Quando o mentiroso é ideológico

«No dia das mentiras, no esquerda.net foi lançado um artigo fiel à identidade do Bloco. O texto é de Bruno Maia, médico neurologista. Também é ativista, claro está. O que podemos ler neste texto é mais uma mentira e uma tentativa de colar os liberais a regimes ditatoriais.»

No preâmbulo do seu último artigo aventaresco, o meu colega Francisco Figueiredo decidiu ir pelo caminho da lama. Tendo o Francisco, como bom liberal que é, uns Stan Smith brancos calçados, desaconselharia o caminho lamacento, envolto em pó e poeira, pelo qual os liberais tanto gostam de caminhar. Desaconselho, por duas razões:

1 – O liberal Francisco Figueiredo não entendeu o texto que leu;

2 – Ao não o entender, mesmo assim, sentiu-se tocado pelas “mentiras de sempre sobre liberais”, cito, e, por tal, enfureceu-se escrevendo um rol de disparates ideologicamente mentirosos.

Vamos a factos. No seu artigo, lançado no primeiro dia de Abril, Bruno Maia, médico neurologista, intitulado “A ideologia liberal é antiga”, faz uma analogia entre o que hoje defendem os neo-liberais para a saúde (e basta consultar programas dos partidos para o aferir) e o que defendia e praticava o Estado Novo. O que defende, então, o Iniciativa Liberal para a saúde? Queremos mais liberdade para decidir onde queremos ser tratados.”: é o mote do partido para a sua defesa do reforço dos privados e o enfraquecimento do Serviço Nacional de Saúde; diga-se, é essa a proposta do IL: reforçar o capital, aumentar os custos e deixar morrer, aos poucos o SNS, mantendo-o magro e em serviços mínimos (sim, os Mr. Burns da política dir-vos-ão que não, que o objectivo será manter um SNS de serviços mínimos que garanta aos pobres o seu acesso e, por outro lado, dar mais autonomia aos privados – aqui, dir-vos-ão que o objectivo é que mais gente tenha acesso ao privado). Dado o mote, o partido discorre meia dúzia de medidas que acha necessárias para alavancar a saúde que defendem. Passo a enunciar um par delas:

  • «O reconhecimento e promoção da “função social das empresas”, atribuindo isenções a empresas com subsistemas de saúde ou sistemas de seguro de saúde.»
  • «O alargamento de uma ADSE reformada, como um sistema de seguro social, em que a pessoa pode escolher onde quer ser tratada, seja na rede hospitalar do Estado ou em privados que adiram ao sistema.»

O primeiro ponto é directo e diz logo ao que vem: isentar empresas (tais como a Santa Casa da Misericórdia) privadas que prestem cuidados de saúde, assim como as que prestam serviços de seguros de saúde (como, por exemplo, a Médis). Todos sabemos que empresas do género têm pouco lucro, logo, fica claro, o IL está do lado do lucro, na saúde e na doença. Já o segundo ponto, por seu turno, é mais complexo. Troquemos então por miúdos: quer o IL que a saúde e o acesso a ela por parte dos cidadãos seja feita através de um seguro de saúde (isto, depois de privatizados os hospitais, na sua generalidade – que o IL omite do seu programa de forma taxativa, mas que se lê nas entrelinhas). Nada de novo, portanto: funcionam assim os países que seguem a linha neo-liberal, sendo os Estados Unidos da América o pináculo do ideal que o Francisco Figueiredo caracteriza de “mentira”. Está tudo no programa do IL.

Mas o que ofendeu, de facto, o meu colega aventador, não foi, nota-se, a exposição do programa do IL para a saúde. O que lhe falou ao coração e o deixou sangrento, foi a comparação do programa do IL para a saúde com a acção de António de Oliveira Salazar durante o Estado Novo, na mesma área. O que acontecia em termos de saúde pública nessa época? Vamos, mais uma vez, a factos. Tal como o IL, Salazar defendia que um sistema universal de saúde seria “ineficaz” e, como tal, a saúde devia estar concentrada nas mãos das instituições privadas. E assim era. Refere Bruno Maia no seu texto, no Esquerda.net, o seguinte: “Sobre os resultados desta orientação ideológica da “saúde entregue aos privados”, são conhecidos os números: em 1970, depois de mais de 40 anos de ditadura, morriam 26.860 crianças com menos de 4 anos, uma das maiores taxas de mortalidade infantil de todo o mundo”. Os dados estão publicados, são tal qual são enunciados pelo neurologista, e podem ser consultados por todos, por exemplo, na coleccção da Círculo de Leitores “História de Portugal – o Estado Novo”.

O Francisco Figueiredo refere no seu texto que “(ou) passa a ser proibida a iniciativa privada na saúde, o que levará a uma deterioração clara do setor; ou continuamos a ter este sistema de público para pobres e privado para ricos” (sic). Ou seja, considera o Francisco que, neste momento, os privados não são valorizados e que vigora um sistema público para pobres, enquanto o sistema privado é para os ricos. A falácia é óbvia: quantas vezes foi o Francisco ao serviço público de saúde e quantas vezes foi ao privado? Isto tendo por base que o Francisco não é pobrezinho, respondo, agora, por mim: 90% das vezes que recorri a serviços de saúde, foi no público. Dica: também não sou pobre. E a mentira, evidente: não vigora nenhum sistema público para pobres e outro para ricos, por um simples facto: pobres ou ricos, todos preferem, na generalidade, um serviço público gratuito que garanta a saúde dos cidadãos. E prova de que os ricos não gostam de pagar e preferem borlas, é a proposta do IL de isentar essas empresas de obrigações fiscais. Quando muito, o serviço que é para ricos, é para os muito ricos, porque a classe média até lá vai, de vez em quando, até os privados mostrarem realmente a sua função.

Portugal viveu décadas prostrado na lei fascista, liberal à sua maneira, que garantia zero condições aos cidadãos, quer na saúde, quer na educação. Não quererão, agora, os portugueses, pagar a peso de diamante a sua sobrevivência, em privados que, num Governo do IL, não pagariam as suas obrigações fiscais e onde quem não tivesse meios, perderia o acesso – sim, porque nem o SNS de serviços mínimos, que é visão liberal, seria capaz de salvar quem quer que fosse, nessa selvajaria entregue ao capital, num país a saque dos grandes senhores. Mas o meu colega aventador defende que todos, sem excepção, devem poder escolher entre público e privado. Sendo o Francisco contra a ideia de salário mínimo, faço uma última pergunta: sem alavancar salários e reforçar os direitos dos trabalhadores, como implementar um sistema que, para já, só beneficiaria os srs. patrões?

Ao Francisco Figueiredo uma palavra, por fim: não te exaltes com evidências históricas, sejam elas as ligações dos liberais e dos neo-liberais a regimes ditatoriais, seja o facto de os liberais e neo-liberais estarem do lado do capital e não do lado das pessoas; e muito menos apontes o dedo ao Bloco de Esquerda por, pela mão de um dos seus militantes, ter constatado a evidência que todos nós, os minimamente atentos, já tínhamos adquirido como certa.

E termino: enquanto se perpetua este ódio ao sector público e aos seus defensores, há pessoas que continuam em fila de espera, sem que o SNS seja reforçado e os seus profissionais ressarcidos justamente, e a direita decide que o lucro é mais importante do que a vida das pessoas. O Iniciativa Liberal aceita isso.

Comments

  1. Luís Lavoura says:

    Pá, já temos o balho armado neste blogue: a (grande) tendência BE a atirar-se à (pequena) tendência IL. Isto não vai ser bonito de ver… Aposto que a tendência (muito) mais pequena vai acabar expulsa do blogue.

    • Rui Naldinho says:

      Acha mesmo que sim?
      Eu ia jurar que não.
      E o FC Porto carago?
      Este blogue é um ” antro” de Portistas. A política é apenas um sucedâneo da bola. Mas há algumas minorias “étnicas”, futebolisticamente falando, que por norma só entram em cena para picar os outros.
      Order! Oorder!

      • dragartomaspouco says:

        Farinha do mesmo saco, claro

      • Cláudia Rocha says:

        Só que a isenção não é para empresas prestadoras de serviços de saúde, é para empresas de qualquer ramo que proporcionem (e muito bem) seguros de saúde aos seus funcionários, o que lhes permite maior flexibilidade e escolha e atendimento mais rápido. Porque quem trabalha não tem vida para esperar dois anos por uma consulta de oftalmologia que obriga a estar semanas à espera de uma consulta do médico de clínica geral para obter uma credencial.

        • João L Maio says:

          Cláudia,

          Se isso estivesse especificado no programa do partido…
          O programa não se manifesta nesse sentido.

    • POIS! says:

      Pois, mas não se vai ficar por aí!

      Os da IL irão todos parar aos campos de trabalho instalados secretamente pela geringonça, onde passarão o dia a ouvir em altos berros as cartas de Hayeck de elogio aos ditadores com as canções de Dino Meira como música de fundo. Vai ser terrível!

      Mas atenção: vão poder liberalmente escolher que trabalho preferem. As opções são carregar ás costas pedras de 50 Kg, puxar vagões de 5 toneladas ou colocar no corpo 30 sanguessugas marxistas amestradas.

    • João L Maio says:

      Nada disso, Luís.

      São apenas discordâncias.
      Aqui, quem sai, fá-lo pelo próprio pé, não por imposição.

      A discussão e o debate são saudáveis, mesmo que o debate com neo-liberais seja desgastante e repetitivo.

      • POIS! says:

        Pois, era desgastante porque não se vislumbrava nada de concreto que defendessem.

        Mas agora já se sabe que não querem privatizar o exército nem nacionalizar os cabeleireiros.

        Foi um avanço colossal! Já se pode começar a discutir qualquer coisa.

    • António Fernando Nabais says:

      O Luís Lavoura tem sonhos molhados com purgas no Aventar. O Francisco Figueiredo e o João Maio são dois senhores em trincheiras opostas e não passa pela cabeça de nenhum deles tentar expulsar o outro por discordarem.

    • Paulo Marques says:

      Pequena tendência da IL? Passos e Barroso fizeram o quê, socialismo?

      • João L Maio says:

        Paulo,

        Não se esqueça que está a falar com pessoas que acham que PS e PSD são socialistas.

        Falam de mentiras e asneiras, odeiam o PREC, mas ficaram presos à época: para eles, o PS e o PSD de ontem, que já não eram nem socialistas, nem social-democratas, são iguais ao PS e ao PSD de hoje, tão socialistas e social-democratas como dantes.

        • abaixoapadralhada says:

          Chamar Social Democrata a um partido que mais não é que o resultado das excrecencias liberocas de alguns senhores que estavam no Partido do Marcelo Caetano, é no mínimo um insulto para os partidos Sociais Democratas da Suécia, Alemanha etc.

          São apenas o Partido de Marcelo Caetano devidamente recauchutado após o 25 de Abril de 74

          Haja respeito pela Social Democracia

          • João L Maio says:

            abaixoapadralhada,

            Respeito pela social-democracia é coisa que não prolifera, do lado dos ventos liberais.

            Hoje, até dizem, sem vergonha nem pudor, que a social-democracia é ideário de direita, sem atenderem à História e à efectiva realidade das coisas.

            É a mesma estirpe de gente que considera socialista o Estado nazi, só porque o partido se chamava “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Falta de vergonha na cara, parece-me.

          • abaixoapadralhada says:

            Honra seja feita a Sá Carneiro, que vindo também do Marcelismo, teve a decência de não chamar Partido Social Democrata ao partido que fundou.

  2. JgMenos says:

    Sempre me entusiasma quando vejo recordadas políticas e estatísticas de há mais de cinquenta anos, quando o orçamento da defesa comia 50% de uma receita do Estado que correspondia a menos do que hoje seriam 50 mil milhões de euros, metade do que é hoje a despesa pública!

    • João L Maio says:

      Que o Menos tem problemas com a realidade Histórica, todos sabemos. Como tal, ignora os factos e junta-lhes outros factos, não menos factos, mas que não vêm ao caso.

      Típico dos que pensam de menos, o Menos.

    • POIS! says:

      Pois pois! Ou seja:

      Havia despesa de sobra para “tratar da saúde” aos africanos das colónias. E depois faltava orçamento para dar saúde aos de cá.

      E admira-se V. Exa. (como frequentemente perora) que ninguém estivesse interessado em defender “o ultramar” depois da Revolução?

      A Era Salazaresca, realmente, era uma coisa maravilhosa.

      • JgMenos says:

        Só os Observatórios, Comissões e Similares pagavam a guerra ganha de Angola, que sempre crescia, tratava da saúde aos angolanos, e é hoje palco de miséria.
        Mas com a ralé esquerdalha no poder aconteceu o que havia a esperar.

        • João L Maio says:

          “Mas com a ralé esquerdalha no poder aconteceu o que havia a esperar.”

          Aconteceu democracia. Não é isso que tanto abomina, ó sô Menos saudosista?

        • POIS! says:

          Pois não nos diga!

          Que a guerra de Angola se ganhava com dinheiro!

          Eu julgava que era preciso gente que estivesse mesmo convencida que aquilo “era nosso” e quisesse combater! E sacrificar-se para isso! E havia? O tanas!

          Essa é que é a verdade, Alteza Salazaresca!

          • JgMenos says:

            Quando a ralé sobe ao poder, pois…

          • POIS! says:

            Pois qual “ralé”!

            Antes, muito antes. Ninguém reconhecia aquilo como “seu”. Os “colonos” eram até cada vez mais mal vistos quando se vinham gabar da “boa vidinha” que por lá levavam! Por aqui, saia-se do “combate” para a miséria em muitas situações!

            As elites eram muito “patriotas” mas os filhinhos livravam-se daquilo a sete pés!

            Essa é que é a verdade, Alteza Salazaresca!

        • Paulo Marques says:

          Pois. E qual é a desculpa do botas para a derrota com todo o ouro que guardou na gaveta?

  3. Retirando da mesa toda a conversa da treta, subjaz o ponto principal: a única coisa que os liberais querem é que os privados continuem a prosperar à conta do URSO, ou seja, de todos nós, mamando à grande no erário, tal como fazem alguns colégios privados. Para esses, é só para isso que o Estado serve= conceder benesses à bela iniciativa privada.
    Vai lá vai….

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