Falemos de Ceuta…

[Paulo Santos]

Num mar de sensacionalismo importa repor a verdade.

 

Nos últimos dias a entrada de mais de 10.000 ilegais em Ceuta tem estado na ordem do dia e perante mais um evento polémico não faltou o habitual: uma multidão de pessoas pouco informadas sobre o assunto a dar os seus cinco tostões. No meio disto não faltou o típico sensacionalismo dos media, a procurar passar imagens parciais e que pouco davam a conhecer a realidade do problema mas tinham todo o potencial de se tornar virais, tal como tornaram. Tendo isto em conta importa, antes de mais, contextualizar este grupo de pessoas que invadiram Ceuta.

Devido à vulgarização do termo “refugiado” para definir todo e qualquer individuo que chega a um país ilegalmente por via marítima importa lembrar que não, nenhum destes cerca de 10.000 indivíduos beneficia de qualquer estatuto de refugiado. Marrocos não está em guerra, não foi alvo de nenhum desastre natural nem houve qualquer pedido de asilo por perseguição do governo a algum destes cidadãos. Este deve ser o ponto de partida da análise a esta situação. Como tal, nenhum destes indivíduos estava desesperadamente a lutar pela sua sobrevivência, nem a fugir do terror da guerra ou das garras de um governo sanguinário que o aniquila, nem a procurar abrigo depois de um desastre natural.

Dada a ausência deste desespero, tantas vezes caracterizante de certas travessias do Mediterrâneo, não é de espantar que esta travessia de Marrocos a Ceuta não seja minimamente equiparável a tantas outras a que fomos assistindo, como por exemplo as diversas chegadas a Itália. Na verdade a fronteira entre Ceuta e Marrocos não passa de uma simples vala de 8kms de extensão, com um gradeamento de 10m de altura do lado espanhol e 2m do lado marroquino. Esta vala tem uma pequena extensão para o mar e são raras vezes em que a fronteira é ilegalmente transposta por via marítima já que Marrocos tende a proteger o seu lado da fronteira, como é sua obrigação, tratando-se da forma menos comum de realizar a travessia ilegalmente. Nas vezes em que a fronteira é ilegalmente transposta essa entrada ilegal acontece maioritariamente por terra, muitas das vezes com ataques às autoridades espanholas mas raramente em números maiores que poucas dezenas. A travessia marítima que vimos apenas aconteceu porque as autoridades marroquinas não só o permitiram, como ainda o incentivaram, não tendo aqueles que passaram a fronteira incorrido em risco significativo de vida, pelo menos não mais do que correm aqueles que gostam de nadar no mar um pouco mais longe da costa, tendo a extensão da fronteira para o mar cerca de 35 metros.

 

Devidamente contextualizado este acontecimento, podemos agora analisar o que o causou, quem o causou e porquê deste modo.

Tudo começa com a entrada ilegal em Espanha, com uma identidade falsa, de Brahim Ghali, chefe da Frente Polisário, um movimento revolucionário que luta pela autonomia do Saara Ociental, contra a ocupação Marroquina. Ghali deu entrada num hospital espanhol em Abril, devido a complicações respiratórias após ter contraído Covid-19, complicações essas em muito devido ao estado enfraquecido em que já se encontrava fruto do cancro digestivo de que sofre há vários anos. Por estas razões, apesar das acusações de violações de Direitos Humanos feitas por Espanha a Ghali, este último foi autorizado a permanecer no país e a receber tratamento por razões “estritamente humanitárias”.

Como seria de esperar, Marrocos tomou esta atitude do governo espanhol como uma autêntica afronta, e embora as opiniões se dividam quanto à permanência ou não de Ghali em território espanhol, numa coisa o governo falhou claramente: preparar-se para a inevitável retaliação marroquina. Não era difícil prever de que modo esta seria feita, porque começou numa escala muito menor inicialmente, mas Marrocos tem vindo a relaxar cada vez mais o seu controlo fronteiriço ao longo deste período em que Espanha decidiu acolher Ghali sem que a isso tenha correspondido um reforço do controlo fronteiriço por parte de Espanha. Toda esta entrada poderia ter sido mitigada pela colocação do exército em Ceuta de modo preventivo. Marrocos não procura uma guerra tradicional, sabe perfeitamente as consequências nefastas que isso traria para o país, a sua arma de arremesso tem sido, de forma constante, a imigração, e desta vez a uma escala nunca antes vista.

Apesar da falta de preparação de que o governo de Pedro Sánchez pode ser acusado, nunca antes Marrocos tinha instrumentalizado a imigração de forma tão eficiente e com tanto desprezo pelos seus próprios nacionais. A primeira fase da invasão ocorreu com crianças, estando o governo marroquino perfeitamente ciente das limitações impostas pela União Europeia aos seus estados-membros na hora de deportar menores. Marrocos optou por instrumentalizar os mais jovens, que iriam obter o estatuto de MENA (Menor Estrangeiro Não Acompanhado) e que Espanha iria, portanto, ter que albergar, sem hipótese de deportação. Tendo sido levadas a crer que tudo se tratava de uma atividade de uma visita de estudo, e que iriam até poder ver um jogo de Cristiano Ronaldo, crianças desde os 5 anos de idade fizeram a travessia, sem o conhecimento das suas famílias.

Os números da invasão promovida por Marrocos rondaram as 10.000 pessoas, o equivalente a mais de 10% da população de Ceuta, o que naturalmente asfixiou por completo a região que não teve outra alternativa que não, a partir do momento da chegada do exército, começar a impedir a entrada de marroquinos em Ceuta em alguns casos, como certas imagens mostraram, fazendo-os voltar ao mar. Ora perante uma fronteira 100% aberta do lado marroquino, que permitiu uma travessia marítima completamente facilitada e mais curta que as travessias marítimas ilegais que acontecem quando Marrocos protege o seu lado da fronteira, não houve aqui uma “condenação ao afogamento” por parte das autoridades espanholas, longe disso. Se algo ficou provado foi que Espanha acudiu aqueles que precisaram de ajuda, mas não tinha quaisquer condições para continuar a receber indivíduos saudáveis, perfeitamente capazes de regressar ao seu país de origem.

Concluindo, não, Espanha não violou quaisquer direitos humanos, recebeu bem mais indivíduos do que os que teria que receber legalmente (apenas os MENAs) e não condenou ninguém à morte atirando-os para o alto mar. Infelizmente foi o que muitas imagens sensacionalistas tentaram pintar, mas não podiam estar mais longe da realidade, bem como não podia estar mais longe da realidade que os imigrantes ilegais se tratam de pobres moribundos a fugir da guerra ou da miséria, já que na maioria dos casos não passavam de crianças a ser instrumentalizadas pelo seu governo, que não teve em consideração as suas vidas, nem as das suas famílias, que até agora ainda sofrem pela dificuldade em identificar devidamente os milhares de crianças que estão neste momento ao cuidado do Estado Espanhol.

Perante um cenário tão distinto daquele que foi pintado nas redes sociais, espero que daqui saia uma lição de que não é tudo tão simples como um vídeo de 20 segundos no Twitter faz parecer, há muito para além disso, e só há dois caminhos aceitáveis, não comentar aquilo de que não temos conhecimento ou procurar a informação que está à distância de um clique antes de tecer considerandos completamente despropositados.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Mas este texto é de quem? Fiquei convencido de que era do Francisco Figueiredo. Agora aparece assinado por outra pessoa!
    Apesar de estar de acordo com quase tudo o que aqui está escrito, seria bom sabermos logo de início quem são os autores das peças escritas.

    • Joana Volta says:

      Está escrito em cima do lado direito Paulo Santos autor convidado.

    • Francisco Figueiredo says:

      Foi um erro meu, porque editei mal. Sou um jovem com pouca habilidade para estas modernices.

  2. Paulo Marques says:

    É uma perspectiva válida, falta indagar quais os motivo e o preço de se deixar para Marrocos (como Turquia e outros) a tarefa, e se as leis internas e acordos internacionais são só para fazer de conta e o Frontex é uma organização do bem.
    Mas falar muito e fazer o contrário já é hábito, era bom que se percebesse que não é só para os indesejáveis.

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