Jorge Sampaio, sempre!

Ontem vimos partir um dos nossos melhores. Um combatente destemido, um espírito culto e pleno de substância, um político excepcional, um exemplo para muitos, onde orgulhosamente me incluo, e, sobretudo, um homem bom. Uma das poucas reservas morais que nos restavam de uma classe política em decadência. Sempre do lado certo da luta.

Jorge Sampaio enfrentou o Estado Novo pela primeira vez no início dos anos 60, enquanto líder estudantil, durante a sua passagem pela Faculdade de Direito de Lisboa, numa década marcada pelo Maio de 68. Já advogado, defendeu presos políticos em julgamentos viciados pelo regime fascista, sem nunca tremer ou hesitar. Corajoso, voltaria a desafiar o regime ditatorial ao concorrer à Assembleia Nacional pela CDE em 1969. Correu sérios riscos, apesar da vida confortável onde se poderia ter refugiado, mas que nunca o demoveu.

Após a queda do fascismo, Jorge Sampaio envolveu-se na política. Defendia o modelo de social-democracia nórdica, mas o PS de Soares não correspondia aos seus anseios. O mesmo Soares que acabaria por convidar Sampaio para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, escolha que acabou bloqueada por Spinola, por se tratar de alguém demasiadamente “esquerdista”, indicando para o lugar o antigo ministro do Estado Novo, Veiga Simão.

Sempre inconformado, Sampaio nunca parou. Foi um activista incansável, esteve na criação de movimentos como o MES e o GIS, até que chegou ao PS, onde teve uma ascensão fulgurante, condizente com o seu perfil singular. Liderou o partido, liderou a CM de Lisboa, foi deputado e presidente da República. E foi, sobretudo, um político honesto, decente e ponderado, como poucos este país produziu.

Sampaio foi também um homem de pontes à esquerda, antes e depois do 25 de Abril, como a primeira eleição de Soares e os acordos à esquerda que lhe permitiram governar a CM de Lisboa bem ilustram, décadas antes do advento da Geringonça. Pontes que soube também construir à direita, que o respeitou pela seriedade e compromisso com a causa pública, apesar da controvérsia em torno da dissolução do Parlamento em 2004. Mas, como bem referiu o meu camarada aventador Paulo Franzini, “não foi Sampaio que fugiu para Bruxelas”.

Trabalhou até ao final dos seus dias, que podiam ter sido tão confortáveis como aqueles de que abdicou na década de 60, tendo-se dedicado a causas nobres, mais recentemente a de apoiar estudantes sírios, fugidos da guerra e refugiados em Portugal, para quem conseguiu bolsas e condições para continuar a estudar. Actualmente, estava a trabalhar no sentido de integrar também estudantes afegãos, o que revela bem a atenção com que sempre olhou o mundo e tentou fazer dele um lugar melhor. Ao longo de seis décadas.

Sampaio é um exemplo de vida para mim, que sempre fui apaixonado pelo meu país, pela sua história, pela política e pela capacidade única que alguns, poucos, tiveram de o moldar e de fazer dele um país mais humano, mais fraterno, mais igual, mais livre. Nunca conheci ou li alguém que lhe quisesse mal. Que o odiasse. Nem nas redes. Poderá haver um ou outro Troll, seguramente sem grande convicção nas suas palavras, mas mesmo quem o critica pela decisão de 2004 lhe reconhece inúmeras qualidades e nutre por ele respeito. Porque Sampaio, entre outras coisas, foi a prova de que não, os políticos não são todos iguais. De que todas as lutas podem e devem ser travadas, por impossíveis que possam parecer, se justas e por um bem maior. E neste tempo de fracturas e pontes a arder, o desaparecimento de Jorge Sampaio do mundo físico tem ainda mais significado. Um duplo significado. O óbvio e o urgente, que é aquele que nos alerta para o imperativo de nunca baixar os braços e continuar a lutar. Até ao último suspiro.

Muito obrigado por tudo, meu presidente. Pelas batalhas ganhas e pelas que ainda havemos de ganhar, pelo carácter e pela honestidade, pelos muitos e maravilhosos exemplos, pela cultura democrática, pela empatia e pela tolerância, pela defesa apaixonada dos valores da democracia e da liberdade, pelo enorme coração e pela bondade, pela dedicação aos mais vulneráveis e pelo exemplo maior daquilo que é a esquerda em que acredito. Que o universo tenha a bondade de nos dar mais heróis como tu.

Comments

  1. JgMenos says:

    Porque é que a um tal elevado exemplo, um tão destacado militante do PS, não se lhe conhece uma palavra, um gesto, uma acção, tendente a travar o percurso em que o seu partido derivou para uma matilha corrupta até à obscenidade?

    E no princípio já era o Sócrates….

    • Tuga says:

      Para um Salazarista militante, o Sr JgMenos, tem uma curiosa coincidência de opiniões sobre Jorge Sampaio com o conhecido “esquerdista” deste blogue, de seu nome Filipe Bastos.

      Coincidências ou farinha do mesmo saco ?

      Mas que é curioso e dá que pensar, isso é verdade

      • Abstencionista says:

        Pois … não penses muito porque não estás habituado e pode dar-te uma coisa ruim.

    • Paulo Marques says:

      Não conhece o Cruz porque é preguiçoso e selectivo, e já não tenho paciência para o trabalho de casa.

  2. Filipe Bastos says:

    Entende-se a admiração de João Mendes por Sampaio: Mendes é um moderado, adora moderados. Até xuxas moderados.

    Um tachista sonso como Sampaio, cheio de ‘causas’ que rendem bons cargos e poucos riscos, adepto da ‘social-democracia nórdica’ e outras platitudes politicamente correctas, enche-lhe as medidas.

    Sim, passou 43 anos na maior máfia do país, foi conivente com os maiores responsáveis pela nossa ruína, branqueou activamente ou por omissão corruptos e trafulhas, mas que importa? Fez ‘pontes’, era um tipo simpático. Isso é que conta.

    Olhe João, no seu livrinho talvez eu seja troll, mas fiz a minha parte: ajudei a pagar o palacete onde ele ‘trabalhava’, os tachos que mamou toda a vida, a subvenção vitalícia, o popó com motorista, até os tachos dos filhotes. Para troll não tá mal.

    • Paulo Marques says:

      Pagaste e ainda não foste lá queimar tudo? Carneiro.

  3. luis barreiro says:

    Afinal extremistas de esquerda +podiam candidatar-se nas eleicçoes de 1969?

  4. Abstencionista says:

    Art.º 120º da Constituição da República Portuguesa

    «O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante
    a independência nacional, a unidade do Estado e o regular
    funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência,
    Comandante Supremo das Forças Armadas.»

    Já no tempo do Jorge Sampaio as Instituições funcionavam regularmente, dentro da corrupção.

    Jorge Sampaio fez o mesmo que faz Marcelo ou Cavaco… ou seja, deixar andar até apodrecer.

    Não nos comprometam foi e é o lema.

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