Sobre ser demasiado, ou as quotas de género

César Alves

A notícia dizia que a Câmara de Paris tinha sido multada por empregar demasiadas mulheres. Veio logo aquele arrepio na espinha: que raio de situação era essa, ainda por cima não sendo saída de um qualquer país demasiado conhecido pelo facto de as mulheres serem cidadãs de segunda?

O problema era simples: a lei das quotas de género, instaurada em 2013, que prevê que nenhum género esteja representado acima dos 60%, foi violada, uma vez que a Câmara de Paris emprega 69% de mulheres. A presidente do executivo, Anne Hidalgo, fez da multa um acto de activismo, assumindo a felicidade por ela e prometendo entregar pessoalmente o cheque.

Eu percebo genuinamente esta felicidade, uma vez que o problema da desigualdade entre homens e mulheres é gravíssimo, demasiado pesado e estrutural. Não a percebo do ponto de vista dos objectivos daquela lei que, desde a sua origem, tem pouco sentido.

As frases “Pessoa X não foi empregada por ser mulher” e “Pessoa X foi empregada por ser mulher” encerram em si a mesma absurdidade. O género de alguém nunca deveria ser o critério fundamental para uma contratação ou não contratação. E a imposição das quotas, sejam elas de que tipo forem, são apenas um penso rápido num problema que é estrutural.

Sou sensível ao argumento de que as quotas podem servir de “empurrão” para uma mudança de paradigma. Que “forçando” a entrada de mulheres no mercado de trabalho, nos conselhos de administração e nos órgãos públicos, que a sociedade vai mudar, vai evoluir. Sou sensível a esse argumento porque encerra em si alguma lógica. Não tenho memória existencial da questão do cinto de segurança, mas hoje é universalmente aceite a sua utilização.

Mas parece-me que as mulheres e as minorias e todos os grupos que se tentam, legitimamente, proteger com a questão das quotas, merecem muito mais respeito e credibilidade. Uma mulher, neste caso, merece ser contratada pela sua competência, pelo que pode oferecer ao organismo, pela sua visão, pelo seu currículo. Lamento que esta situação na Câmara de Paris possa colocar em causa o mérito de todas aquelas mulheres que compõe o executivo. Não conheço o trabalho delas, não acompanho a actualidade da cidade francesa em termos de gestão municipal, mas sei que nunca deveria ser multada por empregar demasiadas mulheres. Ou por empregar demasiados homens, demasiados membros de determinado grupo, e por aí fora, ad eternum.

Poderão dizer-me: mas empregar demasiados homens pode ser um indício do machismo estrutural que existe na sociedade. Pode. Mas também pode não ser. Como o podemos comprovar?

Muitas vezes a dificuldade destas lutas está precisamente na indefinição que encerra em si mesma a intenção de um acto. Um machista não é aquele que opta por não contratar uma mulher. É aquele que opta por não a contratar por ser mulher.

É uma linha ténue, a que separa estas duas situações, e só com consciência é que as podemos distinguir e agir sobre aquela que é realmente grave: a segunda.

Acredito mesmo que as quotas não resolvem o problema de fundo. Podem abrir portas que antes não se abririam, podem oferecer determinadas oportunidades, mas não é esse o mundo em que quero viver. O mundo em que quero viver é aquele em que a discriminação não existe, porque foi eliminada por uma mudança global de mentalidades, que só consegue ser feita de duas maneiras: na base, numa aposta muito séria na educação (nenhuma criança nasce racista ou machista, é ensinada a ser assim. Está aí o problema não está?) para este tipo de problemas de cidadania, uma educação para a igualdade. E ser uma aposta séria é abordar estes assuntos de uma forma transversal a miúdos e graúdos, e não em pequenos projectos ou acções sem qualquer peso; e denunciar. Denunciar casos de discriminação com dados objectivos. Denunciar desigualdades salariais sem fundamento, denunciar todas essas situações que são, efectivamente, uma prova da discriminação. E exultar sempre que possível o contributo de grandes mulheres na sociedade, exultar sem medo, para que o mundo perceba o que tem perdido com a sua ausência em determinadas posições. As mulheres merecem isso. Merecem mais.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Ha cerca de 29 anos, estávamos em 1991, Jardim Gonçalves, ex administrador do BPA, entretanto despachado pelo PREC, regressa à banca pela mão de Mário Soares, esse “socialista dos quatro costados” quando estava na Oposição, e um liberal de mão cheia, quando estava no governo.
    Jardim Gonçalves funda um banco com o apoio de um grupo de industriais, a maioria deles nortenhos, onde pontificavam por exemplo, Américo Amorim, com o nome de Banco Comercial Português – BCP.
    O Banco caracterizava-se por não dar emprego a mulheres, na área comercial e operacional, com excepção de alguns casos residuais, onde apareciam umas quantas secretárias da administração, não fosse o “machismo cultural” vigente; já que agora uma certa direita conservadora nos embriaga diariamente com a treta do “marxismo cultural”, predominante nos costumes e na dita comunicação social; mas dizia eu, não fossem insinuar que os banqueiros e administradores do BCP eram do género homossexual, preferindo secretários.
    O argumento era o de que no arranque do banco todos os colaboradores teriam de ter permanente disponibilidade para as árduas tarefas de emergir um BCP que ombreasse com os outros grandes bancos, na altura o BPA, como banco comercial, e a CGD, um banco público.
    Para além da desigualdade concorrencial com outros bancos, que empregavam já muitas mulheres, há décadas, mulheres que engravidam, que amamentam, que são mães de filhos, que adoecem, é uma ofensa à inteligência e dignidade a mulher. Tudo isto com o beneplácito do poder político que aceitava isto como se nada de estranho se passasse. Era Primeiro Ministro aquele senhor chamado Cavaco Silva, o tal que ainda há anos se queixava da reforma de oitocentos euros da mulher, professora de profissão, mas cujo tempo de serviço foi menos de metade daquilo que a maioria dos professores da sua geração dava à profissão. Queria o quê? Estatuto de excepção? Sim, era esse impostor, que tem a mania de ser mais sério do que os outros, mas devia era corar-se de vergonha.
    É óbvio que o BCP veio à posteriori absorver outros bancos, e nessa medida entrou na normalidade, empregando mulheres, muito mais fruto das fusões do que de uma mudança de paradigma dos Gestores.
    Há empregos em que até posso admitir ser difícil uma mulher poder executá-lo com a mesma eficiência de um homem, mas nos dias de hoje serão raríssimos.
    Haverá um dia em que as cotas entre mulheres / homens no mundo do trabalho, farão rir de troça, os nossos bisnetos, mas a realidade dos dias de hoje ainda demonstra bem, que em caso de escolha, até para a manutenção do posto de trabalho, essa recai quase sempre em favor do homem, deixando a mulher às portas dos centros de emprego, em situações dramáticas.
    Se considerarmos um problema social bem grave nos dias de hoje, onde as mulheres ficam maioria das vezes sozinhas com os filhos à sua conta, com pensões de alimentos irrisórias, algumas não ultrapassam os cem euros, esta legislação das cotas, mesmo que com alguma dose de hipocrisia dos políticos, parece-me certa.
    Aquilo que Ana Hidalgo está disposta a fazer, pagando a multa com pompa e circunstância, diante dos meios de CS, mesmo que com alguma dose de populismo à mistura, admito-o, ė cavalgar a hipocrisia do poder judicial e do poder político.
    No final ganha ela, perde a justiça e fragiliza-se a democracia.

  2. Paulo Marques says:

    Há-de haver um dia em que seja necessário deitar as cotas fora, hoje estamos bem dentro da não contratação pelo género (ou etnia, ou idade, ou…). E a câmara de Paris não é França.

  3. JgMenos says:

    As quotas de esquerdalhos estão a arruinar o país.
    As quotas de hormonas femininas estão sobrevalorizadas e conduzem a um crescente desequilíbrio de que o que se passa em Paris é só um caso particular.
    A doutrina dos coitadinhos é o sustentáculo emocional de todo esse disparate.

    • Paulo Marques says:

      Estão? Onde? Em quê?
      Coitadinho do Menos, o incel.

      • JgMenos says:

        Eu sei, nem com quotas de esquerdalhos chegas onde entendes ser-te devido.
        Junta-te aos coitadinhos…

        • Paulo Marques says:

          Quem passa a vida a queixar-se é o Menos; eu estou bem, pá, as acções rendem bem. Trabalha mais.

        • Paulo Marques says:

          E obrigado pela luta para não me baixar o preço dos imóveis de herança e manter-me sem imposto sucessório. Eu não preciso, e quero o oposto, mas obrigado.

  4. Filipe Bastos says:

    “Nenhuma criança nasce racista ou machista, é ensinada a ser assim” – tem a certeza disso? Em todos os casos?

    Os nossos instintos não vieram do nada: passámos centenas de milhares de anos a agir como bestas, porque éramos bestas. Nunca deixámos de o ser; apenas disfarçamos ou somos forçados a isso.

    Distinguir – e discriminar – pessoas e tribos diferentes não nos torna bons ou maus; é um mero mecanismo de sobrevivência.

    O 1º problema das quotas e da ‘discriminação positiva’ é que forçam algo, e quando se força raramente se obtém equidade ou justiça.

    O 2º problema é que, por ser apenas cosmético e ‘identitário’, como se diz nestes tempos de histeria woke, nada faz quanto à injustiça de fundo, que radica no capitalismo dominante.

    Por exemplo, uma mulher pode engravidar. Um homem não. Que pequena empresa se pode dar ao luxo de perder pessoas essenciais durante meses? Porque vai correr esse risco, se puder evitá-lo?

    • JgMenos says:

      Que falta de sensibilidade!
      Pois não sabe que quem cria uma empresa tem por dever primeiro servir o corretês ao abrigo do pressuposto de que só por isso lhe é consentida a existência?

      • Paulo Marques says:

        Claro que não. Não sabe que as empresas devem receber protecções e direitos de toda a sociedade com o poder do estado só por existirem?

    • Filipe Bastos says:

      Bate à porta errada: sou contra o ‘corretês’ porque devemos ir muito além dele. Sou pelo desmantelamento do seu querido capitalismo, pela limitação e redistribuição da riqueza, pela democracia directa e pela reforma do sistema monetário.

      Por mim não havia Banca, todos os serviços essenciais seriam públicos, incluindo saúde e educação, todas as empresas acima de mil milhões (por exemplo) seriam nacionalizadas pelo menos em parte, e a economia seria posta ao serviço de todos, não de uma dúzia de mamões e contra o planeta.

      E digo-lhe isto como ‘patrão’ e empregador. Só não emprego mais mulheres porque são raras na minha área (TI): o corretês, como já se viu na Suécia e noutros lados, não evita as diferenças entre homens e mulheres; por muito que as brigadas woke chiem, as diferenças são óbvias e reais. E ainda bem.

      O JgMenos dá o peito às balas, só por isso merece consideração. Dá para ver que não é parvo, algumas vezes até concordamos. Mas acredite, isto por aqui não é radical. É suave.

      • Paulo Marques says:

        A julgar pela minha estadia na FEUP, bem como a da minha mulher no mesmo curso, não admira, desde as bocas na praxe até ao fim do curso, passando muito pelos professores, que não sintam grande motivação. Nem por várias situações nas nossas carreiras se nota grande respeito por engenheiras, informáticas ou não.
        Diferenças mentais não são, porque Lovelace esteve lá no Início, mulheres era o que mais havia em Bletchley, e também não faltavam no início de Silicon Valley.
        Portanto, se são “óbvias” e “reais”, deve ser fácil encontrar alguma coisa que diga que são más a matemática, não?

      • Filipe Bastos says:

        Bocas e malícia existem em todo o lado – especialmente entre mulheres, nunca reparou? Pergunte à sua esposa.

        Isto não invalida que, como diz, haja ainda certo preconceito em algumas profissões técnicas. Mas a vasta maioria das mulheres prefere outras profissões. Tem-se constatado isto na Escandinávia; é a realidade.

        • Paulo Marques says:

          E porque é que “preferem” outras profissões? Ganham melhor? Ou é não serem postas em causa 8h por dia?

    • César Alves says:

      Filipe Bastos, boa tarde. Obrigado pelo seu comentário.

      Obviamente que a minha afirmação sobre as crianças é uma generalização, que não considero apressada. Tenho dúvidas que uma criança seja discriminatória por si só. Tenho dúvidas que uma criança trate mal um colega negro por ser negro ou que um rapaz trate mal uma rapariga por ser rapariga. Acredito que todos nós criamos determinado tipo de estereótipos ao longo da vida, mas que essas noções se moldam através daquilo que experienciamos. Com isto, não quero dizer que somos todos literalmente iguais. É óbvio que existem diferenças entre homens e mulheres, biológicas sobretudo. Não domino essa parte para dissertar sobre ela, mas parece-me claro que essas diferenças existem. Considero é que, se quisermos ultrapassar essas barreiras, devemos poder fazê-lo (como parece que acontece na Suécia, já lá vou).

      No entanto, elas não podem ser uma base para que existam cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Concordamos que forçar algo por si só não resolve o problema de fundo e concordamos também que a mudança provocada pelas quotas é cosmética – o penso rápido de que falava – e que esta diferenciação nasce do capitalismo dominante. Esse aliás é o problema geral, o facto de o dinheiro estar, de uma forma mais ou menos óbvia, na raiz de tudo.

      Quanto às questão da gravidez, tem pano para mangas. Sou sensível ao argumento de que as pequenas empresas se podem ver numa situação bicuda se uma funcionária se tiver de ausentar por questões de gravidez. No entanto, devem ser criados mecanismos para mitigar essas situações, quer por partilha de licenças parentais, quer por apoios, quer por soluções de compromisso entre entidade patronal e funcionária. Não me parece é que uma mulher capaz, que seja a melhor pessoa para determinada função, deva ser barrada na origem por ser mulher ou por ter determinadas situações associadas a ser mulher. Acho que as coisas devem ser resolvidas com equilíbrio, sem radicalismos.

      Falou também da Suécia, onde, ao que parece, quanto mais liberdade foi dada e quanto mais igualdade foi criada, mais a disparidade na escolha de profissões se acentuou (quero, aliás, em breve, aprofundar essa questão que me parece fascinante. Apenas li por alto). Mas, a ser essa a realidade dos factos, parece-me a solução ideal. A liberdade de escolha é total, a discriminação reduz-se e a diferenciação parte do indivíduo e não de um sistema corrompido.

      Termino dizendo que voltamos a concordar na forma equilibrada e “suave” com que estes (e outros) assuntos devem ser pensados e discutidos. Afinal, é a conversar que a gente se entende.

      Um abraço e um bom ano.

      • Filipe Bastos says:

        César, obrigado também pela resposta e bom ano.

        A questão está justamente nos “mecanismos para mitigar essas situações”, i.e. para atenuar a desigualdade entre pessoas, empresas, classes sociais, países.

        Tudo, absolutamente tudo vai dar ao dinheiro. É esta a grande, a verdadeira divisão do mundo: não entre homens e mulheres, pretos e brancos, heteros e gays, cristãos e outros quaisquer. É a riqueza. O dinheiro.

        E como quem manda sabe disto, passamos a vida a ouvir e ler sobre tudo o resto: homens e mulheres, pretos e brancos, heteros e gays, cristãos e outros quaisquer. Não a riqueza, não o dinheiro. O que importa permanece intocável.

        • Paulo Marques says:

          Alguém como o Filipe, que se queixa de ser sempre chamado disto e daquilo, devia estar numa posição fácil para imaginar o que seria se isso definisse a vida de algumas pessoas muito para além de quando opinam; das oportunidades de emprego ao atendimento nas lojas, da credibilidade atribuida pelos médicos à atenção especial dos colegas e superiores, da atenção só por estar em público, etc, etc. Já experimentou?
          O dinheiro vem a seguir à sobrevivência, e se o primeiro tem bastante impacto na segunda, falta o resto. Pela própria classe.

        • César Alves says:

          Filipe, certo. O dinheiro é sempre a raiz. Aliás, alguma esquerda (lamentavelmente) parece por vezes esquecer-se que acima de todas estas questões identitárias está a classe social. Não tenho dúvidas que essa é a discriminação mais pesada e mais estrutural de todas. Nisso estamos de acordo.

          Não pode é servir esse facto para desvalorizar de algum modo as outras questões. É importante é focar o essencial, sem considerar o não essencial irrelevante.

          Um abraço.

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