O bom senso ficou em casa – e nunca mais saiu

Terça-feira dia dezasseis de março de dois mil e vinte e um – segundo dia do início do desconfinamento gradual – saio à rua para manutenção da minha saúde física e mental. Fazendo-me acompanhar da “nova” peça de indumentária facial que permite proteger-me a mim e a terceiros do “bicho”, bem como manter um certo anonimato, sigo a minha caminhada acompanhada pela sombra de um certo sentimento de culpa por cada metro que me distanciava do meu lar. Sentimento esse alimentado pelo apertado policiamento que muitas vezes presenciei através da minha janela, onde os meus jovens vizinhos cometeram repetidas vezes o vil crime de se sentarem nos bancos de jardim. Felizmente, durante o fim de semana fomos presenteados pela boa notícia – escrita em letras garrafais em rodapé durante o telejornal – que o usufruto dessa peça de mobiliário público já está outra vez disponível para exercer a sua função de forma legal. Haja boas novas!

Depois de zigezaguear por entre as ruas até à marginal, apercebo-me que um largo troço da mesma deverá de estar ainda (só pode) encharcada de vírus, o que obriga a quem pretende esticar um pouco as pernas e arejar a mente a restringir-se ao passeio de dois metros de largura do lado oposto, naturalmente forçando cruzamentos com estranhos onde a distância de segurança não é passível de ser respeitada. Sigo o meu caminho acompanhada pela minha (as)sombra, cujo tamanho aumenta um pouco sempre que um atleta se cruza comigo sem se fazer acompanhar pelo trapo que me obriga a deixar os óculos em casa (para poder apreciar devidamente todos os tons de côr do pôr do sol sem ser através da condensação).

Há três/quatro dias atrás, vimos imagens do nosso Presidente da República em visita ao Vaticano. Nas imagens que acompanhavam as notícias online, o respeito pela distância de segurança pelos dois principais intervenientes não foi respeitado, bem como o uso da máscara. Consigo apenas deduzir que a forte presença de Deus será o suficiente para eliminar qualquer risco de contágio durante o encontro.

Pondero trocar o uso da máscara pelo uso de um terço – talvez assim possa sentir o cheiro do mar de forma igualmente segura como o rosto aliviado de ambos transmite nas imagens. A julgar pelo à vontade da linguagem corporal, consigo apenas concluir que não se fazem acompanhar pelo mesmo assombramento que todos os dias levo comigo para os passeios higiénicos. Talvez precise mais de um exorcismo para afugentar estes pequenos demónios que teimam em azucrinar a minha saúde mental cada vez que saio de casa.

Se vedar uma longa parte de uma marginal (e não consigo imaginar zona mais arejada e com menor risco de contágio) é considerada uma medida de saúde pública que (aparentemente, para alguém) faz sentido quando já é obrigatório o uso de máscara na rua, pergunto-me se não fará mais sentido tornar obrigatório que não se ande de sapatos em casa. Imagino eu, num devaneio, que mais rapidamente trago para casa na ranhura das sapatilhas restos de um espirro ou escarro alheio quiçá contaminado.

Talvez por entre tantos mitos, lendas e histórias que a minha cidade guarda venha ainda a descobrir que são aqueles 1500 metros de marginal o principal foco de contágio local desta pandemia. Até lá, creio que vou aproveitar o regresso das missas em espaços fechados, onde a acumulação de pessoas (mesmo usando a máscara) é pelos vistos mais seguro do que o banco do jardim.

Comments

  1. Filipe Bastos says:

    Bem dito, Ana Reis.

    São os exageros, incongruências, pequenas e grandes loucuras duma classe política com demasiado poder e pouco a nenhum escrutínio. Aqui e ali são criticados, mas na prática nada muda: continuam a fazer como que lhes dá na gana.

    Também já vi polícias na marginal, perto de Oeiras, a mandar as pessoas embora. Ridículo. Triste. Canalha.

    Sabe a quem nunca acontece estas coisas? Aos pulhas que nos desgovernam. É como as loucuras rodoviárias, as autoestradas lá-vai-um, as faixas de bicicletas lá-vai-nenhuma, todas as manias importadas e impingidas a cidadãos e contribuintes que jamais a pediram. É assim a partidocracia.

    • Paulo Marques says:

      Deviam-se fazer comissões de cidadãos regadas a leitão, mas antes tinham que se reunir para decidir a que restaurante ir.

    • Filipe Bastos says:

      Deixar cidadãos decidir?! Está doido ou quê?

      Claro que não: só pulhíticos podem e devem decidir. Deixemos tudo como está. Tem corrido tão bem…

      • Paulo Marques says:

        Então não tẽm decidido continuar a ir a festas e restaurantes em nome da liberdade de comer um bom bife?

      • Filipe Bastos says:

        A sério? Após apenas um ano de confinamento, querem sair de casa? Que acha: devemos prendê-los ou executá-los?

        E aos que querem ir caminhar à marginal? Umas boas chibatadas, para aprenderem a respeitar o governo?

        Na China é que não têm estes problemas… que inveja!

  2. Paulo Marques says:

    O ocidente nunca quis gerir a pandemia como uma ameaça à saúde pública, preferiu aplicar o seu modelo de laissez Faire individualista e tocar nas margens, ir massajando a resposta de acordo com as necessidades dos DDT.
    Só podia correr mal, e gerir os comportamentos invés da doença e esperar por soluções tecnológicas só pode dar em arbitrariedades. Mas se achava melhor que cada um fizesse o que lhe apetece dentro de regras bem definidas, não tem prestado atenção à quantidade de quebra de regras, quanto mais xico-espertice.

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