CLICKBAIT: De Nick Brewer a Raquel Varela

Na série “Clickbait”, da Netflix, Nick Brewer é raptado e acusado de ter assassinado uma mulher. Aos cibernautas é pedido que divulguem o vídeo onde Nick segura cartazes onde supostamente assume a acusação e prometem consumar a vingança assim que o vídeo atinja os 5 milhões de visualizações. A série explora muito bem o ambiente doentio que se vive à volta da cultura do cancelamento, capaz de levar até às últimas consequências as conclusões sobre qualquer caso, mesmo quando se está longe de ter todos os elementos de análise sobre um determinado assunto. Para estes novos Torquemadas a verdade é um detalhe praticamente irrelevante, posto que jogam tudo na guerra pela percepção e nas respectivas consequências, em si suficientes, caso bem sucedidas, para atingir os seus objectivos.

Ao contrário do sistema de justiça, e também ao contrário do que devem ser os pressupostos do jornalismo de investigação, a justiça digital não precisa de factos, nem de contraditório, nem de verificação de dados. A acusação basta. A narrativa dessa acusação é o fio condutor que vai convencendo aqueles que clicam antes de pensar e aqueles que clicam com os olhos postos nos seus desejos e não na realidade. Em qualquer caso de clickbait importa mais a percepção do que a verdade, mas isso não basta para que todos acabem a comer gelados com a testa.

Nas últimas semanas, onde o “caso Raquel Varela” tem persistido em algum alinhamento, percebemos que aqueles que acusaram a historiadora de fraude, apostaram tudo nesse enviesamento, numa sucessão de estórias sem história, de casos sem casos, onde mais do que a verdade, prontamente desmentida com factos, bastaria a percepção da fraude para ganhar a maioria da opinião pública e ferir a credibilidade da figura nos vários contextos onde exerce a sua actividade. Ora, sem exorbitar da paciência de ninguém, vejamos o tema em cada um dos eixos que se foram sucedendo na imprensa que desistiu de fazer jornalismo:

O caso dos artigos duplicados afinal era responsabilidade do sistema de indexação, generalizando os lapsos não só no CV de Raquel Varela como na generalidade dos CV dos académicos que têm produção científica. O caso do concurso à medida afinal tinha a medida de vários candidatos, a certificação de vários professores catedráticos e da própria reitoria. O caso das reclamações dos bolseiros afinal não chegaram sequer a existir no contexto universitário e foram arquivados pelas instituições académicas por neles não encontrarem nenhum indício de assédio. Por fim, o caso das autocitações – aka autoplágio – que sabemos agora ser prática comum na Universidade e que a generalidade dos académicos o fazem, nomeadamente aqueles que acusam Raquel Varela.

Conforme se pode ver a campanha de difamação não só não tinha nada de substancial, como nem sequer tinha algo de superficial. Não havia fumo à vista naqueles que insistiam na fogueira. Tratou-se de um caso sem caso, mas ainda assim, julgavam os disseminadores do ódio e da calúnia, a percepção da fraude bastaria para servirem os seus chefes com a cabeça do alvo.

Não bastou, e não só não bastou como acabou por funcionar ao contrário num poderoso ricochete, uma vez que a percepção que ficou é que se tratou de um caso de disputa de poder na universidade e de perseguição política, usada com taticismo pérfido por aqueles para quem a figura em causa é uma ameaça. O circo acusatório não tinha mais do que pólvora seca mas terá que produzir consequências. Os aprendizes de feitiçaria têm muito que estudar e não deviam esquecer os seus muitos telhados de vidro, substancialmente mais frágeis do que os telhados que acusam.

Numa investigação rápida, podemos facilmente concluir que muitos dos acusadores, nomeadamente os que o fazem a partir da cátedra sem respeito pelos procedimentos académicos, cometem os mesmos supostos ilícitos, numa escala substancialmente mais ampla do que aquela que apontam. Estes académicos, tão medíocres como ressabiados, podem começar a apanhar as canas da sua incompetência depois de fracassada a festa rija que achavam que iam fazer para gáudio dos patrões dos vários sectores que tomam a investigadora como inimiga (da Estiva à Autoeuropa), a indústria farmacêutica e as milícias higienistas através dos seus lobistas espalhados pelos meios de comunicação e pelo Conselho de Estado, e, claro, aqueles que na cena académica mas também na cena política, têm Raquel Varela como uma ameaça ao seu projecto de poder.

Ao fim de três semanas bullying digital e massacre mediático a única coisa que conseguiram foi a multiplicação da antena do alvo que queriam abater, a amplificação da percepção inversa à que pretendiam disseminar, reforçando não só a credibilidade da acusada como o seu lugar de fala quer na universidade quer na batalha pela opinião pública.

As instituições académicas irão inevitavelmente pronunciar-se publicamente sobre o assunto que no entanto ficou esclarecido bem antes das 5 milhões de visualizações com que não conseguiram fazer da Raquel Varela o nosso Nick Brewer.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    Não acompanhei, mas pela descrição, o problema não parece ser alguém ter visto fogo, é o fogo ser normal e ninguém estar preocupado com isso, menos quando interessa.
    Mas o interessa… sim, treme tudo a pensar na Raquel, esse ícone referência do pensamento luso que só encontra igual no João e na Joana. Poupa-nos.

  2. Rui Naldinho says:

    Há de facto uma “ambição desmedida” por parte da nossa direita liberal em provar que uma certa esquerda, ao qual chamam de caviar, que eles abominam por os desmascarar com factos concretos e irrefutáveis sobre a sua conduta, no mínimo imoral, quando não recheada de truques e ilegalidades, muito bem ocultados pelos poderes instituídos, incluindo alguma CS de reverência, que lá bem no fundo somos todos iguais.
    É verdade que o ser humano seja ele qual for é extremamente frágil e vulnerável, deixando maioria das vezes por se seduzir pelo vil metal de forma ingénua ou por um consumismo desenfreado. O dinheiro é importante para todos sem excepção, mas dentro de uma certa racionalidade.
    Ainda num passado recente, Ricardo Robles, candidato do BE às eleições da CMLisboa, foi colocado por essa mesma direita no patamar de um trafulha, como se de um corrupto se tratasse.
    Se é verdade que Robles foi de uma incoerência total no seu discurso em face dos seus interesses pessoais, o homem jamais terá cometido qualquer ilegalidade. Nem os pretensos inquilinos se queixaram dele. Foi no entanto massacrado por essa direita tão puritana e falsa, apoiada pela sua artilharia mediática, como alguém que cometeu um crime lesa pátria.
    PS e o PSD por serem partidos com aspirações a governar, estão recheados de falsos doutores e mestrados, muitos deles com cursos de “vão de escada”, onde a única competência provada são as suas filiações partidárias em prol do sucesso carreirista numa qualquer Secretaria de Estado ou Direcção Geral.
    Se entrarmos no patamar do tráfico de influências então a coisa fica de facto preta. Andamos há 40 anos a levar com escândalos laranjas e rosas.
    O caso Raquel Varela enquadra-se nesse espírito de agressividade e ódio contra aqueles que os denunciam na CS, nomeadamente aqueles negócios rentistas e ruinosos para o erário público, “sempre a bem do país e do nosso empreendorismo”, tão característico da nossa direita.
    Resta-nos apenas a esperança de que este povo vá percebendo a cada passo de quem realmente os engana.
    Mas para isso necessitávamos de um jornalismo recheado de bons profissionais, com autonomia financeira para viverem com dignidade, sem dependerem dos desmandos do empresário dono do jornal, rádio ou televisão, quantas vezes ele próprio um corrupto.

    • Filipe Bastos says:

      uma certa esquerda, ao qual chamam de caviar…
      Ricardo Robles foi colocado no patamar de um trafulha…

      Vamos lá a ver, Naldinho: há mesmo esquerda caviar; e o Robles é mesmo um chulo e um trafulha.

      Não é preciso ser de direita para perceber isso; basta ter olhos e vergonha na cara. A esquerda devia ser a primeira a tê-la.

      Sim, a exigência moral é diferente. A direita prega desigualdade e egoísmo, ganância e mamões. A esquerda é melhor. Deve então corresponder ao que defende. Não lhe basta dizer ‘os outros também fazem’. A ser igual aos outros não faz falta.

      • POIS! says:

        Bem, sempre pensei que, a si, nada disso lhe fazia falta.

        Lá por casa, aliás, consta que tudo é uma farturinha desgraçada.

        Só falta mesmo pavimentar o corredor a alcatrão e a cozinha a paralelos.

        • Abstencionista says:

          Que comentário imbecil!

          • POIS! says:

            Pois tá bem!

            Outra vez a marrar, ó Abstencioneiro? ‘da-se!

            Que imbecil a comentar!

            Meta-se na sua vidinha e deixe-se de cornadas no vazio!

        • Abstencionista says:

          Outro comentário imbecil!

          • POIS! says:

            Pois tá bem!

            Outra vez a marrar, ó Abstencioneiro? ‘da-se!

            Que imbecil a comentar!

            Meta-se na sua vidinha e deixe-se de cornadas no vazio!

      • Paulo Marques says:

        Continuo sem perceber qual é a diferença entre aquilo e investir num fundo de acções da Amazon, Google, etc achando que me deviam tirar dinheiro ao regulá-las fortemente.

  3. JgMenos says:

    O puteiro das credenciais académicas é um dos mais activos no panorama geral da putaria vigente.
    Publica/não publica, cita ou não é citado, lambe cús ou é displicente, o espaço para a ciência ocupa pequena parte no processo.

  4. J. M. Freitas says:

    Penso que o importante está na carta de António Monteiro Fernandes no Público de 10 de Outubro. Há, entre os investigadores, uma pressão brutal para publicar. Pela avaliação por pontos, interessa pouco a qualidade do que se publica.
    É a mania dos rankings, tenham eles significado ou não. Por outro lado, publica-se mais do que se lê. Os elementos dos júris de promoção não lêem os artigos (nem quem atribui financiamentos), preferem o sistema de pontos que os livram de trabalho e até de responsabilidades.
    Publica-se muito lixo. O que diz Monteiro Fernandes é de primeira importância. Mas a mudança é muito difícil. O sistema funciona assim em todo o Mundo, não só cá.

    • Dá meia volta, ó Freitas says:

      Isso prova o quê, sobre a insinuação feita por um jornalista acerca do curriculum da historiadora Raquel Varela?
      Aquilo que está em causa, é se ele é falso ou verdadeiro. Se aquilo que ela apresentou para o desempenho académico e profissional a determinado lugar, não está em conformidade com o exigido.
      Introduzir poeira no assunto em questão, como a “qualidade da obra produzida pelo autor”, ou “a qualidade da tese de doutoramento “, ou qualquer outro parâmetro subjectivo, que não os factos em si mesmos, apenas para demonstrar que não há no presente caso um ataque insidioso contra uma pessoa em concreto, parece-me tão leviano como a própria insinuação de que ela tentou enganar alguém no seu curriculum.

      • J. M. Freitas says:

        “Isso prova o quê, sobre a insinuação feita por um jornalista acerca do curriculum da historiadora Raquel Varela?”
        Nada como é óbvio.

  5. Filipe Bastos says:

    É relativamente fácil embirrar com esta Raquel Varela: tem estilo de sabichona, é assertiva, para não dizer agressiva, anda muito pelos merdia, vê-se que se preocupa com a sua imagem.

    Ainda assim, diz muitas verdades e chama alguns bois pelos nomes. É das poucas que o faz. Há que dar-lhe esse mérito.

    Se for mentira a trafulhice dela para ganhar um tacho, tanto melhor; só que, como já disse o Marques, mesmo que aqui o seja é verdade em muitos outros casos. A academia está longe de ser uma excepção à javardeira: está podre do topo para baixo.

    Tachos e penachos, favores e sinecuras. Teta. Os senhores doutores querem teta. Um artigo no DN resume bem a coisa. Termina assim: “eu começava por moderar a visão mercantilista do saber”.

    • Paulo Marques says:

      Nem é bem isso, é mais ser assim propositadamente para tentar medir o sucesso, com a vantagem de (às vezes) se poder bater selectivamente.
      Mas, apesar disso, ainda se vai produzindo; quando deixar de haver candidatos, ou quando perderem a vontade de qualidade, bom, a China agradecerá deixarmos tudo ao mercado libertino.

  6. J. M. Freitas says:

    “A academia está longe de ser uma excepção à javardeira: está podre do topo para baixo.”
    Não é javardeira mas há coisas que deveriam mudar. A grande dificuldade é que não é só cá, é a nível mundial. Se Portugal mudasse sozinho, muito provavelmente não seria útil para Portugal.

  7. Daniel says:

    Imagino a Raquel Varela, o José Gomes Ferreira, a Joana Amaral Dias e o Ventura todos juntos a “cagar tacos” num programa de TV…

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