Sessão contínua: secção ou *seção?

O googledocs, ferramenta utilizada em muitas escolas, propõe que se escreva “seção” no lugar de “secção”. Os alunos que recorrerem a este instrumento tenderão a considerá-lo uma autoridade, pelo que muitos passarão a escrever “seção” e, destes, alguns passarão a pronunciar de acordo com a grafia.

Helena Figueira explica, chega mesmo a garantir, que “secção” é grafia portuguesa que permanece inalterada pelo chamado acordo ortográfico (AO90). A infopédia não faz referência a “seção”, o Priberam informa que é grafia brasileira, tal como acontece com o Vocabulário Ortográfico Português. Este, no entanto, na coluna da direita, anuncia que a pronúncia lisboeta é  sɛ.sˈɐ̃w (ou seja, seção).

Em que é que ficamos? Ortograficamente, em nenhures, ou seja, no país desencantado do AO90.

 

Ah, mas os professores têm de explicar aos alunos como é que se escreve e tal e coiso!

 

Longe de mim desvalorizar os oficiais do meu ofício, mas deixai-me explicar-vos o seguinte:

 

1 – o professor pode ser fisicamente ouvido, sem que isso signifique necessariamente que a informação foi assimilada. Ser educador não é garantia de educar. Não é um exclusivo desta geração e não é obrigatoriamente defeito do professor;

2 – os alunos são confrontados com muitos e diferentes textos (publicidade, legendas), com os quais aprendem a escrever. Se, ainda por cima, um processador de texto lhes propuser uma correcção, no mínimo, já foram confrontados com uma determinada imagem gráfica. Seção ou secção? Pois, não sabemos.

Outros insistirão na ideia de que o AO90 não estipula a alteração desta grafia e de muitas outras que, curiosamente, passaram a aparecer alteradas depois do dito AO90. É tocante a confiança que tantos ingénuos depositam no poder mágico de leis, decretos e sinais de trânsito.

Deixo-vos, ainda, algumas ligações minimamente comentadas. Vamos rir, que o assunto é sério:

https://dgpj.justica.gov.pt/Relacoes-Internacionais/Organizacoes-e-redes-internacionais/Conselho-da-Europa/Tribunal-Europeu-dos-Direitos-Humanos (de acordo com esta página portuguesa, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem “seções”)

https://www.cm-portimao.pt/rodape/contatos/contactos-camara-municipal-de-portimao/arquivo-municipal/53-secao-de-apoio-aos-servicos-municipais (nesta página da “seção” de apoio aos serviços municipais, temos contacto e *contato, que não quero que vos falte nada)

http://www.cm-ribeirabrava.pt/cmrb1/municipio/camara-municipal/organograma/ (muita “seção”)

https://www.cdnacional.pt/secao-de-tenis-organiza-2a-etapa-do-circuito-regional-juvenil/ (sim, mas de ténis)

https://gulbenkian.pt/arquivo-digital-jardim/garden-document/plantas-de-armacao-secao-1-1-e-2-2/ (Fundação Calouste Gulbenkian!)

Comments

  1. Como o texto acaba de comprovar mais uma vez ( se ainda fosse preciso provar seja o que for), o lamentável AO veio destruir algo que é fundamental na norma escrita: a estabilidade, substituindo-a pelo salve-se quem poder ou pela balda, se quiserem. Hoje já vale tudo. Podem agradecer ao insigne académico Malaca Casteleiro e sus muchachos. Está instaurado o reino da selva. Daí que muita gente e bem se recuse a aplicar o dito. E eu sou um desses, com muito orgulho.

  2. Filipe Bastos says:

    Estou com o Nabais, com o Valada, com todos que rejeitam ou ignoram este (des)acordo abrasucado de bosta.

    Mas deixem-me ser advogado do diabo, ou melhor, da bosta. A língua evolui, basta ver jornais antigos. Que nos diria hoje, se cá estivesse para ler-nos, alguém que escrevia pharmácia?

    Diz um defensor da bosta:

    “Na Reforma Ortográfica de 1911, indicava-se que o objectivo era melhorar a língua escrita (no seu aprendizado e exercício) para se aproximar dos factos constantes da sua pronúncia.
    Mudança que foi corajosamente feita, não obstante a resistência tenaz dos conservadores. E compare-se a alteração drástica operada nessa altura com a muitíssimo menor que o novo acordo pretende introduzir agora para simplificar e, sobretudo, unificar a escrita da língua oficial comum das oito pátrias…”

    Simplificar e unificar, diz ele. Nota-se. Mas tirando as razões pífias, as alterações parvas ou absurdas, o caos na implementação e o carneirismo na adesão, seremos tão diferentes dos opositores da reforma de 1911? Seremos mais movidos por bom senso ou por comodismo? Se a mudança fosse boa aceitá-la-íamos?

    • “seremos tão diferentes dos opositores da reforma de 1911? Seremos mais movidos por bom senso ou por comodismo? Se a mudança fosse boa aceitá-la-íamos?”

      Talvez não sejam tão diferentes dos opositores á reforma de 1911.
      Lembro-me de ter lido que o ilustríssimo filólogo Adolfo Coelho denunciou que o poético “lyrio” passava a ser um prosaico “lírio”.
      Ademais, imagino o choque que terá sido para os jovenzinhos dessa época deixarem de ter aulas de “Physica e Chimica”, para alem das “Sciencias Naturaes”.

    • Paulo Marques says:

      Tirando todas as diferenças, será assim tão diferente? E ignorando a crítica à mediocridade real ao contrário da imaginária, será o Filipe sério?

  3. Luís Lavoura says:

    Todas as fontes consultadas estão corretas. Em Portugal a pronúncia culta é “secção” e, portanto, é assim que se escreve. (Alguns lisboetas dirão talvez “seção” mas, lá por eles terem essa pronúncia, não se passa a escrever assim.) No Brasil não sei como é mas, se a pronúncia culta for “seção”, será assim que se escreve.
    A regra é simples: em cada país escreve-se de acordo com a pronúncia culta (ou normal) desse país.

    • António Fernando Nabais says:

      Não, as fontes consultadas não estão todas correctas – não tenho notícia de nenhuma zona de Portugal em que se pronuncie “seção” (eu explico: no VOP, Lisboa é Portugal). Se é verdade que os autores do AO90 defendem que se escreva de acordo com a norma culta, abrem um buraco nessa regra, a partir do momento em que defendem que se escreva conforme se pronuncia. É por isso, por exemplo, que, em Portugal, segundo o AO90, é aceitável escrever “caraterística”/”característica” ou “expetativa”/”expectativa”, entre outras duplicidades anti-ortográficas.
      A regra não é simples, porque nem sequer é exactamente uma regra, a partir do momento em que se defende que se escreva de acordo com a norma culta e de acordo com o modo como se pronuncia (ainda poderia fazer referência ao facto de se poder escrever indiferentemente “passámos” ou “passamos” no mesmo tempo verbal).

  4. Luís Lavoura says:

    O googledocs, ferramenta utilizada em muitas escolas, propõe que se escreva “seção” no lugar de “secção”.

    Há na internet montes de coisas escritas em português do Brasil. O googledocs, sendo um produto americano, provavelmente prefere português do Brasil, que é a forma mais usual de português no mundo em geral e na América em especial. Parece-me portanto natural que o googledocs advogue a grafia brasileira.

    • António Fernando Nabais says:

      Lamento que lhe pareça natural que um corrector ortográfico usado em Portugal proponha uma grafia brasileira. Seria igualmente estúpido que um corrector ortográfico no Brasil propusesse grafias portuguesas aos brasileiros.

      • Luís Lavoura says:

        É impossível, no atual mundo da internet, impedir seja quem fôr de utilizar um corretor ortográfico (ou seja o que fôr) desadequado.
        Cabe-nos denunciar a desadequação do googledocs e promover a sua não-utilização. Mas não podemos impedir que algumas pessoas o continuem a utilizar…
        O facto de existir um corretor ortográfico mal feito não significa que a ortografia do AO90 esteja incorreta. Significa simplesmente que esse corretor ortográfico é mau.

        • António Fernando Nabais says:

          Quando se refere à “ortografia do AO90”, deve querer referir-se às regras. É chover no molhado, mas repito:
          – não se pode unificar com base numa diferença;
          – nunca houve necessidade de unificar coisa nenhuma;
          – um instrumento que permita o aumento das duplas grafias dentro do mesmo país leva ao aumento de confusões, como tem vindo a ser demonstrado por tantos outros que sabem muito mais do que eu e do que o Luís.

      • Se o corretor ortográfico estiver definido para português do brasil, que é o que está a acontecer, é obvio que reconhecerá a grafia brasileira.

  5. Luís Lavoura says:

    os alunos são confrontados com muitos e diferentes textos (publicidade, legendas), com os quais aprendem a escrever

    É inevitável que, no mundo atual, os alunos portugueses se vejam múltiplas vezes confrontados com textos escritos na grafia brasileira, e com outros textos escritos na grafia portuguesa. Por exemplo, se vão à internet consultar qualquer coisa, têm boas probabilidades de toparem com um texto escrito na grafia brasileira.) Essa é uma boa razão para que se procure unificar as grafias. No entanto, o Acordo Ortográfico não faz tal coisa, pois reconhece que há diferenças irredutíveis entre as pronúncias e, portanto, entre as grafias.

    • António Fernando Nabais says:

      Mesmo que fosse possível unificar as grafias, continuaria a haver muitas outras diferenças que tornam impossível a unificação. Saúdo o facto de que o Luís reconhece o inevitável falhanço do AO90: baseia-se nas diferenças irredutíveis.

      • Luís Lavoura says:

        O AO90 não falhou. Realizou progressos importantes nas grafias, por exemplo passar-se a escrever “teto” em vez de “tecto” ou “assíntota” em vez de “assímptota”.
        Mas a ideia de unificar as grafias do português de Portugal e do do Brasil, essa sim, era e é uma ideia impossível de realizar, embora fosse desejável.

        • António Fernando Nabais says:

          Sim, sim, passar de tecto a teto foi uma progresso importante. Não se sabe é porquê. Sabe-se, isso sim, que o desaparecimento do C potencia o fechamento do E, como já demonstraram outros e como é fácil perceber até empiricamente.

        • Carlos Almeida says:

          Sr Lavoura

          “passar-se a escrever “teto” em vez de “tecto”

          Teto será o masculino de teta,?

          O c estava la e muito bem para abrir o e que esta a seguir.

          Não é que me faça diferença porque continuo a escrever conforme consta na assinatura dos meus email:, abaixo,
          Mas é uma confusão pegada, esse maldito AO90

          “Quando escrevo, os meus emails são redigidos em profundo desacordo e intencional desrespeito pelo novo Acordo Ortográfico.”

          Cumprimentos

          Carlos Almeida

  6. JgMenos says:

    Falta um Observatório da Língua Portuguesa, devidamente acompanhado por uma Unidade de Acompanhamento do AO90 a para de uma Comissão Permanente para a Reforma do que Apareça.,

  7. “O googledocs, ferramenta utilizada em muitas escolas, propõe que se escreva “seção” no lugar de “secção”.

    É curioso que o meu googledocs aceita tanto “seção” como “secção” como ortografias válidas, já que ambas as palavras existem no português europeu, embora com significados diferentes.
    Mas deixa de ter esse comportamento assim que altero o idioma para português brasileiro. Ai “secção” passa a ser anotada como erro.
    Afinal o problema advém da configuração e não do AO90.

  8. Professor B says:

    Há quem prefira tetos a tectos…

  9. Manuel M. says:

    Excelente publicação.

  10. Maria do Carmo Vieira says:

    Repito as palavras anteriores: EXCELENTE PUBLICAÇÃO! Demonstrativo do caos reinante com o qual algumas pessoas lidam bem.
    Maria do carmo Vieira

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