Abjecção de consciência

“A democracia é precisamente o regime onde posições abjectas podem ser defendidas de forma legítima, da castração química de pedófilos às 35 horas de trabalho na função pública.” – João Miguel Tavares

 

Há quem use o adjectivo “genial” a propósito de tudo e, portanto, de nada. O uso excessivo desgasta qualquer material e as palavras não são excepção. Se tudo for genial, o que poderemos dizer de um génio?

João Miguel Tavares (JMT) exerce o seu direito ao uso da palavra “abjecção para classificar a proposta de castração química do Chega e do regresso a um horário de 35 horas semanais na função pública em 2015. Nada de novo: a direita, por crença ou por conveniência, segue a moda das falsas equivalências, andando numa esquizofrenia perigosa: ai, não gosto nada do Chega, mas o Chega tem os mesmos direitos que os outros, a esquerda é tão abjecta (ora cá está) como o Chega e o Chega cresce por culpa da esquerda.

Aproveitando o seu espaço no Público, JMT renova o seu direito ao uso de “abjecção” para classificar a injustiça das 35 horas semanais da administração pública, face às 40 dos privados. De qualquer modo, há mais histórias nesta história.

Devo começar por dizer que concordo: é uma injustiça. É uma injustiça, sim, mas não deixa de ser curioso que JMT, tão preocupado com a igualdade, não defenda, por exemplo, que os privados passem para 35 horas. Para além de ser uma injustiça é também um disparate, porque se mantém a ideia de associar a produtividade ao número de horas de trabalho, mas não há nada como ser simplista. É, ainda, um disparate confundir o horário semanal com o número de horas que efectivamente se trabalha, mas, mais uma vez, o que é preciso é ser simplista e demonstrar que a esquerda é tão má como o Chega.

Se JMT se preocupasse verdadeiramente com abjecções poderia, por exemplo, informar-se acerca da exploração e da (o)pressão a que muitos professores são sujeitos em colégios privados, onde são obrigados a trabalhar muito mais do que aqueles que estão nas escolas públicas. É claro que o cronista, em nome da igualdade, passaria a defender que os professores das escolas públicas fossem sujeitos ao mesmo que alguns de algumas escolas privadas.

Para JMT, de modo muito portuguesinho e muito de direita, as desigualdades só ficam resolvidas quando todos estiverem igualmente mal. Isto tem um nome: populismo. O objectivo desta espécie de argumento é abrir feridas, reforçar as guerras entre o público e o privado.

Passos Coelho, divinizado por JMT, ganhou eleições à custa de uma série de promessas que, pouco tempo depois, já primeiro-ministro, não cumpriu, iniciando o seu sonho de ir além da troika. Será que João Miguel Tavares considerou isso abjecto? António Costa ainda não procedeu à requisição civil de hospitais privados, tendo em conta o estado em que está um Serviço Nacional de Saúde empobrecido por anos de desinvestimento. Será isso abjecto?

Não, abjecto, abjecto, verdadeiramente abjecto foi reduzir o horário de trabalho dos funcionários públicos. Tão abjecto, pelos vistos, como propor a castração química ou a remoção de ovários. JMT – e não está sozinho – afirma que essas propostas dificilmente passariam na Assembleia da República, sem se aperceber de uma ligeira mudança de paradigma: no parlamento português já se encontra alguém que representa gente que não silencia essas propostas. Isso tem um lado positivo: sabemos que essa gente existe e sabemos onde está.

JMT talvez pudesse ter encontrado abjecções em propostas ou preferências da esquerda; em vez disso, preferiu chamar abjecção a um horário de trabalho semanal. Será JMT distraído ou abjecto?

Comments

  1. João Paz says:

    “Será JMT distraído ou abjecto?” É abjecto sem qualquer dúvida.

  2. João Paz says:

    “Será JMT distraído ou abjecto?” É abjecto, sem dúvida.

  3. Filipe Bastos says:

    Entre os chulecos comentadeiros que vivem de bitaitar pelas TVs e pelos moribundos jornais nacionais, JTM será talvez o mais unânime: representa aquela direita mainstream, moderada e suave, em que muita classe média se revê.

    Rejeita comunas e denuncia xuxas, mas não demasiado. É até simpático para o governo e para o Bosta. Canta valores liberais, mas sempre numa ‘social-democracia’. Critica ‘populismos’. No fundo, quer manter tudo na mesma – a vidinha corre-lhe bem – mudando só uns detalhes aqui e ali.

    No 10 Junho do ano passado, num discurso que fez sensação, disse umas leves verdades sobre o esgoto pulhítico. Neste país de cornos mansos, até pareceu um violento discurso anti-sistema – algo risível, vindo de alguém tão pró-sistema.

    O João Miguel Tavares, como o Ricardo Araújo Pereira, o Pedro Mexia ou o Marques Lopes, são daqueles contestatários de estimação dos regimes podres: mantêm a ilusão de pluralismo, sem jamais pôr em causa o regime ou os seus donos.

    A carneirada também os adora; fazem-na rir e poupam-lhe o trabalho de pensar. Dão-lhe a ‘análise política’ já mastigada e pronta a comer, como se dá às crianças.

  4. Filipe Bastos says:

    As 35 horas da FP: não diria abjecto, mas é certamente injusto. Os seus defensores, como o Nabais, dizem que o privado é que devia igualar a FP; mas sabem bem que estão a ser hipócritas.

    É como o rico dizer ao pobre: não sou eu que tenho muito, tu é que tens pouco. Entretanto vai gozando a sua riqueza. Falar de cima é fácil. E ainda se queixa; passa a vida a queixar-se.

    Não é preciso a direita abrir guerras entre o privado e o público; este trata disso sozinho. O relaxe e a sobranceria da FP não são mitos. As constantes greves também não. Há na prática dois países distintos, com direitos distintos. Que esperavam?

    • António Fernando Nabais says:

      Vá lá, que já passou a injusto. Curioso é aquele “hipócritas”, que fica por demonstrar – está ao nível do JMT.
      Falar de cima é mais fácil do que falar de baixo, é verdade. Giro, giro é escolher palavras como “rico” ou “riqueza” para se referir aos direitos (não, não são privilégios), o que é próprio da mentalidadezinha JMT. A solução do Filipe seria a seguinte: as pessoas que têm alguns direitos (ou riqueza, em linguagem filipina) não deveriam exercê-los, porque há pessoas que têm menos.
      E como é que sabemos que o relaxe e a sobranceria da FP não são mitos? Porque o Filipe diz que não são mitos. É só dizer e, voilá!, existem. O Filipe é o Luís de Matos do comentário – faz truques.
      As greves serão muitas ou poucas, justas ou injustas? Não interessa: são “constantes”.
      O público é que abre a guerra contra os privados, claro – quando o patrão explora o trabalhador, no privado, a culpa é do funcionário público. Isto, afinal, é tudo simples.
      Obrigado, Filipe.

    • Filipe Bastos says:

      São hipócritas porque sabem que não são os prejudicados – os milhares de privados que trabalham mais, ganham menos e têm emprego muito mais precário – que podem mudar isso.

      Falam do alto dos seus ‘direitos adquiridos’, sabendo bem que só eles os adquiriram, e que se estivessem no privado comiam e calavam. Tanto que quando se queixam e lhes respondem ‘então venham para o privado’, nenhum vai. Sabe bem ter emprego garantido, não sabe?

      Relaxe e sobranceria: basta entrar numa repartição ao calhas, sobretudo das finanças. Quem nunca teve de lidar com um FP que se acha o rei do castelo a lidar com plebeus? Quem nunca sentiu que Sua Excelência faz o grande favor de atendê-lo? Ou o trabalho devagar devagarinho; ou os horários (sobretudo o de fecho) cumpridos ao segundo; ou as constantes baixas; ou as cunhas para primos; etc.

      Fui funcionário público na tropa. A minha mãe foi FP uns 40 anos. Trabalhei e trabalho com faculdades, institutos, conheço óptima gente que é o oposto disto. Mas a média é fraca, muito fraca. Negar isso é ser parcial ou cegueta.

      • António Fernando Nabais says:

        Em resposta, é só voltar a ler o meu comentário anterior.
        Não posso deixar de reparar no último parágrafo: trabalha com muita gente óptima da função pública, mas a média é fraca. Gostava de saber como é que se encontra essa média – calculo que seja em converseta de café ou em caixas de comentários.

      • Paulo Marques says:

        Nenhum vai para o privado, ainda por cima por ganhar mal?
        Saia da bolha. Vão e não é só do público, é do país, de tão pouco que trabalham.
        Quando só ficar quem se borrifa, não se queixe, fica com o estado que quer. Ou privatize o resto, a ver se os rentários monopolistas lhe dão melhor serviço sem ninguém os obrigar. Tem corrido bem, aliás.

      • Filipe Bastos says:

        Sim, a malta emigra para ir ganhar mais. No público e no privado. E então? Mas quantos trocam o emprego certo do público em Portugal pela incerteza do privado em Portugal?

        Só se fala da saúde – médicos, enfermeiros – ou de grandes empresas. E eu é que vivo numa bolha?

        Não tendo outro argumento, v. toma sempre os outros por ‘neoliberais’. É a sua resposta pronta. Lembra os direitalhas que chamam comuna a toda a gente. Está com azar: sou tão ‘neoliberal’ como astronauta.

        • Paulo Marques says:

          Porque raio é que haviam de ficar no país se têm propostas onde os patrões os respeitam? A questão é que deviam ser todos abaixo de medíocre pela ideia de que passam, a realidade é que os nossos medíocres vendem bem.
          Ter que esperar pelo serviço? A EDP e os operadores de comunicação devem ser funcionários públicos e nunca tinha dado por isso.

    • Filipe Bastos says:

      Não, Nabais, é indo lá, às repartições e demais entidades públicas. É precisando do trabalho deles. Costuma precisar?

      Na escola, muito antes de ter qualquer noção esquerda/direita, passava meses sem ver alguns professores. Era baixa e balda todo o ano. Da tropa nem se fala; salvo raras excepções é uma colecção de chulos e encostados.

      Repartições, comissões, institutos em geral, é o desastre total. Além das Finanças, recordo com especial carinho o INPI e a CNPD. Ricas vidas. Tachos tranquilos.

      Claro que há bons e maus funcionários, mas a média é fraca. E as regalias não ajudam. Se não acredita experimente perguntar a mais gente. Qual acha ser a opinião geral?

      Depois há a mentalidade da FP. Vejo isso na minha mãe: não é que ganhasse ou tivesse regalias por aí além; mas tinha mais que a maioria das pessoas. E no entanto, pensa e fala sempre enquanto vítima. Nós, os FP. Nós, os sacrificados.

      • Paulo Marques says:

        Com a propaganda jornaleira, a opinião geral só pode ser uma – até precisarem de algo rotineiro, mas perigoso, como um cataterisma e o privado o despachar para o público.

      • Filipe Bastos says:

        Qual propaganda, é experiência própria. Da escola à tropa, da repartição das Finanças à CNPD. Que diabo, de quantos exemplos precisa? Os utentes estarão todos errados?

        Repare que não falei na saúde: fui sempre, sempre bem tratado. Mesmo com todos os cortes, a saúde pública, no que realmente importa, deixa a privada a milhas. Porque é que o resto da FP não é assim?

        • Paulo Marques says:

          Burocracia excessiva para lidar com burlões excessivos. O mesmo acontece nos serviços privados enquanto não passam os custos da não verificação para outro lado.

  5. pata negra says:

    Tão grave como o PSD fazer um acordo com o Chega é Ricardo Araújo Pereira ter no seu Governo Sombra o João Miguel Tavares.

    Ricardo Araújo Pereira é uma espécie de Cristiano Ronaldo do humor. Admiramos de tal forma o que eles fazem e os estatutos que daí lhes advêm, respeitamos de tal modo a sua fama e a sua fortuna que somos incapazes de os pôr em causa, antes os bajulamos e temos como intocáveis. Quando muito, podem existir alguns que lhes dedicam aquela consideração que tantas vezes ouvimos: “José Saramago é um grande escritor mas não aprecio a maneira como escreve”.

    Ricardo Araújo Pereira pode ridicularizar qualquer personalidade de proa, fazer-nos rir dos figurões nacionais, troçar até mais não do mais alto magistrado da nação. Todos dão o “e oito tostões” para se sentarem à sua frente, com o convencimento, é certo, de que se vão sair como porreiros e que vai ser fácil a entrevista porque já lhe foram antecipadamente facultadas as questões. E é sempre fácil porque o humorista quer apenas ser um tipo engraçado e dar-se bem com toda a gente – é assim que ganha a vida.

    É assim que Ricardo Araújo Pereira vai timidamente à Festa do Avante ao mesmo tempo que não recusará uma galhofa com o Chicão, um beijo na mão às Mortáguas, um abraço ao Rio, um jantar com o Costa ou uma condecoração do Balola da República.

    Reconheça-se que já deu a entender que com Ventura nem uns “bons dias”. Fez mais contra o Chega nos dez minutos que dedicou à sua convenção no seu programa dominical, que milhentas provas das mentiras e contradições que ao Chega dão o sucesso, que horas e horas de comentários de TV sobre novos populismos, que páginas e páginas de intelectuais democratas sobre os perigos que a democracia corre.

    Mas Ricardo Araújo Pereira está num palco perigoso. Contracenar com um cabeça rapada de óculos azuis, ampliar o alcance do cronismo de direita que o quotidiano do Público concede ao seu menino, tentar fazer graça com um porteiro do fascismo, não tem graça nenhuma e talvez lhe venha a sair tão caro como o caso dos Açores ao Rui Rio.

    Ainda que em diferentes papéis, João Miguel Tavares é tão perigoso como André Ventura. Ricardo Araújo Pereira estará a pecar mais do que Rui Rio, partindo do princípio que o seu humor inteligente não é assim tão ingénuo ou inocente.

    • Paulo Marques says:

      O Ricardo é um pateta alegre comparado com Gregório Duvivier; o primeiro diz coisas, o segundo sabe-as e transmite-as.
      Colaborar com outro idiota útil que quer que nada muda é-lhe natural, o ordenado é jeitoso.

  6. Rui Santos says:

    JMT é cagão snob armado em intelectualoide e que acaba por dar cobertura aos recalcados que acham que a FP é só bandidagem.

  7. Rui Naldinho says:

    « Injectar lixívia em política »
    «  Nos seus “programas activos”, o BE e o PCP caminharam para a democracia, o Chega caminha para fora dela e a força da sua inegável vitalidade vem daí. Os eleitores do Chega não são inocentes, sabem muito bem em que votam e o que votam. »
    JOSÉ PACHECO PEREIRA
    O que JMT faz é precisamente isso. Injectar lixívia na política.

  8. JMT lava mais branco do que o Omo. Já repararam como agora só se fala de castração química quando o que o Chega propôs foi castração física (e remoção dos ovários a mulheres que abortassem, que é para não se ficarem a rir)?

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  1. […] Filed Under: política nacional, sociedade Tagged With: assédio moral, Chega, Cristina Tavares, funcionários públicos, joão miguel tavares« Abjecção de consciência […]

  2. […] Na sua crónica de hoje, João Miguel Tavares (JMT) consegue o milagre de se afastar de muita direita que vê nos apoios sociais o grande problema da economia portuguesa. Há dias assim, em que JMT escreve menos abjecções. […]

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