José Sócrates, democracia e o monopólio da promiscuidade

João Miguel Tavares, uma das vozes mediáticas que mais ferozmente tem esmiuçado e criticado José Sócrates ao longo dos (pelo menos) últimos 15 anos, no último Governo Sombra:

É fácil ser corrupto, é muito difícil provar a corrupção. Portanto eu acho que todos os indícios que estão na acusação são indícios muito sólidos, mas, de facto, a solidez esbarra em algo que é ainda mais sólido, que é a dificuldade de provar coisas em função daquilo que é a lei portuguesa no que diz respeito à corrupção. E isso é que é muito assustador.

Faço parte do grupo de pessoas que está absolutamente convicto que José Sócrates é culpado da maior parte dos crimes que lhe são imputados pelo Ministério Público. E só não digo todos porque não integro o amplo grupo de pessoas que leram as 6728 páginas da decisão instrutória de Ivo Rosa, nos 15 minutos que se seguiram à leitura do resumo pelo juiz do Ticão, depois de terem analisado a acusação ao mais ínfimo detalhe, para concluir que o Ministério Público fez um excelente trabalho e que a única explicação possível para o revoltante desfecho da instrução é o facto provado de que Ivo Rosa reside no bolso das moedas de José Sócrates. Ao contrário dessas pessoas, não tenho dados objectivos que me permitam saber se Ivo Rosa favoreceu deliberadamente José Sócrates. E acho formidável que se simplifique um problema destes, que é estrutural e está na raiz do regime, muito maior que a Operação Marquês, porque é preciso encontrar um bode expiatório instantâneo para direccionar a raiva das massas. Desta vez foi Ivo Rosa, noutras ocasiões foram advogados, procuradores ou outros magistrados. E enquanto se lincha o juíz, quem escapa em toda a linha abre garrafas de champanhe na Comporta, e já ninguém quer saber deles. Da parte que me toca, quero agradecer a Ivo Rosa por ter liberalizado e oficializado algo que já todos sabíamos mas que, finalmente, ouvimos da boca de um juíz: que José Sócrates é corrupto. E não será a prescrição do crime que alguma vez mudará isso. José Sócrates é corrupto.

Antes de prosseguir, questiono-me: será que, no entender destas pessoas, Ivo Rosa reside apenas no bolso das moedas de José Sócrates? Então e os 23 arguidos que nem a julgamento vão, entre os quais Henrique Granadeiro, Zeinal Bava, Joaquim Barroca, Hélder Bataglia, Rui Horta e Costa ou José Diogo Gaspar Ferreira, apenas para citar alguns dos nomes mais poderosos? Também têm o juiz no bolso ou terá sido o Sócrates a interceder por eles? Já agora, os juízes que decidiram sobre os casos Portucale, Casa Pia, BPN, Contrapartidas dos submarinos ou Vistos Gold, entre outros, estavam no bolso de quem? Provavelmente de ninguém. Provavelmente nem precisam. Porque isto não é um problema de um juiz ou de um procurador. É todo um sistema que está contaminado, desde a elaboração das leis até à sua aplicação, com toda a burocracia e morosidade que se lhes conhece. Do deputado a soldo do escritório pomposo até ao funcionário judicial que viola o segredo de justiça em favor de um político, de um órgão de comunicação social ou de um dirigente desportivo.

Adiante.

Na mesma semana em que se assinalaram 10 anos do dia em que se apresentou ao país para nos informar sobre o pedido de resgate financeiro, José Sócrates triunfou sobre a justiça portuguesa. Não que os crimes de que é acusado sejam propriamente uma multa por excesso de velocidade, e que, no limite, lhe poderão proporcionar uns 10 anos de prisão efectiva, mas a verdade é que, dos 31 crimes de que era acusado, Sócrates responderá apenas por seis, três de branqueamento de capitais, três de falsificação de documentos. É revoltante, deveria ser suficiente para nos fazer a todos sair à rua e é a radiografia perfeita do estado frágil e a resvalar para o terceiro-mundista em que se encontra a justiça portuguesa. E de um povo com medo, que ainda se verga reverencialmente perante qualquer senhor professor doutor engenheiro, por maior escroque que seja.

Até porque não foram só Sócrates, Salgado ou qualquer um dos manobradores da porta giratória da corrupção de Estado, sobre a qual assenta a velha aristocracia do bloco central, ladeada por pequenos vassalos, pajens e bobos, quem foi presente à justiça. Foi todo um país em estado vegetativo, incapaz de reagir ou de se indignar com situações destas como se indigna com o futebol, e que, com este desfecho, vê agravado o risco de sucumbir à raiva e alinhar com delírios ditos “iliberais”, enquanto alternativa que lhe permita linchar todos os corruptos, efectivos ou presumidos, e, pelo caminho, aproveitar o lanço para linchar mais umas quantas figuras incómodas por tabela. Sabemos como começa e, contrariamente ao lugar comum, também sabemos como acaba.

É muito fácil ignorar o verdadeiro problema, ou tentar diminuí-lo, promovendo a caça ao Ivo, alegando que a verdadeira ameaça não é este estado de coisas formal e moralmente corrupto, quando ele é precisamente a origem de todos os males que corroem este país nas mais variadas frentes, do atraso estrutural do país ao saque fiscal que nunca se traduziu em contrapartidas proporcionais. Até porque muitos dos indignados do momento mais não querem do que voltar a dispor desse monopólio. A própria ascensão da extrema-direita, fenómeno ao qual Portugal foi tardiamente exposto, é também um subproduto do lamaçal de compadrio e crime de colarinho branco do qual Portugal nunca saiu, porque sempre existiu, mas que apenas se tornou visível com a chegada da democracia. Nunca, em momento algum, Salazar e o seu regime teriam permitido que um alto funcionário de qualquer governo ou um grande empresário fosse sujeito à espada da justiça, a menos que se tivesse tornado incómodo para o próprio regime. Nunca.

No entanto, é importante não ignorar o perigo que representa esta aparente falência da justiça, e, consequentemente, do regime democrático, no futuro de todos nós. Porque se a origem do problema está bem sinalizada, e reside na promiscuidade que alimenta o centrão dos lugares, das negociatas, dos primos, das portas giratórias e dos aventais, devendo ser combatida sem contemplações ou cedências, tal não pode nem deve entorpecer os nossos sentidos perante a outra ameaça, daqueles que pretendem cavalgar esta promiscuidade, apesar de fazerem ou terem feito parte dela, para cancelar a democracia e substituí-la por uma alternativa sinistra e autoritária, que só augura trevas. Que, aliás, e como temos visto noutras latitudes, algumas aqui bem perto, se resume a transferir o monopólio da promiscuidade para uma nova rulling elite, com o adicional de suprimir formalmente a separação de poderes, concentrando todo o poder em meia-dúzia de puritanos, ocasionalmente apanhados em flagrante a fugir de uma orgia gay.

Mais do que nunca, é fundamental que todos os democratas sejam diligentes e dedicados na defesa da Democracia, do Estado de Direito e da República. Unidos, independentemente das suas convicções ideológicas. Capazes de se levantar, juntos, para combater o monopólio da promiscuidade, não só em Lisboa, mas nas mais minúscula das autarquias, porque muito do problema começa também aí. Que se alinhem contra o extremismo e a tentativa de abater as instituições democráticas. Porque, de hoje para amanhã, os demagogos da extrema-direita populista, que começam a ganhar espaço em partidos como o PSD, vão berrar que a justiça não existe e que é preciso um regime autoritário para repor a “ordem”. No fundo, um regresso à corrupção salazarista, da qual não se ouvia falar porque a ignorância era virtude e a PIDE não deixava.

Apesar de tudo, continuo a acreditar na democracia e no Estado de Direito, e não vou usar esta decisão, como não usei outras decisões antes desta, para me juntar ao coro que exige o derrube da democracia, como se alienar os nossos direitos civis fosse solução para um melhor funcionamento da justiça. Em regimes autoritários e totalitários, não existe justiça. Só a do mais forte. E eu não quero viver num regime cujo ditador é um autocrata oportunista, regurgitado pelo bloco central dos interesses. É tempo de defender a democracia liberal do monopólio da promiscuidade, esteja ele nas mãos de quem estiver. Nunca seremos livres, se não o fizermos.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    ” Apesar de tudo, continuo a acreditar na democracia e no Estado de Direito, e não vou usar esta decisão, como não usei outras decisões antes desta, para me juntar ao coro que exige o derrube da democracia, como se alienar os nossos direitos civis fosse solução para um melhor funcionamento da justiça.”

    Assino por baixo.

    Mas o Estado de Direito funcionou na sexta feira, acho eu!?
    Não há um Estado de Direito ao gosto de cada um, ou de uns quantos. Há sim grupos de pressão que pretendem subverter as regras do Estado de Direito, como aquela petição patética de querer afastar o juiz Ivo Rosa.
    Mas querem o quê? Um julgamento popular?

    • POIS! says:

      Mais uma vez!

      Apoiado! E também assino!

    • Paulo Marques says:

      Independentemente das prescrições, cujo argumento virá depois, e do IRS, que não percebo se é patetice ou foi incluído no RERT, gostava de saber onde está a alegada manipulação óbvia das datas trocadas, provas unicamente testemunhas, etc, enfim, o excelente trabalho que foi menosprezado. Porque provar já é mais fácil com o que alterou, não pode é ser retroactivo.
      E também não posso assinar porque a narrativa dos problemas nascerem e acabarem no engenheiro técnico de fim de semana acreditada por tão impoluta e inocente gente ser uma patetice de quem quer as migalhas do sistema para eles, como se as regras não fossem muito mais relevantes. Dispenso tal patriotismo de quem gosta de ser roubado por gente séria, desde que dê fora.
      Fora isso, nunca houve grandes dúvidas desde a única vez longínqua que comprei o jornal do arquitecto, a caminho de uma formação. Mas também não demorou muito a perceber que o que se queria julgar não era um homem ; aliás, que o julgamento era secundário, o importante era destruir a credibilidade do estado e das instituições para que tudo fosse entregue a quem se sabe gerir. Mas disso ninguém se queixa, paga cada vez mais por pior, descansado por o governo não mexer.

      • Paulo Marques says:

        (não era para o Rui, mas mobile sucks)

        Continuando… aliás, queixam-se é por o vizinho ter coisas. Paradigmático foi a autoritarismo do governo que em 24h passou a pedinchisse que obrigasse a usar máscara na esplanada, não tivéssemos que fechar outra vez – culpa do mesmo governo, claro.
        É a coerência que temos.

  2. Teresa Palmira Hoffbauer says:

    Publiquei este artigo no meu blogue e não sei se isso me é permitido.

    • Paulo Marques says:

      Cuidado; a mando de quem manda no país da sra Leyen, a violação de os direitos de autor é crime maior que corrupção. Entende-se.
      Mas duvido que o João se importe.

      • Teresa Palmira HOFFBAUER says:

        Claro que menciono o autor do artigo e o link do AVENTAR.

        A referência à Frau von der Leyen é desnecessária. Como não quero violar os direitos de autor perguntei IMEDIATAMENTE se me era permitido.

        • Paulo Marques says:

          O sarcasmo não era direccionado a si, só aos tempos em que estamos. Incluindo ao achar-se que estamos no fundo por causa disto.

  3. Teresa Palmira Hoffbauer says:
  4. Filipe Bastos says:

    E vocês a dar-lhe. Mas qual democracia, alminhas? Que estado de direito? Brincam ou são mesmo tapados?

    A democracia é poder rodar o tacho de anos a anos? Poder optar entre merda, mais merda e merda pior? Digam-me UMA política, uma medida que a população ou os contribuintes tenham decidido em 40 anos de ‘democracia’.

    Não vêem que absolutamente tudo é cozinhado entre estes gangues de chulos e trafulhas a soldo de mamões?

    Que ‘estado de direito’ poderia sair desta podridão? Leis à medida, juízes como o Ivo, processos que levam décadas, gestão criminosa do Estado, impunidade garantida. Ou viram outra coisa nestes 40 anos de ‘estado de direito’? Porra. Vejam se acordam.

  5. Ana Moreno says:

    “Capazes de se levantar, juntos, para combater o monopólio da promiscuidade, não só em Lisboa, mas nas mais minúscula das autarquias, porque muito do problema começa também aí.”
    Pelos vistos, tragicamente, não, não são capazes de se levantar. Continua o mesmo ramram. Algum protesto colectivo visível? Onde? Pois seria urgentemente necessário; não, são sensatas análises, é a captação da complexidade e a já longa existência dos problemas, é um muro de razões que impedem a exigência de mudança.
    Considero o dito partido abominável, nunca, jamais, em tempo algum, apoiaria. Só pergunto é qual é o caminho das forças democráticas para se mudar alguma coisa, porque esta paralisia em que se encontra está a entregar de bandeja o país à extrema-direita.

    • Rui Naldinho says:

      Bom dia, Ana

      Vai desculpar-me mas o Juiz Ivo Rosa tem toda a legitimidade para tomar as decisões que tomou, goste-se ou não, mesmo sabendo nós que Sócrates não passa de um corrupto e um mentiroso compulsivo.
      Aquilo que me choca, presumo que de igual forma à Ana, bem como a muitas pessoas anónimas, sem vínculos partidários, distantes de todas as máquinas políticas, é a passagem incólume destas pessoas, TODAS, não só algumas por nos serem politicamente próximas, numa espécie de aficionados de um qualquer clube de malfeitores, sem que a justiça os meta na cadeia, sem que ela não consiga reverter de novo para os cofres do Estado o produto do roubo.
      Estávamos em 2008 e faliu por alturas do mês de Novembro desse ano, um banco. Esse banco chamava-se BPN. Banco esse que custou aos contribuintes, até agora, 3,7 mil milhões de euros.
      O normal era ter-se levantado um coro de protestos contra os ladrões. Manifestações de rua, recheadas de indignados contra a falência de um banco, cuja nacionalização era obrigatória, apesar de alguns iluminados agora dizerem o contrário, para salvar o restante da banca deste país. Aliás, como se viu mais tarde. Banca essa que acabou toda salva, em parte ou na totalidade, pelos fundos de resgate. É bom não nos esquecermos disso.
      Contra todas as expectativas, o que aconteceu nos dias a seguir à falência do BPN e BPP, foi um coro de protestos, entrevistas e passa culpas contra o então ministro das finanças, Teixeira dos Santos e o Governador do Banco de Portugal. Ou seja, a culpa era dos polícias e não dos ladrões.
      Haja o mínimo de decoro!
      Qual a razão para tudo isto acontecer desta forma?
      Porque a máquina mediática está e sempre esteve montada para este efeito. Não vi na direita, com especial incidência para o PSD, tanta indignação com uma falência que nos deixou um buraco de 1,9% do PIB.
      Claro, estava lá toda a nata do Cavaquismo.
      Já depois disso, faliram outros bancos, alguns durante a vigência dos governos do PSD. Aquilo que fizeram foi varrer para debaixo do tapete, com por exemplo o BANIF, um banco que também tinha gente laranja na Administração.
      Não, eu não quero uma petição para afastar um juiz Ivo Rosa. Eu quero é que se faça uma petição, se é que isso é possível, para que as leis produzidas naquele parlamento a este nível, o da transparência de titular de cargo público, o enriquecimento ilícito, o tráfico de influências, abuso de poder, sejam inequívocas, claras, validadas se possível pelos órgãos superiores da magistratura, sem deixar a mínima hipótese de alguém escapar à justiça, seja lá qual for o protagonista. A começar logo pelas prescrições. Para este tipo de crimes não há prescrições.
      Aquilo que estamos a fazer com esta petição, desculpe-me, pouco sensata, chama-se caça ao homem.
      Não contem comigo para isso.

      • Ana Moreno says:

        Viva Rui, eu falo pelo desespero de ver que é possível encontrar formas de protesto colectivo eficaz de um lado e não é de outro, que seria o necessário. Sobre as decisões deste juiz, há muitas opiniões diversas e de gente credível; um ponto que me parece muito convincente é aquele de não se ter de declarar receitas ilicitas porque se iria incriminar a si próprio. E há mais umas, quanto à validade de provas. E quanto ao abuso de linguagem em relação ao MP. Por outro lado, o MP tb. não trabalhou como deve ser, segundo vozes também abalizadas. É materia complicada e tenho noção das minhas limitações. Mas uma coisa é certa e essa é a que importa: esta justiça é totalmente arcaica, injusta, inaceitável. E por isso não pode continuar a ser aceite, há que reagir, e reagir para além dos comentários. É lamentável, é trágico que não se encontre outra maneira de levantar a voz colectivamente. Se a petição puder abanar alguma coisa no estado das coisas, ao menos isso. Que eu preferia outra, já o disse desde o início.

    • Paulo Marques says:

      Nenhum protesto colectivo visível, a sério? Uma década de paineleiros sem nada na cabeça alimentados por fugas de informação a formatar a narrativa de que os problemas do país, incluindo uma bancarrota, lol, são exclusivos de um homem, e não há protesto colectivo?
      Porra, quem nos dera um não protesto a mais um acto de violência das autoridades passar, ou a ser normal mais uma morte por não haver refeição na mesa; coisas menores, claro. Como uma desunião que nos vai obrigar a mais desemprego antes de apoiar mais megalomanias, que não, não saíram do PM, e que se borrifa para as habitações destruídas mais uma vez por se deixar o clima andar.
      Não, pá, aqueles 34m€ salvavam o país se não fossem para o bastardo.

  6. Antonio Martinho Marques says:

    Basta-me dizer que concordo em absoluto com o João Mendes. Tenho quase 78 anos… já vivi, ouvi e assisti a muito, com consentimento ou à força. Só acredito no Estado de Direito e só aceito como boas as críticas que lutem contra o seu desvirtuamento ao sabor do querer particular ou partidário.

  7. Conceição Rocha says:

    Subscrevo tudo o que é dito no texto, excepto a referência a António Costa junto dos outros patifórios.

  8. Albino Manuel says:

    Nem li. Todavia: a justiça, mal ou bem, é feita nos tribunais. Primeira instância, relação, supremo, tribunal europeu. É-me indiferente a justiça da malta, dos jornais, dos blogs. Graça a Deus, não chegámos à baixeza do poder popular.

    Nota: acho a criatura um parvalhão, mas precisamente por ser parvalhão teve tanto sucesso. Portugal gosta de broncos – são o espelho da cidadania. Parafraseando a Grândola Vila Morena, em casa esquina há um Sócrates.

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