracteriza a direita.
    Os motoristas que transportam matérias perigosas têm 630 euros de salário-base. Com as horas extraordinárias, este valor pode duplicar. Mas, para tal, sujeitam-se a um horário semanal que ronda as 60 horas, quase o dobro do horário da função pública. O trabalho destes motoristas é crítico na cadeia de valor das petrolíferas, de lucros altíssimos, e volta a ser crítico para o funcionamento de toda a economia. Se são mal pagos em termos absolutos, quando estabelecemos a proporção entre o valor do seu trabalho e a renda do negócio para que trabalham, são miseravelmente explorados. Apesar disto, ficaram isolados contra o resto do país.
    Durante a greve fui ficando confuso à medida que me confrontei com argumentos pessoais e institucionais. Li opiniões pragmáticas, análises racionais e análises emocionais. E no fim senti-me simplesmente face ao abismo entre valores e interesses. Tudo visto, há bens e serviços (água, energia, transportes, saúde, por exemplo), cuja provisão devia ser entendida como direito universal dos cidadãos, sujeita a regras restritivas que a protegesse dos conflitos do funcionamento do mercado. Mas … não vale tudo!
  2. Marques Mendes venerou Tiago Brandão Rodrigues e a Associação Nacional de Professores Contratados (ANPC) elogiou longamente “a tutela da Educação e a Administração Educativa” por, pela primeira vez nesta legislatura, os professores conheceram a escola onde vão trabalhar no próximo ano duas semanas antes do respectivo início. À míngua de uma política séria de estabilização do corpo docente nas escolas, que dispensaria a dança macabra anual da colocação de professores, será este feito motivo para tecer loas a quem fez o mínimo elementar, muito menos em nome de um grupo de professores desde sempre escravizados por aqueles que agora bajulam?
    Para limpar visões toldadas, lembro a última, entre tantas, da louvada “tutela da Educação”. Quer o Estatuto da Carreira Docente, quer a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, quer, ainda, o Código do Trabalho, permitem a possibilidade de um trabalhador a tempo completo mudar, a seu pedido, para um regime a tempo parcial. Mas a pequena ditadora Alexandra Leitão não o permite, no seu peculiar estilo de intérprete imperial das leis do Estado. Bem pode a provedora de Justiça clamar pelo cumprimento da lei, que a dona daquilo tudo permitiu que a “bisnaga” de serviço esguichasse esta resposta a um docente que, depois de esperar três anos por uma decisão, viu recusado o seu recurso hierárquico: “na situação em apreço não foi praticado qualquer acto administrativo de indeferimento do pedido de exercício de funções em regime de tempo parcial, na medida em que não houve uma decisão.” Ou seja: objectivamente, o professor há três anos consecutivos que é impedido de passar de tempo integral a tempo parcial, com redução de vencimento; kafkianamente, responderam-lhe que não há razão para recurso hierárquico porque os neurónios lentos da “tutela” ainda não produziram decisão.
    Console-se o requerente (professor do Porto), que pior foi a resposta de Bolsonaro, ao mandar um cidadão fazer cocó dia sim, dia não, para diminuir a poluição ambiental.
    *Professor do ensino superior

Comments

  1. Julio Rolo Santos says:

    E nas anteriores legislaturas foi um mar de rosas? O esquecimento de uns é o alívio de outros.

  2. JgMenos says:

    Esse equilibrio do trabalho/capital tem o seu lugar primeiro ao nível da empresa – presume-se que empresa rentável – que distribui beneficios escassos a quem contribui para o seu sucesso.

    Estamos a milhas dessa legitimidade fundadora!

    A maior parte traduz-se em saque sobre o contribuinte.
    A rentabilidade do sector pouco entra na questão, e não raro as empresas que não cumprem regras são obstáculo às que poderiam vir a melhor cumprir.
    E a moda mais em voga é a da chantagem, pressão não para distribuir mas para evitar danos maiores; e aqui a doutrina diz que danos a terceiros não contam para coisa alguma; daí que se possa antecipar a crescente intervenção das autordades.

    • abaixoapadralhada says:

      Estou pasmado !

      Um post com bom senso e sem chavões idiotas do compadre JgMenos ?

    • Paulo Marques says:

      Já experimentaste deixar de contribuir para que não se quebrem as regras? Só uma ideia,Zezinho

  3. Anonimus says:

    Catarina e Jerónimo já falam grosso sobre a greve da RyanAr.
    Tem que se gostar.

  4. Moliveira says:

    O Partido Socialista detesta a Classe Média. Isso é algo de mais profundo que anda a ser ignorado. Na cultura da massa crítica do PS, dos militantes saídos das Jotas, o conceito de que alguém possa ter condições laborais e salariais melhores do que a dos Boys é algo que os irrita imensamente. Daí esse ódio mais ou menos envergonhado pelas carreiras especiais (ainda hoje mostrado pelo Costa no Expresso). Para eles, esses “gajos” (médicos, professores, enfermeiros…) vivem à grande sem merecer porque entram para as suas carreiras por concursos transparentes (cada vez menos) e nunca tiveram que bajular um líder durante anos, num exercício de aplauso acéfalo e de seguidismo carreirista para poderem um dia ser recompensados com um “cargo de confiança” como acessor de comunicação numa junta de freguesia. Essa mentalidade da classe política existe noutros partidos, mas é principalmente verdade no PS, onde o pensamento crítico é algo que não se espera das bases do partido.
    Ser professor, médico, enfermeiro, e outras profissões de uma lista de ódios socialistas que cresce diariamente, e votar PS é uma estupidez de altitude estratosferica.

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