Os traidores de 6 Abril e um outro abrilismo que também interessa

Com 45 anos de idade, sou e serei sempre grato ao 25 de Abril e a liberdade que daí resultou. Esse dia encheu de alegria a geração dos meus pais e avós e eu invejo-os por terem vivido esses dias, ainda jovens ou adultos. Este é o Abril deles.

Mas hoje o meu Abril é também outro. É sempre será.

“O Governo decidiu hoje mesmo dirigir à Comissão Europeia um pedido de assistência financeira”
A 6 de Abril de 2011, José Sócrates anunciava a capitulação do país.
A crise não foi causada por portugueses, isso é óbvio. Assim como é óbvio que não foram os mercados os responsáveis pela protecção a banqueiros como Salgado, Oliveira e Costa, Rendeiro ou Armando Vara. Ou Vitor Constâncio.

Durante décadas o país teve entregue a uma cáfila que lhe corroeu as bases através de um modelo de desenvolvimento mentiroso e criminoso. A crise do subprime colocou Portugal de frente para o espelho e fez imergir os custos dessa traição.
Perante o fim da ilusão, sobra-me uma conclusão óbvia, ponderada e ainda que algo inflamante, é algo em relação a qual eu nunca recuarei: as gerações mais jovens foram traídas.
Traição é a palavra. Traidores é o que são todos os que ali se fizeram representar naquele comunicado de Sócrates.

Durante décadas gastou-se descontroladamente, por vezes engordando vacas robustas para depois esmifrar o contribuinte quando este tentava sobreviver, trocando pão por migalhas.
Em 2011 trocaram-se migalhas por pão.
Em 2021 trocam-se migalhas por pão.
E são estes, os que trocam migalhas por pão, que se preparam para mais facturas de festins que já se anunciam com aeroportos, pontes, lítios e hidrogénios.

Um autêntico rodizio para a cáfila oportunista.
Porque esta é uma cáfila que inchou em cima de oportunismos. O crescimento passado do sector público, das empresas estatais, da expansão da banca e de algum sector privado protegido de concorrência, serviu para a cáfila se instalar e apoderar. Entre bons empregos, consultorias, fornecedores fantasma (PT e EDP acumularam centenas) e outras mordomias, a cáfila enxameou e parasitou uma boa parte da economia nacional.

Um dia, a cáfila percebeu que tinha aumentado através de filhos (quantos políticos não têm os seus rebentos na PT, EDP e GALP), jotas, noras de autarcas, políticos no desemprego ou funcionários fiéis e merecedores de prémios.
Com as marés de fundos europeus, a cáfila viu a oportunidade e comeu o bolo através de quilómetros de autoestradas, pavilhões, rotundas e toda uma miríade de obras com que a cáfila se banhou com Bruxelas e os seus fundos. Entretanto, a cáfila foi ignorando a destruição da marinha mercante, de parte da agricultura, dos portos e outras sectores que seriam viáveis através de modernização e promoção.
E fizeram-no porque a questão não era de ideologia ou visão de futuro.
Não questiono p.e. a construção da A1, mas sim o modelo ruinoso e desonesto. O resultado é de tal forma escabroso que temos SCUTs que o utilizador paga ou a concessão com portagens de uma ponte inaugurada na década de sessenta, mas que os portugueses ainda pagam como contribuintes e utilizadores. Esta merda nem inventado.

A Educação é outro exemplo de que a traição não se limitou ao esbulho financeiro. Durante décadas vi muitos seguirem cursos de Direito e hoje conto pelos dedos os que são advogados e com uma carreira decente. O mesmo se aplica a outros cursos como engenharia e enfermagem.
Na formação profissional, uma área vital em qualquer democracia, salvo algumas excepções, a cáfila só a quer para sacar fundos e fazer proliferar cursos de retrosaria ou aberrações inqualificáveis como cursos de Gestão da Qualidade de 60 horas. Educação sem visão é só um outro exemplo de como se traíram gerações inteiras.

Não tenho dúvidas que os houveram honestos e cientes da nobreza do serviço público. Arrisco dizer que Mariano Gago ou Álvaro Santos Pereira serão exemplos disso. Talvez.
Mas as excepções não contam.
O que conta é Cavaco rodeado por Dias Loureiro, Ferreira do Amaral, Duarte Lima ou Oliveira e Costa.
O que conta é Guterres rodeado de Armando Vara, Sócrates ou António Costa.
Alguns afirmam que Guterres era pessoa honesta (outros dizem o mesmo de Cavaco). Estou-me a borrifar. Podem ser muito honestos no seu IRS, mas patrocinaram a maior geração de corruptos desde que Portugal saiu do salazarismo e entrou nesse projecto de um dia se transformar numa democracia séria.
Era pessoa honesta? Ora bem, se uma freira comandar um conjunto de putas, isso não transforma um bordel num convento.

Que fique claro que não há aqui nenhum apelo ao confronto geracional. Quem o fizer estará a deturpar estas palavras e a juntar-se a alguma criançada que polula nas redes sociais e dispara “Ok boomer” como forma de desprezo pela opinião de qualquer pessoa com brancas no cabelo. Tão pouco acredito que a minha geração é um garante de honestidade. Os negócios do lítio e do hidrogénio envolvem um alto dirigente do governo que não deverá ser mais velho que eu. E isto é só um exemplo.
Alguns bem novos andam de braço dado com os escolhos da cáfila que elabora um plano de resiliência (não vale rir). Um plano vendido com frases feitas como transição digital, transição verde e outros jargões importados de Silicon Valley ou do Twitter da Greta Thunberg.

Não se riam, mas a cáfila que criou um país cuja economia colapsa após meia dúzia de meses sem turistas é a mesma que vai criar uma resiliência para as próximas décadas.
A cáfila que acena com cenas verdes e digitais, tem apenas olhos para o rodizio dos aeroportos, pontes, lítios e hidrogénios.

Era ainda criança, mas lembro-me vagamente da crise de 1983/85 e dos salários em atraso, fome e muita miséria. O país saiu dessa crise, cresceu e eu acreditei que teria uma vida melhor que os mais velhos e pior do que as que me seguiram. Era afinal de contas a ordem natural das coisas. Mal sabia eu o que cáfila preparava.
A verdade é que tudo rebentou em 2011 e hoje posso dizer que vivi melhor entre os meus vinte e os trinta anos do que aqueles que hoje têm a mesma idade.

É tempo de olhar isto de frente. Sem revanchismos, sem sede de sangue nem de revolução porque a evolução não virá daí. É também imperativo deixar as querelas ideológicas para o seu devido contexto. Por estes dias essas questões são quase todas patéticas e servem apenas para cravar trincheiras entre os que contam migalhas e pensam que o vizinho tem a dispensa cheia de pão.

Perante uma nova crise cujas consequências ainda estão a romper o verniz, é hora de entender que quem fragilizou o país desta forma, não o guiará para melhor futuro.
A origem das crises até pode ser externa, mas a incapacidade de as aguentar e estar no pelotão da frente na hora da recuperação, essa culpa é toda desta cáfila e de quem a alimenta.

Mas se queremos que Portugal seja dentro de dez anos (antes disso esqueçam) um país mais digno, com boas perspectivas para as nossas reformas e futuro dos mais novos, então há muito a fazer, começando por algo para mim inevitável, falo em lembrar os traidores que levaram o país a 6 de Abril de 2011.

Na foto do jornal “O Público” vemos José Sócrates, para mim um dos maiores crápulas de sempre. A seu lado, Fernando Teixeira dos Santos, ministro das Finanças e o homem que promoveu o primeiro empréstimo de 750 milhões de euros ao BPN. O ministro garantiu que o contribuinte seria totalmente ressarcido e sem perdas. O BPN acabou por queimar 6200 milhões, sendo depois vendido por 40 milhões de euros ao Eurobic, cujo administrador se chama Teixeira dos Santos.

É imperativo que a cáfila traidora de 6 de Abril de 2011 não possa a sair a rua na mesma impunidade com que Oliveira e Costa do BPN se passeou pelo Chiado antes de morrer, infelizmente, em liberdade.
Só fazendo as pazes com a história recente é que os portugueses poderão pensar em reconstruir algo de novo, mesmo sabendo que tal não livra o país das facturas do passado.

Porque por muito que custe, é preciso aceitá-lo: Os traidores que subiram ao palanque a 6 de Abril de 2011 deixaram um calote para pagar durante todo o resto das nossas vidas.

 

Sócrates e Teixeira dos Santos

Comments

  1. Paulo Marques says:

    A ver se nos entendemos, as contas certas desde 2011 são dinheiro que não entra na economia privada num país obrigatoriamente importador, não só por opção, mas por obrigações institucionais. Obrigações essas que ainda mais obrigaram a destruir produção, a importar mais, a fragilizar com aposta com serviços em turismo (e pasteis de nata e latas de sardinhas), a não fiscalização da banca (que poderia ou não ter sido feita sem elas, nunca se saberá) e a aposta, passada e futura, nos tais projectos grandiosos (que recebem o financiamento que deixa de estar disponível, não que fosse usado correctamente com tanta regra, para o restante).
    Por isso, não, não vamos viver melhor, nem depende sequer de nós. Por muito que, como os países mais ricos, não nos livremos de corruptos e maus decisores (obrigados a acreditar que a patetice do parágrafo anterior funciona).

    • Paulo Franzini says:

      pensei que era pessimista, mas vejo-o bem mais que eu. E o pior é que se calhar tem razão.

  2. JgMenos says:

    «A crise não foi causada por portugueses, isso é óbvio.»

    É óbvio que isto de viver endividado é o que há de mais natural, de facto é mesmo patriótico e a bem do progresso e do ambiente …e do mais que me sobram umas tantas palavras.

    • POIS! says:

      Pois pois! E no fim…

      Um país endividado consegue financiar-se a 30 anos a taxa negativa. Não é estranho????

      Estamos em plena crise económica com impacto superior à Grande Depressão de 1929 e as bolsas…continuam a subir! Não é estranho????

      Um dos países mais endividados do mundo vai lançar um plano de triliões de construção e recuperação de infraestruturas públicas. Não é estranho????

      Atenção! Estrei a ouvir a resposta?

      Zing! Klang! Compt! Kabum! Pum! Tzang!

      Que barulho, meu deus! É lancinante! A cabeça de JgMenos a desconjuntar!

      • JgMenos says:

        És um triste!
        Como era mesmo o nome do comandante da nossa esquadra no Pacífico?

        • Filipe Bastos says:

          As questões do POIS fazem sentido, Jg.

          Sei que a sua religião não o permite, mas tente pensar um bocadinho. Tente pensar nisto das dívidas, no que é o dinheiro, como é criado, de onde vem, para onde vai…

          Aventure-se. Arrisque. Ao início dói também um bocadinho, mas vai ver que vale a pena.

        • POIS! says:

          Pois V. Exa. está com alzheimer, ou pior!

          Então não era o Almirante Américo Deus Rodrigues Tomás?

          Era um intrépido! Uma vez até o vi sair diretamente de um submarino para cortar a fita de inauguração de um liceu!

          Foi na Covilhã mas, nessa altura, o Zêzere era navegável. Passou por lá na volta de uma missão secreta no Congo, de apoio aos nossos pesadíssimos porta-aviões.

          O liceu já funcionava há cinco anos, mas a tesoura era nova.

    • Paulo Marques says:

      Não me diga, quer regular o crédito privado e privar os nossos doutos empresários de clientes?

    • Paulo Franzini says:

      Jg,
      Entendo o que diz, mas eu não comparo a irresponsabilidade de alguns cidadãos ao que aqui falo.

  3. JgMenos says:

    isso de irresponsabilizar os votantes por darem suporte aos treteiros que em final são os únicos responsáveis é a negação da democracia.
    Quem não sabia da necessidade de não povoar o país de advogados e sociólogos e psicólogos?
    Quem não sabia que havia de distribuir-se a produção e não o capital obtido por empréstimo?

    Votaram e votam nos treteiros; que paguem por isso.

    • POIS! says:

      Pois tá bem!

      Um salazaresco, confesso votante no Venturoso Enviado, a falar de “treteiros”! Confere!

    • Paulo Marques says:

      Não me diga, quer distribuir a produção de comida, cama, e tecto aos portugueses, presumivelmente com pleno emprego, para cumprir a constituição?

  4. Júlio Rolo Santos says:

    Carradas de razão mas continuamos no país dos comilões, como sair disto?

    • Paulo Franzini says:

      não sei se algum dia se sairá. Começar por censurar esta gente é um caminho, mas não há nenhuma solução fácil. Acho que Portugal vai ter uns 10 anos muito duros pela frente.

  5. Filipe Bastos says:

    Tem o Paulo Franzini carradas e carradas de razão. Paletes. Mais contentores que o barco que encalhou.

    Mas pergunta bem o Júlio Santos: como sair disto? O país não mudou. A ‘democracia’, os partidos, os políticos também não.

    O governo, pasme-se, até é outra vez PS. Com muitas das figuras e figurinhas do tempo do Trafulha 44, a começar pelo PM. É como ter o congresso de Matosinhos em repeat.

    A Banca, a EDP, todos os grandes mamões, incluindo construtoras e escritórios de advogados, continuam donos disto tudo. Fazem o que querem, mamam quanto querem.

    Na política as únicas novidades são o Chega e a IL. Ambos mais do mesmo ou pior: demagogia e lambe-cus de mamões. (A IL pelo menos lambe-os abertamente.)

    O único caminho possível é deixar de delegar tudo nesta canalha: uma democracia mais directa. Mas muito poucos a consideram. A partidocracia lavou-lhes o cérebro.

    Então que fazer? Não havendo outro remédio, pelo menos o que diz o Franzini: meter medo à canalha. “É imperativo que a cáfila traidora não possa sair à rua na mesma impunidade”.

    Temos de malhar nesta canalha. Temos de vigiá-la. Controlar tudo o que fazem. Convençam-se: ninguém o fará por nós.

  6. Júlio Rolo Santos says:

    Mais ação precisa-se mas não se vê movimento para isso.

  7. J. Freitas A. says:

    “Não tenho dúvidas que os houveram honestos e cientes”
    Este erro gramatical é dos que mais me irritam. Não aguento, isto é muito pior que o Acordo Ortográfico. Uff!

    • Paulo Franzini says:

      troco bastantes vezes o houve por houveram. Vou tentar não repetir e agradeço a chamada de atenção. 🙂

  8. Abel Barreto says:

    “Temos de malhar nesta canalha. Temos de vigiá-la. Controlar tudo o que fazem. Convençam-se: ninguém o fará por nós.”

    Mas sabendo que essa canalha não tem vergonha e sabe que qualquer acusação, por mais fundamentada que seja, nunca resultará em pena de prisão ou outra, o resultado ficará sempre aquém do desejado.

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