Ainda o Prós e Contras sobre violência na escola

Republica-se aqui a resposta que o Rui Correia deu a um texto publicado na Visão: Testemunho de uma professora: o rei vai nu.

 [Rui Correia]

O professor do ano disse no prós e contras da rtp que nunca mandou nenhum aluno para a rua, em trinta anos de aulas. Ora, esse professor sou eu. E esse professor, quer se queira, quer não se queira, nunca mandou nenhum aluno para a rua. O alvoroço provocado em algumas pessoas, e a que esta revista deu espaço, por ter tido o topete de confessar publicamente um dado que para mim é “concreto e definido, como outra coisa qualquer” da minha vida profissional, gerou em mim uma atenção que não esperava. O programa era sobre violência na escola. E foi-o realmente, com dois colegas que haviam sido agredidos a expor-se publicamente, o que para mim, que os não conhecia, revelou uma amplitude de alma e nobreza de carácter que nem sei como enaltecer devidamente. Misturou-se em vários momentos , entretanto, alhos e bugalhos, indisciplina, faltas de educação, violência, enfim, o normal em situações onde se abordam temas com tanta capilaridade semântica como, de resto, havia sido abertamente expresso no princípio do programa.

Percebendo, com o decorrer das intervenções, que se estava a estabelecer uma espécie de percepção a preto e branco pela qual os professores são meros mártires nas mãos de garotelhos delinquentes e violentos que, todo o professor o sabe, se passeiam, imperturbáveis, por muitas escolas deste país, tornou-se-me poderoso o imperativo de nunca admitir ceder esse poder a esses mesmos fedelhos e contribuir dessa forma clássica para a irrisão da autoridade do professor, da escola, da cultura.

Acredito, como muitos outros professores que, no momento em que baixemos essa guarda, toda a indulgente autoridade da escola e da cultura se desvanecem. Docentes e não docentes não podem deixar-se cair na armadilha da prédica do desgraçado. E protestar a sua “dignidade” não passa por exorbitar realidades nem por esconder o óbvio, pelo simples facto de que a violência acontece. E isto nunca irá significar, arengue-se o que se quiser, uma qualquer reserva na afirmação da náusea que todos sentimos por qualquer acto violento dentro ou fora do espaço escolar e a total e inequívoca solidariedade por todos quantos dela amargam.

Procurei, assim, adicionar uma outra visão do mesmo fenómeno. A visão dos muitos alunos e professores que contribuem positivamente para que a vida nas escolas seja positiva e benigna. A maioria, portanto. Péssima opção. Com esta perspectiva, dizem os detractores, estive a contribuir para negar que existe violência. Dessa forma, estive a dizer que está tudo bem no mundo da educação e pus-me a apontar o dedo acusador a todos os meus colegas que, ao contrário de mim, desgraçadamente sofrem horrores e mandam alunos para a rua. Quanto mais afirmasse as minhas vitórias, mais sublinhava as derrotas de outros. E é isto que não posso tolerar.

É inadmissível pretender que houve qualquer economia ética em declarar a repugnância que sinto pela violência nas escolas e muito mais ainda por aqueles colegas que ali deram a cara por todos quantos conhecem na pele, todos os dias, o flagelo da violência escolar. Mas é justamente aqui que é preciso dar esperança a todos nós que a vivemos quotidianamente. Sim, porque o facto de nunca ter mandado nenhum aluno para a rua não significa que viva numa qualquer bolha de inocência fofa que me impede de ver o que vai de profundamente errado e iníquo por essas escolas fora.

Passei nove anos da minha vida a solucionar problemas numa escola com sérios problemas de indisciplina, coexistindo diariamente com a polícia, cpcjs e tribunais, por causa de centenas de injúrias, ameaças, roubos e agressões. Tinha uma gaveta cheia de facas de ponta e mola que fui coleccionando. Criei cursos de integração de jovens com problemáticas clássicas de abandono familiar e para quem a escola absolutamente nada significava. Com tempo e consistência fomos ganhando a batalha. Deixo a quem testemunhou este trabalho que nos julgue pelo que fizemos nesses anos.

Sou um pragmático. Percebi que é sempre possível melhorar todas as coisas. Tenho para mim que onde quer que entre, as coisas têm de ficar melhor do que estavam, quando chegar a altura de sair. Fui premiado porque os meus ex-alunos mo impuseram, e fiquei com um contentamento imenso por se terem lembrado de mim. Não se espere qualquer arrependimento por querer muito corresponder ao que de mim querem os meus alunos.

Lido há muitos anos com as redes sociais, e, tendo feito parte dos iniciadores dos blogs educativos em Portugal, estou mais do que acostumado às exorbitâncias declamatórias das caixas de comentários e demais tonitruâncias aparatosas de pessoas sentadas em casa. Não é, portanto, por causa do dramatismo oratoriano deste ou daquele personagem que me interessei por estas erupções digitais que envolveram o nome de todos os convidados para aquele programa.  É por isso que me sinto tão confortável com esta controvérsia. Mas não posso deixar de manifestar a minha inquietação pela leviandade de muitas apreciações que têm sido feitas a propósito de coisa nenhuma.

De nada adiantou ter expressamente frisado que, lá porque a violência nas escolas é estatisticamente “residual”, se ouse aceitar que os professores agredidos sintam que são “resíduos”, palavra que me comoveu e indignou. Gostaria de ter sido mais vocal na minha repulsa pelas agressões. Não consegui sê-lo. Mas que ninguém confunda pouco tempo de antena ou mesmo as minhas muitas insuficiências com desdém pela dor alheia. Ainda por cima sabendo que nada me garante que amanhã não seja eu o agredido. É isso que me impõe este depoimento.

Comments

  1. Pimba! says:

    Näo sei qual é o espanto.
    Tive um professor que só dizia “tu [ou vocês], aí, FALTA!”
    E ao sorridente “Posso ir para a rua?” seguia-se um igualmente sorridente “NÄO! Levas falta e fica aí.”
    Mainada.

    • Anonimus says:

      A violência é estatisticamente residual.
      Também os acidentes rodoviários com mortalidade são residuais, enquadrados no número de carros e horas passadas diariamente ao volante, e o pessoal bate na tecla de mudar comportamentos.
      A questão não é a violência, eu tive colegas que bateram em professores. E uns nos outros. E nas contínuas. É a impunidade. A impunidade.
      Na escola, como na banca, na estrada ou na política.

  2. Fernando Manuel Rodrigues says:

    Excelente resposta. Obrigado.

  3. Ana A. says:

    “Procurei, assim, adicionar uma outra visão do mesmo fenómeno. A visão dos muitos alunos e professores que contribuem positivamente para que a vida nas escolas seja positiva e benigna. A maioria, portanto. Péssima opção. Com esta perspectiva, dizem os detractores, estive a contribuir para negar que existe violência.”

    Na minha modesta opinião (de pessoa sentada em casa), se o assunto a tratar é a violência escolar, e sendo ela felizmente, ainda, residual, quando se coloca no mesmo debate o “que está bem”, desfoca-se o problema e sai-se com a sensação de que afinal podia ser muito pior. E ainda bem que assim é!

    É como se fôssemos debater o problema dos sem-abrigo e de repente se comece a falar dos que têm emprego e casa, que são a maioria (e ainda bem), e o problema dos sem-abrigo, de repente fica sendo uma coisa residual e que não nos deve tirar o sono!

    Não sei se me fiz entender ou se tal como o professor Rui Correia vou ser mal interpretada!

    • Rui Correia says:

      Estimada Ana. Como imaginará não subscrevo a sua analogia mas creia que compreendo a sua apreensão e reflexão. Fico muito grato. Rui Correia

  4. JgMenos says:

    O indisciplinado conhece os seus limites e reconhece quem lhos imponha.
    Não é de esperar que todos tenham o carácter e a ciência de lidar com a indisciplina, mas seguramente que há saber e técnicas que possa potenciar essa acção, sempre penosa.
    O que eu estranho é que institucionalmente e corporativamente se trate pouco de como lidar com o problema e só encontro uma justificação:
    Sempre haveria de encarar haver casos sem solução que não a exclusão ou um qualquer ensino disciplinador; e aí ninguém quer entrar por obstáculo ideológico que sempre os faz vitimados de alguma coisa ou da sociedade!

    • Paulo Marques says:

      Há duas soluções à Menos: se têm dinheiro, que vão para o privado comprar as notas; se não, que emigrem para um país onde haja emprego.

  5. Luís says:

    Vi o programa e, não sendo professor, achei o discurso do professor do ano arrogante em relação aos colegas “residuais”, humilhando-os publicamente ao dar-lhes lições sobre gestão de fenómenos de violência na escola.
    Imaginem os “residuais” que o super-herói até é padrinho de casamento de dois alunos !!!!
    Ignoro os critérios que determinam a outorga do título “professor do ano” mas de certeza que a humildade não faz parte deles.

  6. Luís says:

    Já agora fico com a ideia que a violência é considerada residual apenas porque só se quer ver a parte visível do iceberg.

  7. JgMenos says:

    Neste ambiente de conformismo pelintra não é pouco serviço ser capaz de conviver e controlar a indisciplina.
    No mencionado sucesso não conheço o método nem os casos, mas seguramente é exigência excessiva para ter tão poucos seguidores.
    Não é exigível um tal excesso para compensar a tolerância em excesso de tanta má criação.
    Ser professor e missionário requereria tudo de diferente na selecção e na formação.

    • Paulo Marques says:

      O MST faz escola. Não sabe, mas a culpa é dos funcionários públicos, como não pode deixar de ser.

  8. Julio Rolo Santos says:

    Temos uma sociedade de gente arrogante e extremamente violenta e isso reflete-se nos filhos que lhes seguem o exemplo. Também a falta de pessoal auxiliar nas escolas não ajuda. É intolerável a violência nas escolas que deixa sequelas nos agredidos. Acabar com esta situação não agrada a certos políticos que a consideram normal nesta fase da vida. Pessoalmente, não aceito tal conceito.

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