Raspadinhas

 

O rato é metido numa caixa transparente. Lá dentro, há uma chave ou uma pequena alavanca, que, ao ser accionada, faz cair comida de um alçapão. O animal dá umas quantas voltas dentro da caixa até descobrir a alavanca. A comida cai. A partir de então, não quer outra coisa. Tanto dá se se trata de um hamster ou de uma ratazana de esgoto, o comportamento do animal dentro da caixa é invariável: ver a alavanca, puxar por ela, receber a recompensa. E outra vez, e outra vez, e outra vez. Burrhus Frederic Skinner, psicólogo e professor na Universidade de Harvard, o homem que concebeu esta experiência a que ainda hoje se chama “caixa de Skinner”, chamou-lhe “circuito de reforço continuo”. Quando realiza uma acção que produz uma recompensa, o rato recebe uma descarga de dopamina, o neurotransmissor produzido em situações identificadas como agradáveis (beber quando se tem sede, por exemplo). E desejará mais.

Concluída esta fase, Skinner introduziu uma alteração: quando o rato puxar pela alavanca, às vezes cairá comida e outras vezes não. E descobriu que a incerteza quanto à recompensa não desmotivava o rato, antes pelo contrário. Puxar pela alavanca tinha-se tornado um gesto que provocava prazer por si só. E nem quando introduziu uma nova alteração – ao puxar a alavanca, uma de três coisas acontecia aleatoriamente: caía comida, não acontecia nada, o rato levava uma descarga eléctrica – o rato deixou de puxar a alavanca. Acabado de levar um choque, o rato lançava-se de novo à alavanca. Tinha-se criado um comportamento aditivo, que, como sabemos, uma vez estabelecido, não deixa de repetir-se pelo facto de provocar consequência negativas ao sujeito.

As “slot machines” ou caça-níqueis são uma espécie de caixa de Skinner. De cada vez que o jogador puxa pela alavanca, não sabe se ganhará dinheiro ou não. Estas máquinas já começaram a substituir as alavancas por ecrãs tácteis, mas o certo é que a alavanca nunca teve nenhuma função real. As máquinas estão programadas para retribuir uma pequena percentagem do dinheiro que recebem e é impossível prever quando tal acontecerá. Na verdade, a função da alavanca é apenas a de permitir ao jogador manter a crença de que controla o jogo, de que o modo como manipula um objecto, a suavidade, jeito ou força que imprime a esse movimento, pode influenciar a sorte, um pouco como quem lança os dados e lhes sopra ou lhes sussurra palavras de incentivo ou ameaça antes de lançá-los sobre a mesa de jogo. A interacção física, a sensação de que é possível controlar a máquina, sentir o momento do jogo, usar a experiência e a intuição a seu favor, melhorar pela repetição e “criar” a sorte são a perdição do sujeito que gasta horas e rios de dinheiro frente a uma máquina quase perfeita, a mais lucrativa do planeta, e cujos mecanismos são completamente opacos. Em Espanha, onde as máquinas caça-níqueis são permitidas em qualquer café ou bar, há famílias inteiras arruinadas pela adição a estas máquinas quase infantis, com as suas luzes coloridas e musiquinhas alegres.

Por cá, não há máquinas destas a não ser em salas de jogo ou casinos, mas abundam os jogos online e essa versão aparentemente inofensiva do jogo, a raspadinha.

Já não restam muitos, mas aprecio aqueles cafés com quiosque dentro. Não restam muitos, mas ainda frequento um, sempre o mesmo, embora agora escolha a esplanada, sempre que possível. Não tenho mesa certa, mas gosto de uma próxima da porta, que o empregado se queixa de ser a que mais vezes desinfecta durante um dia, porque, quando está vazia, é aquela na qual quem sai do café se detém a raspar as raspadinhas acabadas de comprar. E, de facto, se me sento noutra, não tarda aparece alguém a fazer isso, ansioso por tirar a máscara e pôr-se a raspar o cartão. Gente de diferentes idades, aparentemente de classes sociais também distintas, mas em número assombroso. E o quiosque, com efeito, começou por ter meia dúzia à venda e agora já exibe uma espécie de cortinados de diferentes raspadinhas, de cores e nomes diversos, suponho que também variem os preços e o valor dos prémios. Há quem tenha uma moeda da sorte para raspar, quem repita um ritual, quem peça a outros para comprar, quem peça a número X a contar de cima ou de baixo, mas em todos se vê o mesmo frenesim, a mesma expectativa enquanto raspam, como se algo pudesse depender do modo como o fazem, do empenho ou da concentração com que passam a moeda/ alavanca. Deixam ficar sobre a mesa os despojos, as raspas cor de cinza da sorte que voltou a fugir-lhes e que o empregado enxotará com o pano húmido e uma irritação contida.

Comments

  1. Por onde tem andado? Porque nos privou da sua escrita maravilhosa, sem resquícios de frustrações, de ódios, tão frequente neste blog?

    AC

  2. Paulo Marques says:

    Ao menos essas dão prémios de acordo com tabelas reguladas e verificadas, o que enfiam nos jogos de telemóvel (e não só) fica-se só pelas luzinhas e dão muito mais lucro.

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