A Própria

Tive de ir reconhecer a minha assinatura. Eu própria tenho, com frequência, dificuldade em reconhecê-la, por isso sempre me pareceu injusto esperar que outra pessoa o fizesse por mim, mas a 20 euros por reconhecimento, também eu era capaz de pôr mais afinco nesse esforço. A pessoa que deveria reconhecer a minha assinatura nunca me tinha visto mais gorda, nem eu a ela, e quando lhe perguntei se queria que eu afastasse a máscara para comparar-me com a foto do Cartão de Cidadão, negou com um ímpeto como se eu tivesse acabado de propor lançar-lhe gás Sarin para a secretária. Já não insisti.

Como seria de esperar, lançou-me aquela frase tenebrosa:

vVai assinar exactamente como no documento de identidade.

Pensei alegar que uma provável renovação celular já fazia de mim, em rigor, uma pessoa distinta daquela que tinha assinado o documento, mas ocorreu-me que isso poderia dar origem a outra pergunta ontologicamente complexa como:

vA senhora é a própria?

E por isso empenhei-me em imitar tão bem quanto possível aquilo que era, oficialmente, a minha assinatura, e que eu havia desenhado, em tempos idos, com tanta leviandade, sem reflectir, nem por um instante, nas consequências daquela acção, e imitei-me com a gravidade de uma falsária de primeira mas sem o ónus da culpa, porque, afinal, era pela minha pessoa que eu tentava fazer-me passar.

A reconhecedora aproximou o resultado do meu esforço trémulo aos seus olhos ainda muito jovens, mas já bastante míopes, e pensei ver-lhe um brilho impiedoso nos aros dourados. Depois pareceu-me que seria apenas uma curiosidade de grafóloga amadora. E, por fim, concluí que estava apenas a exibir um rigor de fachada, porque não lhe interessava nada saber a quem pertencia o rabisco sobre o papel. O meu esforço recebeu a aprovação do sistema legal, sob a forma de um selo pespegado ao lado do rabisco e da passagem de uma nota de 20 euros deste para o outro lado do balcão.

Reconduzida no cargo de A Própria, saí aliviada como quem acabasse de superar uma prova de existência.

Comments

  1. Luís Lavoura says:

    Pois é. Quando as pessoas vão envelhecendo, cada vez têm mais dificuldade em assinar corretamente. Falo por mim.

  2. Rui Castro says:

    E não podia ter assinado digitalmente o documento e poupar os 20 euros, a ida ao serviço público e deixar a funcionária publica disponível para outra tarefa?
    Se calhar era por isso que ela estava mal disposta.
    Existe uma legislação que lhe confere o mesmo valor legal.
    Digo eu…

    • Todos os documentos, absolutamente todos, podem ser assinados digitalmente ? E quem não percebe puto de informatica como faz ?

    • Luís Lavoura says:

      Para assinar digitalmente um documento é preciso ter, creio eu, uma máquina para ler o cartão de cidadão. E a maioria das pessoas (e dos serviços) não tem tal máquina.

      • Carlos Ferreira says:

        Isso era em tempos que já lá vão.
        Agora basta a Chave Móvel Digital que já é indispensável para alguns acessos públicos (p.ex., SNS).

  3. Tal & Qual says:

    Ehehehehe !
    A menina Carla não sabe em que país vive !
    É portuga ? Lá está…

  4. Filipe Bastos says:

    As crónicas da Carla Romualdo valem sempre a pena.

    Só escreve no Aventar? Devia escrever mais. E é do Porto? Bom, ninguém é perfeito.

  5. Paulo Marques says:

    A verdade é que a civilização funciona à base da confiança implícita nesta e nos outros e no número pequeno e controlado de sociopatas, seja nas assinaturas, faxes, fechaduras triviais, etc etc. Quando a confiança é perdida, também lá se vai aquilo que os Tatcherianos se querem livrar.

  6. Paulo Campos says:

    As crónicas da Carla são sempre um deleite. Adorei este lado mais humorístico. Qualquer bicho careta tem um blog pessoal, e a Carla não? Para quando um blog pessoal onde se reúnam todas as crónicas?

    • Luís Lavoura says:

      Concordo.
      Eu já sugeri à Carla que ela editasse um livro com as crónicas.

  7. Tito Adriano says:

    Carla Romualdo,
    Você é magnífica a escrever. Possuiu um humor finíssimo, escreve elegantemente e é um prazer lê-la – qualquer que seja o assunto. Mas, sobretudo quando mete uma pitada de humor.
    Grato por este momento de boa disposição que me proporcionou. Em tempos de Covid fez-me bem!
    Tito Adriano

  8. José Aurélio Godinho Galhoz says:

    Em resumo, para quando um blog pessoal, um livro, qualquer meio onde se guardem (e difundam) todas as crónicas, passadas e futuras?

  9. César P.Sousa says:

    Daqui a muitos anos a funcionária,que atendeu a Carla ,dirá orgulhosa aos netos : “…fui eu própria que fiz o reconhecimento da assinatura á própria Carla Romualdo , ela própria !!
    Obrigada pelo momento .

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